20140328
Uma das coisas que mais temo é de ficar cheio de mim. Porque sei que o tendo a fazer, porque já o fiz e dei-me muito mal com isso e, sobretudo, fiz muita gente importante na minha vida infeliz com isso. Mesmo aqui, no blogue, volta e meia deixo-me embalar por essa malfadada tentação e armo-me em peru, com o peito cheio de nada, escrevendo bacoradas atrás de bacoradas. Mas é também para isso que escrevo e é também por isso que mais alguém sabe que escrevo.
Normalmente, quando alguém me elogia, envio-lhe o endereço do blogue. É uma defesa. É uma forma de lhe dizer para me ler e dessa forma me ir conhecendo um pouco melhor e baixar as suas expectativas. Eu próprio, quando me releio, acho incrível a forma por vezes leviana como registo o que vou sentindo, não por o deixar registado mas por o sentir, porque sequer o pensar. Quando me releio - e reler-me tem sempre o efeito de voltar a sentir o chão - consigo identificar os momentos em que estava eufórico, aqueles em que estava triste, e mesmo as imensas alturas em que tenho mesmo que escrever senão rebento.
Escrever no blogue tem também esta coisa. Demasiadas vezes, quando estou sozinho, penso alto, digo o que não quero nem devo, mas isso fica apenas comigo. Quando me apercebo disso, levanto-me, sacudo a lama da alma, e sigo a minha vidinha como se não tivesse sentido ou dito coisa alguma. Aqui isso não acontece. Fica registado. Não altero, não corrijo, não refaço, não adequo às circunstâncias. Aqui deixo, para que eu possa atestar e confirmar, toda a minha incongruência, as minhas limitações, as minhas dúvidas, que refletem a procura constante de nem eu sei bem o quê e que nunca encontro por muito tempo.
20140327
Quase todos os anos, no âmbito dos grupos de pastoral de que faço parte, surge a proposta de brincarmos aos pobrezinhos: por uns tempos, na quaresma, por exemplo, vamos passar algumas refeições sem comer para nos solidarizarmos com os que nada têm para comer. Oponho-me sempre, algumas vezes de uma forma veemente, porque entendo que é um insulto para quem nada tem. Talvez porque eu já testemunhei o que era isso, talvez porque eu já vi a aflição dos meus pais, talvez porque em algumas alturas da minha vida o que tive foi o necessário para matar a fome e nada mais, talvez porque hoje em dia contacto com pessoas que, efetivamente, nada têm para comer e não sabem onde o poderão ir buscar, tudo o que seja brincar às fomes parece-me um insulto. Nunca nenhum de nós saberá o que é ter efetivamente fome. Nunca nenhum de nós saberá o desespero de ver um filho esfomeado e nada ter para lhe dar. Nunca nenhum de nós saberá o que será, não saltar uma refeição sabendo que a poderá retomar quando o "sacrifício" passar, mas não saber quando e como e o que se poderá meter à boca. É insultuoso que nós, pessoas mais ou menos bem instaladas na vida, tenhamos sequer a pretensão de imaginar o que é viver nessas condições. Melhor - e muito mais difícil - seria que dedicássemos pelo menos os 40 dias a ir ao encontro dessas pessoas e dar-lhes meios e soluções e apresentar-lhes caminhos para poderem ultrapassar essa miséria, ainda que, muitas vezes, seja de cabeça. Melhor seria que nos deixássemos de brincadeiras e nos dispuséssemos a ir ao encontro verdadeiro, radical e total dessas pessoas e tentar resolver a sua vida. Não temos tempo? Se quisermos sentir uma miragem das suas dificuldades, tenhamos a coragem de pedir uma licença de 40 dias e de os passar junto deles, comendo o que calhar, dormindo o que calhar e onde calhar, sujeitos ao que a vida nos poderá dar. Aproveitemos esse tempo para formar, para educar, para sensibilizar, para irmos com eles às instituições de apoio e percebermos o que é ser olhado de soslaio mal se chega a uma sala, o que é nem sequer nos olharem. Gastemos esses dias a tentar arranjar-lhes emprego, com a sua formação, com os seus níveis escolares, com o seu passado acumulado de desastres sucessivos. Passemos esses dias tentando fazê-los perceber que a maior parte das vezes estão a colher o que semearam e que é fundamental que tentem dar a volta à situação. Não conheço ninguém capaz de o fazer, mesmo sabendo que no fim desses 40 dias poderá voltar a sua casa. Vai, vende tudo o que tens e junta-me a mim. É radical? É sim senhor. É definitivo? É sim senhor. Eu sou capaz de o fazer? Não sou, não senhor. É demasiado o que me prende ao chão, é demasiado o medo do desconhecido, é demasiada a confiança no dinheiro que se tem que ter para assegurar minimamente o futuro e, por contrapartida, é demasiado pequena a minha fé e a minha confiança naquele que não deixa que nada de mal me aconteça. Mas, enquanto não consigo abraçar essa radicalidade, pelo menos tenho consciência da minha pequenez e não insulto ninguém brincando aos pobrezinhos.
