20150630
Têm-me ensinado, nestes últimos tempos, a importância da serena persistência.
Esta semana fomos todos ver o Inside Out. No intervalo, dedicamo-nos a comentar qual seria a personagem proeminente dentro de cada um de nós, aquela que tomaria conta das operações e interferia maioritariamente nos nossos estados de espírito. E conseguimos, quase por unanimidade (a excepção era o visado) indentificar-nos e às nossas idiossincrasias.
Numa família grande, como a nossa lá de casa, a gestão dos silêncios é uma arte. Disséssemos todos o que nos passa na cabeça, quando nos passa na cabeça e teríamos ainda mais balbúrdia. Todos nós aprendemos, por isso, que por vezes o melhor é calar, momentaneamente, e escolher a altura certa para falar, quando as coisas estão mais serenas, e a racionalidade regressou à base. E isso, bem vistas as coisas, é uma arte. Difícil, certamente. Mas importante.
Faz agora um ano, estive num funeral no Bairro. A determinada altura, começou tudo a gritar e a chorar em altos berros com desmaios pelo meio. Houve um tempo em que também eu era assim. E de certa forma ainda sou, quando baixo a guarda sobre mim mesmo. Por vezes ainda falo alto, gesticulo muito, e ainda confundo a potência da voz e a postura agressiva com a autoridade. E a posse da razão.
Confio, no entanto, que o contacto quotidiano com pessoas que são diferentes, que pensam de maneira diferente, que agem de maneira diferente, me possam contagiar. Por isso fico atento quando estou junto delas. Atento às suas palavras, à sua forma suave mas persistente de ser, de falar, de apresentar as suas ideias e lutar pelas suas propostas sem com isso magoarem seja quem for. O curioso é que essa forma de ser corresponde àquela que eu entendo que é a mais eficaz. Sempre acreditei, racionalmente, que ninguém altera o rumo de um barco a remos à fora de berros mas estando lá dentro, remando, contribuindo para definir e manter o rumo certo. Por isso, sempre acreditei, racionalmente, que funcionar a berrómetro é estúpido e arrependo-me sempre amargamente quando o faço.
Agora falta-me outra coisa: aprender a esperar quando o meu silêncio e a minha serenidade não produzem o efeito desejado. Mas isso é outra coisa.
20150626
Ontem fiz 49 anos. No big deal. Nunca gostei particularmente dos meus dias de aniversário. A Isabel normalmente faz de tudo para que tenha um bom dia. Mobiliza-se, mobiliza os meus filhos, quando o permito mobiliza os meus irmãos e os meus pais, tentando sempre que aquele dia seja especial. Normalmente, em vão. Posso gostar de alguns momentos do dia, da forma como estamos juntos, da forma como, tal como aconteceu ontem, os meus filhos me preparam um jantar todo catita e jantamos lá fora, no jardim, e pegamos nas guitarras e cantamos no final, e sou dispensado da cozinha... Eu gosto disso. Gosto muito disso. Mas gosto... apesar do meu dia de anos. e nem sei bem porquê.
Ontem tive a oportunidade de fazer um balanço do que foi este ano que passou - e do que tem sido a minha vida - por três momentos diferentes. E três perspectivas igualmente diferentes.
De manhãzinha, sozinho, no meu habitual percurso matinal junto ao mar, o foco incidiu sobre o ano que passou. E dei Graças! No que realmente me importa - as pessoas! - foi um ano muito rico. Cresci muito, colhi bastante, aprendi imenso! Tive experiências fantásticas: Santiago, ComTigo, a Pastoral, Taizé (em ano vintage, colheita especial), Rumos, Dias de Reflexão... As pessoas que acompanho em todas essas actividades têm o dom de me fazer redescobrir, de me fazer recentrar no essencial, de me ajudar a redescobrir-me e a definir-me novamente e a estabelecer novas metas, afinar estratégias e manter rumos. Qualquer que seja a sua idade, qualquer que seja o seu papel no colégio ou no raiz ou no instituto ou na vida vivida, tive a sorte de aprender ao longo do ano com verdadeiros mestres na arte do amor pela entrega aos outros, com aqueles que não sabem da sua importância porque estão focados na importância daqueles a quem servem todos os dias. E tive o enorme privilégio de ser aceite como seu amigo.
Mais tarde, enquanto almoçávamos a dois, fiz um outro balanço. Mais longo, mais profundo, de certa forma mais doloroso porque há erros que foram cometidos cujas marcas teimam em permanecer, porque aprendi muitas vezes à custa de cabeçada, porque fui reerguido demasiadas vezes quando deveria ter sido eu a erguer. É um outro campeonato. Onde tudo é mais: as vitórias são mais vitórias e as derrotas são extremamente dolorosas. Mas onde sou amado. Profundamente amado. Por vezes dolorosamente amado. Não é fácil ser meu filho, não é fácil ser minha mulher, não é fácil viver permanentemente comigo e ter que lidar, todos os dias, com as minhas limitações e insuficiências e irreflexões e inconsistências e anseios e calimerices e tudo aquilo que me define e que apenas eles sabem porque apenas eles têm que arcar com as consequências de mim próprio. Em minha defesa, apenas o amar muito, o amar tudo o que sei e consigo e posso, o dar tudo o que sei e consigo e posso, que muitas vezes - demasiadas vezes! - é pouco mais que coisa nenhuma. É, efectivamente, afectivamente, um outro campeonato.
No final do dia, um outro balanço, a mesma amargura de sempre. A espera, em vão, dos parabéns de quem os deveria dar mas nunca o fez. Por mais que viva, há coisas que nunca deixarão de mexer comigo. Infelizmente!
20150622
Houve um tempo em que perseguia a sabedoria nos sábios. Nada me parecia mais lógico: estudar os filósofos gregos, os teólogos fundamentais, os autores consagrados, seria sempre um bom caminho para atingir aquilo que, desde que tenho consciência de mim, quis atingir: o saber ser, o saber estar, o saber pensar e, com sorte, chegar até a ter isso mesmo escrito na minha lápide.
Algures a meio do meu curso, enquanto estudava o Antigo Testamento, aprendi que aqueles textos não tinham sido escritos por autores consagrados mas por pessoas simples, comuns, e que Deus, ao seu jeito de sempre, nos fala através da sabedoria dos simples e não através dos escritos dos "sábios". Lembro-me perfeitamente de ter pensado que assim também eu, que se tivesse inspiração divina também eu encontraria a sabedoria. E fez-se luz. E tornou-se claro que eu procurava a sabedoria nos lugares errados. Que a sabedoria encontrava-se onde menos o esperava, quando menos o esperava, de quem menos o esperava. Que bastava abrir os olhos, estar atento, remover as etiquetas que utilizava até essa altura, e tomar cada pessoa, cada momento, cada frase dita ou escrita - mesmo (especialmente?) as que escapam à reflexão elaborada, como um ponto de partida - ponto de partida, não de chegada - tão válido como o de qualquer sábio. E passei a tentar fazer isso, a tentar tomar cada um por si só, resistindo à tentação de o emprateleirar onde mais me convém, tentando não lhe atribuir um valor predefinido de acordo com as minhas expectativas. Nas escassas (raras até) vezes em que o consigo fazer, surpreendo-me sempre com o que aprendo. Posturas perante a vida, formas de lidar com um problema em particular, partilhas que acontecem durante uma conversa escrita ou falada sem qualquer outra pretensão que não seja o desfrutar do prazer da companhia, descomplicações e desmistificações que me ajudam a ter uma perspectiva correcta e mais salutar da vida, tudo isso me vem ter às mãos caído do céu, acredito mesmo que literalmente caído do céu, por intermédio daqueles que muitas vezes nem suspeitam que são caminho de salvação para mim.
É para mim sempre motivo de louvor quando alguém me desperta a consciência (do latim conscire, com + scire = saber com, aprendi hoje ;-) da bênção de viver rodeado de sábios. Pessoas que admiro pelo que são e fazem, e como são e como fazem, e pela humildade de nem sequer se aperceberem da forma sábia como vivem para os outros. Apesar de não deixar de ler os filósofos e os teólogos e os autores consagrados, é com eles que aprendo, todos os dias, a não desistir de tentar ser melhor.