20140326
Gosto muito do meu amigo Mestre Tempo. Gosto do que ele me
faz, dos cabelos a embranquecer e a começarem a rarear, o corpo a mudar, de
olhar para o espelho e ver alguém mais parecido com o meu pai que com a ideia que
eu tinha de mim. Gosto mais ainda da transformação interior que lhe está
sujeita: vou ficando progressivamente
mais maduro, mais calmo, descobrindo a capacidade de dar o devido peso
às coisas, relativizando mais, descortinando com maior facilidade o gozo de
subir a montanha aproveitando cada paisagem. Mas gosto, sobretudo, do
privilégio que apenas o Mestre Tempo me pode dar: a possibilidade de
testemunhar o seu efeito naqueles que são parte de mim. Porque acredito muito
que nós nunca somos apenas nós, mas também aqueles que connosco transportamos.
E que não seríamos nunca os mesmos se, por artes mágicas, pudesse ser passada
uma esponja na nossa memória e dela se apagassem as brincadeiras, o choro e o
riso, a oração, o silêncio, a distância…
Apesar de, nesta altura, o meu percurso de vida não passar
pela Capela, eu não seria nunca o mesmo se a minha vida não a tivesse como
lugar de referência. Regressar à Capela é sempre voltar a casa, reconhecer
olhares, recordar vidas e momentos enormes passados em conjunto. É recordar
pessoas e orações e noitadas e passeios e sardinhadas e batalhas interiores e
exteriores para tentar descobrir quem é este Jesus que aí me fizeram descobrir
e desde aí me interpela todos os dias. É recordar compromissos sérios e
fecundos com malta nova e malta menos nova, é também medo de não ser capaz de
transmitir a fé àqueles que comigo contavam para ajudar a construir as suas
vidas. É recordar fins de semana fora de casa e retiros e partilhas de vida tão
intensas quanto transformadoras, que fazem com que os olhares tenham nome, com
que o presente tenha passado e eu esse passado seja, fundamentalmente, motivo
de orgulho.
Regressar à Capela é regressar ao Boa Nova, ao Navegar, ao
RH+. E é, por isso, também alguma dor. Acredito que quem sai de casa não deixa
de sentir nunca que uma parte importante de si ficou naquela casa. Apesar
disso, temos que sair, sob pena de ficarmos sem saber quem verdadeiramente
somos. E, quando o Mestre Tempo o impõe, também temos que deixar sair. Não
podemos fazer como Pedro, que quer fazer uma tenda para Jesus, Moisés e Elias e
esquecer que o mundo existe. E existe lá fora.
Encontrar-me com a malta do Navegar não é nem pode ser
regressar ao passado. Estamos todos mais velhos, porventura mais sábios, com
outras responsabilidades que não podemos nem queremos abandonar. Aqueles que
amamos e com quem prometemos partilhar a vida são já outros, como deve ser, e
se combinássemos um acampamento de fim de semana gastaríamos tanto tempo a
preparar roupinhas e biberões e formas de carregar playstations, que aproveitaríamos
o acampamento para dormir. É assim. E é assim que deve ser. No entanto, se não
podemos nem devemos regressar ao passado, não o devemos esquecer nem deixarmos
de nos orgulhar dele. Basta-me ver as vossas famílias, os vossos filhos, os
vossos projetos de vida, a forma como todos, com maior ou menor dificuldade,
vão enfrentando as batalhas e as vão tentando ultrapassar, para perceber que
tudo vale a pena. A fé que vos tentamos transmitir não pretende ficar confinada
a uma manhã de domingo, mas transformar-se em vida vivida. E foi essa vida
vivida que, do sossego do meu canto, pude testemunhar no domingo passado. E
isso foi muito bom.
Obrigado
Grandes Abreijos
Zé Armando
Enviado ao Navegar depois do Encontro de Domingo
20140325
Há algo que intuo, de há muitos anos para cá, e que nunca consegui transmitir convenientemente aos meus filhos. Provavelmente porque é apenas isso, uma intuição, que apesar de me acompanhar há bastante tempo, vai sendo alternadamente confirmada e desmentida, todos os dias, e por isso também eu tenho dias em que acredito nela e outros em que sou o maior dos descrentes. Todas as pessoas que eu conheço têm coisas muito boas. A forma como as demonstram pode ser rara, podem passar completamente despercebidas durante meses a fio, por vezes até anos, mas de repente há um gesto, uma atitude, que me desarma completamente, que questiona todo o trabalho de etiquetagem laboriosamente construído por mim. E então olho para quem me surpreendeu dessa forma com um olhar totalmente novo, como se tivesse descoberto a pólvora debaixo de água. A minha dificuldade reside no facto de depois, quando tento transmitir o que testemunhei, quase ninguém acreditar. "sim, pois, não estava nele naquele momento e vais ver que não tarda a voltar ao normal". O pior de tudo é que, ao fim de algum tempo, eu tendo a dar razão a estas vozes carpideiras e convenço-me que foi mesmo um fogacho. Até á próxima vez.
Nas nossas reuniões do Centro, há algo que eu repito sistematicamente: "não podemos ter ilusões". Todos se voltam contra mim, todos me contestam, e a sensação que eu tenho é que ninguém percebe o que eu quero dizer. Viver sem a expectativa do outro pode ser um risco, mas é o garante da liberdade. Ficar á espera do que ele faz, naquele dia, naquele momento, e apreciar aquele seu gesto ou atitude é não o seu historial é o que permite que cada um vá corrigindo o seu percurso a cada momento, é o que permite que digamos que assim é que se cresce. Se estivermos sempre a comparar o que faz com o que fez e prever, com base nisso, o que irá fazer, não estamos a viver a realidade mas a nossa expectativa da realidade. Eu tenho expectativas em relação às pessoas. Aprecio a sua evolução, aprecio o seu caminho, mas não tenho qualquer ilusão: qualquer caminho tem altos e baixos, tem momentos bons e maus, tem curvas erradas e muitos despistes. Esperar que a viagem pessoal não seja atribulada, isso sim, é ter ilusões.
20140324
Ontem tive encontro do Navegar. Ao longo da minha vida estive na génese de vários grupos de jovens. O Boa Nova, onde me iniciei nestas lides, depois o JUP, que foi a minha escola de fé e de vida e, mais tarde, já no papel de orientador mor, o Navegar e o RH+, aos quais se junta, agora, o ComTigo. Já este ano tivemos o encontro do JUP, ontem foi o do Navegar. Em ambos a mesma saudade, as mesmas recordações de outros tempos em que eramos mais novos, mais magros, mais livres, mais sonhadores. Em ambos, o mesmo desejo latente de recuar no tempo e de o imobilizar. O mesmo propósito de "vamos voltar a fazer isto", como se alguma vez fosse possível fazermos as coisas como as fazíamos antes, como se não tivesse passado já tanta água debaixo das pontes, como se não fossemos nós já outros, completamente outros, porque viver a vida muda-nos, como deve ser. E em ambos, como confessei ontem à noite em casa, o mesmo desconforto.
Basta ter muita gente à minha volta para me sentir desconfortável. Então se toda essa gente de organizar para prestar algo remotamente parecido com uma homenagem a nós próprios e o desconforto aumenta exponencialmente. Eu não acredito que a vida seja repetível. Eu não quero que a vida seja repetível. Eu já fui e fiz tanta coisa depois desse nós que não quero que esse nós volte, nas condições em que ele existiu. Em todos os grupos de jovens que estive, estive como na vida: empenhamento total, compromisso total, exclusividade voluntária. enquanto estava lá estava apenas lá, pensava apenas neles e vivia esses momentos com uma intensidade incrível. Excetuando o JUP, no qual eu era apenas um como todos, em todos os outros grupos, a determinada altura comecei a sentir uma dependência excessiva, como se eu fosse fundamental, e que isso desvirtuava o grupo. Por isso, em todos eles eu senti, a determinada altura, que era tempo de os fazer caminhar sozinhos, de os deixar para que eles pudessem ser, sem mim, mas ligando-se àquele que verdadeiramente importa. Em todos eles eu deixei, por isso, um certo amargo de boca. Uns ultrapassaram isso, outros nem tanto, e volta e meia pedem-me contas. E eu dou.
Os Grupos de Jovens são, por natureza, de jovens. Por isso, acabam e devem acabar, ou então mantêm a identidade mas alteram os seus membros. Porque é suposto que assim seja. Porque não somos jovens toda a vida. Porque, quando as coisas correm bem, passamos a ter outro tipo de compromissos, outro tipo de vontades, outro tipo de disponibilidades. O que não quer dizer que tenhamos andado a enganar ninguém ou a servirmo-nos de quem quer que seja. Quer apenas dizer que fomos jovens quando o devíamos ser, mas que crescemos quando deveríamos ter crescido. Graças a Deus!