20150619
Nunca me vi como adepto de grandes massas. Tenho saudades da altura em que o Porto perdia mais vezes que aquelas em que ganhava e ser do Porto era ser do contra, e quando, como este ano, não ganhamos nada, a minha maior tentação é fazer-me sócio. Também quando perco as eleições apetece-me filiar-me no dia a seguir. O que nunca acaba por acontecer, aliás. Nunca gosto da moda quando está na berra - embora tenda a gostar dela depois, o que me faz andar sempre fora de moda - nunca gosto do mainstream, gosto dos filmes esquisitos, das músicas que ninguém ouve, e quando me apercebo que gosto ou faço aquilo que todos gostam ou fazem, pergunto-me o que terei de errado comigo. Por muito que acredite e defenda uma ideia, se estiver numa discussão onde todos a defendem, eu tendo a ser o advogado do diabo e a procurar o contraditório. Confundindo tudo e todos, como sempre. Não gosto de bater no ceguinho, de estar do lado dos mais fortes e admiro sempre o David, imediatamente antes de ficar do lado do Golias quando lhe tentam cortar a cabeça depois de estar caído no chão.
Não tenho nisto mérito algum, nem sequer tenho a certeza que isto seja merecedor de mérito. Há já muito tempo que esta faz parte daquelas coisas que tento encaixar na minha vida sem andar desesperadamente à procura de uma explicação. Às vezes penso que é assim porque gaguejo. E gaguejar faz-me sentir que estou sempre do outro lado da barricada. Noventa e nove por cento das vezes sinto que gaguejar é uma bênção na minha vida. Principalmente porque quase me obriga a manter a boca fechada em meios que não conheço bem. E manter a boca fechada é o primeiro passo para sermos considerados sábios, o que é sempre bom. Ainda que, invariavelmente, seja por pouco tempo. Mas gaguejar é uma bênção por outro motivo. Nunca gosto, mas ouço algumas vezes a minha voz gravada, e apercebo-me nessas alturas como deve ser difícil escutar-me. E isso força-me a ter uma certa humildade, a tentar manter os pés no chão, e sobretudo, a contrariar a tendência que tenho para gostar em demasia daquilo a que chamo o som da minha voz.
20150618
Todos os anos é mesma coisa: abraços, sorrisos, um até sempre que depois se vai tornando mais espaçado, mergulhados que ficamos nas nossas próprias vidas, nos nossos próprios enredos. Qualquer educador tem que saber fazer este processo de liga/desliga. Todos os anos somos recordados, invariavelmente, inapelavelmente, que os miúdos não são nossos, que apenas nos passaram pelas mãos, que, no melhor dos casos, até lhes conseguimos transmitir algo que poderá ser duradouro, mas que quase sempre ficará relevado para o fundo do baú.
Ontem, à hora do almoço, enquanto caminhava com um dos meus filhos pelas redondezas, um antigo aluno passou por mim. Cumprimentamo-nos, conversamos uns minutos e seguimos o nosso caminho. O meu filho riu-se "foi muito engraçado aquele momento em que cada um de vós não sabia se haveria de cumprimentar, em que não tinham a certeza se o outro era mesmo quem estavam a pensar". Eu disse-lhe que não era isso. Eu sabia quem ele era, não tinha era a certeza que ele me reconhecia ou até se estava na disposição de parar para me cumprimentar. Muitas vezes é isto que se passa. Nunca sei até que ponto posso ter ou não sido relevante na vida de alguém e por isso jogo à defesa, deixando a cada um a liberdade de se dirigir a mim ou não.
Naturalmente, há alunos que passaram por mim e me deixaram bastante. Afinal, o tempo que passamos juntos, o tipo de actividades que tivemos, que envolveram muito de cada um de nós, muita entrega mútua, por vezes até uma abertura especial advinda da enorme confiança que se foi gerando, tem que deixar marcas. E isso nota-se por exemplo, quando algum deles me vem visitar e conversar comigo e fazer saber como está, como tem vivido, como tem sido o seu percurso. Mas há muito tempo deixei de ter ilusões. Na esmagadora maioria dos casos somos andaimes, fundamentais na construção da obra e depois retirados para poderem ser utilizados numa outra construção. Esse é o nosso papel. Com muito orgulho!
20150617
No final da reunião, conversamos um pouco apenas a dois. "Tem três filhos maravilhosos, nos quais deve ter muito orgulho. Este também algum dia há de fazer o click." "Desculpe, mas na realidade tenho cinco filhos maravilhosos."