20140321
Há uns anos, ouvi um aluno a referir-se à sala pequenina do CR como a sala dos anormais. Nunca tinha pensado nisso e, embora os termos não devessem ter sido aqueles, ele não mentia. Aquela era, efetivamente, a sala dos que não são como os outros. Eu, a Maria e o Mi, na realidade, fugimos, cada um à sua maneira, do que é considerado a normalidade. No entanto, sempre achei que a normalidade é muito sobrevalorizada.
Ainda esta semana tentava explicar isto ao meu filho mais novo, que está naquela idade em que quer parecer igualzinho aos amigos. Expliquei-lhe o conceito matemático da moda, que é a variável que mais vezes se repete, e disse-lhe que num mundo cada vez mais igual é muito importante que ele desenvolva a sua personalidade, e que isso é uma mais valia. E que a personalidade está ligada à forma como cada um descobre e aceita a sua própria forma de ser, sem se preocupar em demasia com aquilo que os outros pensam. Disse-lhe também, para seu espanto, que essa era uma das vantagens de eu gaguejar. Ele, que nunca me falou disso, nunca se tinha apercebido que a deficiência pudesse ter uma vantagem, qualquer que ela fosse. E tem algumas.
Naquela salinha do fundo do CR testemunhei alguns dos momentos mais ternos e cómicos que já vivi naquela casa. A inocência da Maria, a sua enorme sensibilidade e, por outro lado, a irreverência do Mi e a sua extraordinária inteligência, ajudam-me a acreditar na multiplicidade da vida e naquilo que é invisível aos olhos. Aquilo que é, para os olhares menos atentos, deficiência, é, na esmagadora maioria dos casos, vida e alegria no seu estado mais puro, sem aqueles entraves e barreiras que nós estupidamente criamos para nossa defesa. Conviver todos os dias com pessoas assim é uma Graça que faz falta a muitas pessoas que conheço, que vivem obcecadas com as suas pretensas e muitas vezes inventadas imperfeições. Pudessem elas testemunhar a alegria natural da diferença, deixassem-se elas contagiar por essa visão menos obtusa do que é perfeito, e a sua vida ganharia muito mais sentido. E aí, só ai, estariam um bocadinho mais perto da perfeição.
Vivemos sempre numa pequena comunidade familiar. Como vizinhos de porta tivemos os meus sogros e uma data de tios, uns com filhos outros sem. Durante anos, beneficiamos imenso dessa proximidade: os meus filhos nunca souberam o que era levantar cedo para ir para o infantário, sempre tiveram a comidinha caseira quando andavam na primária e sempre tiveram alguém à sua espera com um almocinho quente ou um lanche preparado cheio de mimo quando chegavam da escola. Nós, pelo nosso lado, também nunca soubemos o que era vir trabalhar deixando os filhos com febre num infantário, sempre tivemos quem cuidasse deles, quem os acompanhasse de perto, quem os mimasse como apenas quem tem muito tempo sabe mimar. Ganhamos todos: nós, pelo descanso e confiança, os nossos filhos, pelo cuidado e acompanhamento, os meus sogros e tios, porque tinham sobre quem se debruçar no entardecer da sua vida.
Agora, de alguma forma, as situações inverteram-se: são já eles quem precisa de cuidado e de mimo, e somos nós quem está em condições de os irmos providenciando. São eles quem, agora, nos batem à porta, quem tem as refeições quentinhas e os miminhos ao fim do dia, quando todos chegam a casa.
No meio disto tudo, eu fico sempre um pouco à margem. Por pura incapacidade. Disponibilizo-me para o que é necessário, mas não tive nunca a capacidade de me tornar presente, qualquer que fosse o momento, qualquer que fosse a circunstância, como a Isabel tão bem faz. Mesmo perante a disponibilidade dos meus filhos (particularmente das minhas filhas, que são mais desembaraçadas neste campo), eu fico sempre muito aquém, refugiando-me excessivamente no meu pequeno mundo e, sobretudo, desculpando-me com as minhas enormes dificuldades. Bem sei que a infância marca muito e o facto de eu, nos primeiros anos de vida, ter passado por uma imensidão de moradas, dificulta a minha ligação natural a tudo o que não é o meu núcleo familiar. Os outros dificilmente deixam de ser os outros, e apenas consigo ultrapassar esta limitação fazendo um esforço consciente de que assim não está correto.