Ela sabe bem que tenho cinco filhos. Foi professora dos quatro que estudaram lá (a Rita não veio a tempo daquele colégio) e, ao longo dos anos, tivemos conversas suficientes para ela saber que o meu orgulho nos meus filhos tem muito pouco a ver com os seus resultados académicos. Ainda há bem pouco conversávamos e eu tinha-lhe dito justamente isso, que as notas são apenas uma parte da sua formação. E da nossa preocupação.
O "este", este ano, teve um percurso académico acidentado. E isso nunca nos tinha acontecido. Estamos muito mais habituados a quadros de honra que a asneiras que justifiquem uma chamada à escola. Estamos muito mais habituados a "vê se vais até lá fora apanhar ar" que a "então hoje não estudas?" e esta é uma novidade com a qual estamos ainda a aprender a lidar. Com alguma dificuldade, confesso. A minha perspectiva relativa da importância das notas é muito diferente da perspectiva quase absoluta da minha maisquetudo, e isso tem originado alguma fricção. Que, como sempre, conciliaremos, claro. Para mim, sempre foi muito importante que os meus filhos conseguissem conciliar a sua progressiva autonomia com o sentido de responsabilidade que os valores que lhes incutimos exigem. Para mim, mais importante que o episódio é o percurso, é o pano de fundo, o rumo que cada um vai escolhendo e definindo de acordo com as suas escolhas. Tendo isto, que creio que é o mais importante porque fundamenta as suas vidas, os acidentes de percurso são tratados como acidentes de percurso: cai, aprende, chora, aprende, levanta, aprende, sacode o pó, aprende, prossegue, aprende. Não há um princípio e um fim, um objectivo que vale tudo, que justifica tudo, até que a viagem se perca. Tudo é viagem. Simultâneamente princípio e fim do tanto que temos a aprender.
Tenho um orgulho enorme nos meus filhos. Em todos eles. Com o seu percurso. Com a sua personalidade. Com as suas vitórias e derrotas. Com as cabeçadas na parede. Com as conversas que temos. E as gargalhadas. E as lágrimas. E os ralhetes. E as discussões. Tenho um enorme orgulho nos meus filhos. Sem, no entanto, lhes exigir sempre o que podem dar. Tudo o que podem dar. Nunca quis ter sobredotados. Ou doutores. Ou carreiras académicas e profissionais de sucesso. Sempre quis ter filhos felizes. Nada é tão importante para mim. Como para qualquer pai. Como para qualquer mãe.
20150614
Se hoje eu
perguntasse ao meu Deus:
“quem é o
meu próximo?”,
o que me
responderia Ele?
Colocar-me–ia
no centro da Parábola, a caminho de casa,
ou da
escola,
ou de um
qualquer outro lugar porque o que importa é o caminho,
é estar a
caminho,
é não criar
outras raízes que não sejam aquelas que me prendem à vida e me permitem
alicerçar-me em Deus?
Dir-me-ia
que sou o Sacerdote,
ou o Levita,
sempre
preocupado com o que tenho que fazer,
com a forma
certa de fazer,
genuinamente
atento ao que é esperado de mim e por isso mergulhado nos papéis
e nas leis
e nas
regras,
e por isso
desligado do mundo,
dos que me
rodeiam,
dos que
comigo contam para poderem ser mais.
Mais
felizes, mais alegres, mais dignos… mais vivos?
Ajudar-me-ia
a descobrir,
em todo e
qualquer momento,
quem é o meu
Samaritano,
quem é
aquele que olha para mim,
que para por
mim
e,
estendendo-me a mão, me levanta e me cura as feridas,
e paga do
seu próprio bolso,
utiliza os
seus próprios meios,
rouba tempo
ao seu tempo e,
sem nada me
pedir,
sem sequer
me perguntar pelo meu nome, entrega-o a mim,
justamente a
mim,
que ainda no
outro dia passei por ele de olhos postos no chão, escolhendo não o ver para não
ter que parar,
escolhendo
não ter que gastar o meu precioso tempo com quem o desperdiça
para não ter
que sujar as minhas mãos nas suas imundas roupas
ou suportar
o seu mau hálito.
Se hoje eu
perguntasse ao meu Deus:
“quem é o
meu próximo?”
Ele
provavelmente olhar-me-ia,
sorriria,
e, cheio
bondade e paciência
- como quem fala a uma criança de cinco anos!
-
dir-me-ia
que o
Samaritano sou eu.
Dir-me-ia,
cheio de
bondade e paciência,
- como quem fala a uma criança de cinco anos! -
que, mais
importante que saber quem é o meu próximo
é fazer-me
eu o próximo de alguém,
é fazer-me
eu o próximo de todos quantos, caídos,
invisíveis
doridos e
desesperados,
vêem todos os
outros a passar ao largo.
Então, o meu
Deus,
cheio de
ternura, de bondade e paciência,
sorrir-me-ia
e diria
- sabendo
que já não sou uma criança, nem tenho cinco anos! -
“Vai.
Os que
precisam de Mim estão à tua espera.”
Escrito para a celebração do 50º aniversário da OSSCM
20150613
Eu sou muito dado a incontinências verbais. Normalmente exerço uma vigilância atenta e constante sobre mim, particularmente sobre o que eu digo, porque tenho uma longa história de percalços linguísticos dos quais depois de arrependo amargamente. Há alturas, no entanto, em que, seja porque ando mais cansado, seja porque ando mais emotivo, seja por pura falta de apetite, parece que há uma autoestrada que conduz o que eu sinto directamente da boca para fora, sem pagar portagem. Ainda há bem pouco tempo deixei que as palavras não passassem pela razão, deixando que o que sentia falasse mais alto, sem filtro, sem sequer me aperceber que o tinha feito. Não seria grave se estas coisas me envolvessem apenas a mim, mas isso nunca acontece e acabo invariavelmente por constranger - às vezes até por magoar - pessoas que me são queridas. Não era à toa que o meu sogro me dizia muitas vezes que "o Calado é um grande jogador!"
No entanto, depois de passado o choque, nunca tenho a certeza do que é melhor: dizer o que vai na alma ou racionalizar o que se diz. Quando os meus filhos eram pequenos, como quaisquer filhos pequenos, diziam tudo o que lhes vinha a cabeça. E então lá estávamos nós a ensiná-los a filtrar o que diziam, que dependia das circunstâncias, do grau de proximidade dos que estavam connosco, dos locais, e até do que tinham a dizer. E eles ficavam confusos, a princípio, porque tinham a sensação que os estávamos a ensinar a mentir. E eu também ficava desconfortável porque sentia que, no mínimo, estava a ensiná-los a falsear o que lhes era natural.
Mas a realidade é que não posso andar a dizer tudo o que me vai na alma. Assim como não posso fazer tudo o que me dá na real gana. E nem sequer é para me proteger, mas para proteger aqueles que vivem à minha volta. Apercebo-me muitas vezes que há leituras muito díspares do que eu faço ou digo. Que posso ter a melhor das intenções, posso ter as coisas absolutamente claras para mim, ter estabelecido até uma linha de raciocínio perfeitamente lógica e depois aparece alguém com uma leitura, igualmente lógica, mas em sentido totalmente oposto ao meu. E aquilo que era pacífico, natural, bom até, torna-se de repente mau e nocivo para os que me rodeiam.
Aprender. Ponderar. Aprender a ponderar. Eis o que seria um excelente workshop para mim. Aprender a contar até cinco (para mim bastaria até três) antes de falar, antes de fazer. Gostaria? Certamente! Ser-me-ia útil? Claro que sim. Seria bom? Não sei. Poupar-me-ia? Com certeza. Mas talvez me retirasse a espontaneidade. E já foi por isso que deixei a terapia da fala.
Bom senso, precisa-se.
20150610
Porque tive que vir com o meu filho aqui perto, estou a meio de uma enorme afluência de recordações. Não vinha ao Maia Shopping há anos e no entanto aqui estou agora, sentado, por puro acaso, numa das mesas onde estivemos todos juntos a jantar, a comer um gelado, a comer qualquer coisa por entre as compras do supermercado.
Gosto muito da geografia dos sentimentos. Durante a minha vida passei por muitos sítios. Vivi em muitas casas, estudei em muitas escolas, trabalhei em alguns lugares completamente diferentes entre si. Em todos eles estabeleci rotinas. De percursos, de paisagens, de pessoas, de olhares. Lugares que me eram perfeitos desconhecidos tornaram-se familiares, com os seus cheiros, os seus sons, o seu movimento automóvel, as horas de ponta e de nada. De todos eles, em determinada altura, tive uma hora de partida. Seja porque tinha mudado de escola, ou de casa, ou de emprego, tive que fazer um corte, do dia para a noite, que acabou por arrastar consigo as pessoas que estavam nessas rotinas. Amigos que eram quotidianos deixaram de o ser, conhecidos com quem me cruzava retomaram os seus lugares de desconhecidos, e o fulcro da vida passou a ser outro. Com novas rotinas, com novas paisagens, com novas pessoas. Nunca fiz grande alarido disso, habituado que estou desde miúdo a esse procedimento. Nos primeiros anos da minha vida vivi em seis ou sete lugares diferentes, só na primária andei em cinco escola diferentes, e chegadas e partidas não me fazem grande confusão. Nem é bom nem é mau, é assim. Ponto final.
Mas aqui neste Maia Shopping tive já estados de espírito completamente díspares. Muito felizes, uns, a princípio, quando vínhamos todos aqui às compras e ficávamos para comer qualquer coisa, ou ir ao cinema, ou simplesmente a ver montras (eu gosto de ver montras!). Muito maus os finais, pouco antes de a rotina assumir outro destino, de completo desespero, de completo sofrimento, de total sufoco, em silêncio, numa solidão estupidamente auto-imposta, não partilhada.
Hoje, é apenas um lugar. Cheio de recordações, mas um lugar. Eu sou já completamente outro, com outro tipo de inquietações, com outro tipo de experiências, com uma outra vida vivida que nada tem a ver com aquela que vivia na altura. Um outro que se me afigurava na altura completamente impossível de existir, com um presente que me parecia estar totalmente fora do meu alcance, com uma serenidade, apesar de tudo, que juraria nunca mais voltar a ser minha. Afinal, o céu acabou por não cair em cima da minha cabeça, afinal consegui refazer a minha vida - e a mim com ela - e aquilo que eu mais temia - ficar irremediavelmente só e destroçado - acabou por não acontecer.
A vida dá muitas voltas. Umas programadas, outras inesperadas, outra com mudanças que se nos escapam por entre os dedos apesar do cuidado que pusemos na sua antecipação. Ir acolhendo a mudança, chorando quando é de chorar, rindo quando é de rir, vivendo ao máximo, aproveitando ao máximo, saboreando ao máximo, parece-me um bom caminho. E sempre em boa companhia. Isso sim, é um bom princípio.
Defendo há muito tempo que, se tivéssemos todos bons amigos, os psicólogos estariam no desemprego. Claro que é uma forma extremamente simplista de colocar as coisas, claro que há pessoas que precisam de algo mais que uma boa conversa, de muito mais que uma boa conversa, que precisam de ajuda para se encontrarem, para se reencontrarem, para se definirem entanto pessoas, e a ajuda de um bom psicólogo é absolutamente fundamental para o conseguir. Eu próprio oiço muitas vezes, de pessoas que me são mito próximas, que precisava de um psicólogo, e dizem-no sempre que se vêem aflitas para me entenderem, e às minhas constantes incongruências e derivações, e não conseguem descortinar um qualquer fio condutor no que digo e/ou faço. No entanto, acredito mesmo que uma boa conversa com quem nos ama o suficiente para estar lá por nós e para nós, para nos escutar, para nos interpretar e, fundamentalmente, para nos aceitar exactamente como somos sem contudo desistir de nos fazer pessoas melhores, faz milagres.
Amigos assim não são fáceis de encontrar e, por vezes, de lidar, Confrontam-nos com as nossas falhas, espevitam as nossas limitações, chamam-nos à pedra e à razão quando percebem que estamos demasiado adormecidos, ou fazemos demasiadas asneiras, e até têm por vezes palavras duras que nos ajudam a descontruir-nos e a levarmo-nos menos a sério. Mas também são verdadeiros pêndulos, que percebem a cada momento o que nos faz mais falta e estão disponíveis e atentos para nos dar o miminho quando mais precisamos dele, o alento que tanto necessitamos, a palavra ou a carícia que cai como se tivesse vindo do céu (e muitas vezes é essa justamente a sua origem), fazendo-nos sentir que, apesar de tudo, ainda valemos a pena.
Mas não são apenas estas as alturas significativas numa amizade. São também aquelas em que nada há a fazer ou a discutir, a crescer ou a mingar, a elogiar ou a criticar, aquelas em que nada nem ninguém aparentemente se recupera, mas em que o tempo flui,a conversa flui, o silêncio flui, e sentimos que estamos tão em harmonia com tudo sem perceber bem porquê. São aqueles momentos puramente de borla, de puro prazer de estar e gozar e saborear a companhia de quem amamos tanto e que sabemos que nos amam tanto. É o estar por estar, sem nada mais pretender, sem nada mais almejar, a não ser que o tempo pare de correr e possamos estar ali indefinidamente. São esses os momentos que alimentam o amor mútuo, que criam o lastro necessário que permitirá, mais tarde, quando for necessário, sempre que for necessário, aplicar a terapia do amor, de que tanto necessitamos.
20150608
20150606
Estavam ambos sentados, em silêncio, ao fundo da capela. Pouco antes lera apressadamente a sua mensagem "estou na capela". Não esperava aquela resposta. É certo que ambos se tinha cruzado há pouco, fugazmente, muito fugazmente, no corredor, e ambos se tinham lido mutuamente naquela fracção de segundos. A leitura da falta de vida num olhar, a certeza que essa falta de vida tinha sido lida, sem apelo nem agravo, sem tempo para a disfarçar convenientemente, no outro olhar. É certo que depois disso tentou evitar o inevitável, dar tempo à reconstrução, voltou a consultar a página 10 do Manual de Instruções, como lhe tinha sido cuidadosamente pedido, e esperou. À distância. Exterior. Apenas exterior. É certo que não conseguira esperar mais quando teve a certeza que algo acontecera e, a medo, perguntara: "posso ajudar?" Mas é mais certo ainda que o que leu a seguir foi inesperado: "estou na capela".
Estavam ambos sentados, em silêncio, ao fundo da capela. Aprendera antes, muitos anos antes, dolorosamente, que há momentos em que o silêncio da dor é preferível à artificialidade do riso. Aprendera que, nestes momentos, quanto maior é o sentimento, maior é o espaço que ocupa, sem requerer nada mais que a pura presença. Estar, nestas alturas, é a única coisa que vale a pena. Estar. E escutar. Por isso abandonara há muito tempo as palavras de circunstância, aquelas que se dizem nestas alturas àqueles com quem nos cruzamos nos corredores mas de quem não se lêem olhares, de quem não se escondem olhares. Por isso se limitou a estar. A dar cumprimento à sua vontade de estar. A dar seguimento à permissão para estar.
Estavam ambos, sentados, em silêncio, ao fundo da capela. E deixaram-se estar, ambos, refugiados da vida que corria lá fora, a escassos metros, refugiados do mundo que continuava a girar, refugiados do barulho que impede o encontro, o belo e profundo encontro, aquele que dispensa as palavras, aquele que dispensa a artificialidade do sorriso, aquele que dispensa a camuflagem do sofrimento, aquele que une verdadeiramente.
Estavam ambos, sentados, em silêncio, ao fundo da capela. Gratos, ambos. Abençoados, ambos (abensonhados, como aprendi). Porque se permitiram, naquela altura, estar ali sentados, em silêncio, no fundo da capela. Juntos.
20150604
Sempre gostei das manhãs de nevoeiro, que me intrigou sempre. Saber que há mundo para além do mundo que consigo ver num dado momento, confiar que o que estava ali anda ontem continua ali, apesar de tudo, poder aventurar-me no verdadeiramente desconhecido, seja porque nunca lá estive, seja porque não sei exactamente o que me espera desta vez, constituem momentos que têm demasiadas similitudes com a fé e com a minha própria vida para que me possam passar ao lado.
Quando me disse, ontem, por entre gargalhadas, que não sabia ainda se iria renovar, não me surpreendeu. "Tenho medo de me acomodar, e continuar seria demasiado fácil. Se não gostasse tanto daquilo..." Por vezes consigo ver nele alguns traços do que, noutros tempo, também me moveu. A vontade de ser mais, o desejo tremendamente impulsionador de fugir às circunstâncias, de encontrar uma outra realidade que nos permita sermos absolutamente normais, absolutamente cinzentos, absolutamente invisíveis, são motores poderosíssimos. Mas algo mais profundo nos une: a (r)evolução que começa por dentro, que será até quase imperceptível a um olhar menos atento, a serenidade exterior fortemente contrastante com o que se passa lá por dentro - tenho-me lembrado tanto do Martin Rubber Duck, do Convoy! - e a evolução constante, sem rupturas assumidas. numa naturalidade laboriosamente construída, numa contenção permanentemente, são traços que já foram meus e que revejo nele.
"Gostava de não regredir até voltar a ser assim. Falar mito alto, gesticular muito, não me fazer passar despercebido." Olhou-me com aquele olhar que eu leio tão bem há tantos anos e que me dizia que não tem nada a certeza que isso não acontecesse. Gostaria de ter eu aquela certeza que estivesse enganada, mas não a tenho. De todo. Por vezes penso que o passado está demasiado longe para que me possa revisitar. Noutras, porém assombra-me as noites com demasiada facilidade. Em sonhos recorrentes, com as mesmas personagens, com as mesmas histórias, com os mesmo casos mal resolvidos, comigo invariavelmente dizendo o tanto que ficou por dizer, comigo invariavelmente fazendo o tanto que ficou por fazer, assumindo finalmente o tanto que escolhi desperceber.
Sempre gostei das manhãs de nevoeiro. Fazem-me voltar além do olhar.
20150602
Tenho ainda bem presente uma discussão taizeniana acerca de copos meio cheios e meio vazios e realismos e fantasismos e pessimismos e otimismos. Por isso sorri quando entramos pela portaria principal e, olhando o cartaz de Timor, pensei "já conseguimos mais de metade", e ela disse, em voz alta "ainda falta muito para atingirmos o objetivo". Dificilmente algo seria mais esclarecedor!. De um lado eu, sempre a olhar para o que já tenho, sempre a valorizar o que já tenho, sempre a apreciar a paisagem, a saborear a viagem, sem dar demasiada importância ao destino. Do lado oposto ela, sempre com os objetivos bem definidos, sempre com os pés demasiado assentes no chão, de olhos postos no papel enquanto lá fora a paisagem vai desfilando, sem que ela dê conta. Algures no meio, o nós, sempre a chamarmos a atenção ao que escapa, sempre a apresentarmos a nossa própria visão do mundo, sempre a impormo-nos a visão do outro, sempre a descobrirmos o novo através do seu olhar e da sua postura sobre a vida. Tem sido assim desde sempre e, francamente, quem tem saído a ganhar têm sido os meus filhos. Têm o melhor de dois mundos - ou o pior deles se não souberem escolher a melhor altura/pessoa quando querem alguma coisa - e sabem já que, filtrando o que um e outro diz ou faz, terão o caminho mais sensato e mais seguro. Nós também sabemos já que há determinadas áreas que remetemos para o outro. Os estudos, por exemplo, não são bem a minha área "pai, tive 15. Ótimo filho" "mãe tive 15. Só? Andas a brincar!" Tempos houve em que tentamos conciliar tudo antes de chegar aos filhos. Combinávamos posturas e formas de fazer e de dizer para que eles nos pudessem ter a uma só voz. Era isso que os educadores aconselhavam, era isso que os nossos amigos faziam e tentávamos, como pais, ser o que todos os pais querem ser: perfeitos. Em vão. Fomos descobrindo que o nosso bom senso aliado ao conhecimento dos nossos filhos e de nós próprios ia chegando para, pelo menos, irmos tateando o caminho. Não tínhamos a segurança do olhar dos especialistas mas tínhamos os nossos filhos a caminhar connosco, com avanços e recuos, como sempre tem sido a nossa vida. Sempre fomos cartas fora do baralho. Vínhamos de vidas muito diferentes, temos formas diferentes de viver o mundo, por vezes com perspetivas quase irreconciliáveis, que originaram discussões intermináveis, ainda não definitivamente acabadas. Contra a corrente, contra as probabilidades, contra o instituído, contra o que muitos dos que nos conheciam esperavam, vivemos todo este tempo muito felizes, e esperamos viver outros tantos, pelo menos.
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Bambora
Não é estranho que nos digam que «ser homem é muitas vezes uma experiência de frustração». Mas não é essa toda a verdade. Apesar de todos ...
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Somos bons a colocar etiquetas, a catalogar pessoas, a encaixá-las em classes e subclasses organizando-as segundo aspetos que não têm em c...
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"Guarda: «Temos menos sacerdotes e, por isso, precisamos de valorizar, cada vez mais, os diferentes ministérios e serviços laicais nas ...
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Sou contra o aborto. Ponto. Sou-o desde sempre. A base da minha posição é simples: acredito que a vida começa com a conceção. Logo, não é lí...