Esta Quaresma está a ser particularmente desafiante. Todas as juras de amor e conversão têm sido postas à prova, quase todos os dias, e quase sempre perdi.
Parece que estou no bom caminho.
20140319
Se me pedissem para me definir numa só palavra, a resposta era fácil: pai. Eu sou pai. Tirem-me isso e tiram-me tudo, absolutamente tudo, fico sem qualquer motivo para sequer respirar. Nada me dá mais gozo, nada me ocupa mais tempo, nada me ocupa mais de mim e em mim, nada é tão exigente, nada é tão bom e tão total como ser pai. Era o que mais temia, é o que mais e melhor me preenche. Conhecer a fundo os meus filhos, acompanhá-los, ficar atento aos pequenos e grandes sinais, ter as pequenas e grandes conversas, a sós ou gerais, ter o enorme privilégio de os ver crescer por dentro e por fora, batalhar por eles e com eles, todos os dias, ajudá-los a resolver os problemas com que se vão deparando, aprender a ser humilde e a levar na cabeça quando é preciso, reconhecendo-lhes capacidade para o fazer, tudo isto e muito mais, é motivo mais que suficiente para preencher uma vida.
E um casamento.
Nós vivemos em função dos nossos filhos, preparando-lhes o caminho, fornecendo-lhes as ferramentas para que eles o possam escolher e continuar da melhor forma possível, sem, contudo, nos esgotarmos neles. Vivemo-los, respiramo-los, mas não nos aniquilamos, nem enquanto pais, nem enquanto casal, nem enquanto pessoas. Porque eles e nós também precisamos disso, desse espaço, dessa distância artificial e ilusória mas absolutamente essencial para que eles possam ser.
Não há uma forma correta de ser pai. Não há outra forma de o ser senão às apalpadelas convivendo todos os dias com a dúvida e a incerteza, não sabendo nunca se tomamos a decisão certa, se fomos demasiado tolerantes ou demasiado exigentes, sem nenhuma certeza a não ser aquela que vamos bebendo do amor pelos nossos filhos.
É difícil ser pai. Acredito, no entanto, que seja ainda mais difícil ser meu filho. Mas nenhum de nós se tem dado mal com essa exigência totalizante e totalizadora. Afinal, é apenas de amor que se trata.
20140317
Ontem, porque era domingo, festejamos antecipadamente o 93º aniversário da minha avó, que fará anos na próxima quarta feira. A vida ditou que nunca tivéssemos sido muito próximos. Como acontece muitas vezes nas famílias com dificuldades financeiras, a minha irmã foi para casa dela enquanto eu fiquei com os meus pais. Era uma forma de aligeirar as dificuldades, mas que teve, como não poderia deixar de acontecer, alguns custos.
Há pouco tempo, no entanto, apercebi-me que não teria avó por muito mais tempo e dispus-me a visitá-la mais frequentemente, a ir lá a casa para estar com ela. E tem sido muito bom. Ela fica felicíssima quando chego lá e, como normalmente ficamos apenas os dois, conversamos aquilo que nunca conversáramos antes. E como ela sabe que estou ligado a estas coisas de Deus e da fé, ela fala muitas vezes da vida e da morte, que é o seu futuro mais próximo e mais real.
As visitas à minha avó, as nossas conversas, o conhecimento que vou tendo dela, tem contribuído para me ir desmontando. Eu não sou de colocar etiquetas nas pessoas mas, infelizmente, sou muito de as colocar em mim próprio. Ando sempre à procura da melhor gaveta para mim, do lugar onde poderei encaixar melhor, de me tentar perceber e prever. Não tem sido uma tarefa fácil. Cometo mitos disparates, digo muitos mais ainda, e às tantas sinto-me meio a navegar. Na realidade, tenho que aprender a pensar menos, a questionar-me menos e, sobretudo, a falar menos.
Escutar mais, aprender mais. A minha avó ajuda-me bastante a fazer isso. Quem pensa que as pessoas, qualquer que seja a sua idade, qualquer que seja a sua condição, são dispensáveis, está ainda mais perdido que eu.
20140314
Por vezes penso que, se há indústria que está em pleno desenvolvimento cá pelos meus lados, para a qual nunca há nem há de existir crise, é a geologia. Conheço pessoas para quem parece que o único objetivo de vida é descobrir falhas. Mais: algumas delas estão plenamente convencidas que proclamar as falhas alheias é um desígnio pessoal, uma tarefa de tal forma importante que o mundo acabaria se não fossem os seus sempre ajuizados e cheios de razão gritos de alerta. Vivem permanentemente atentas ao que não corre bem, interpretando cada oscilação menos perfeita como o pré-anúncio de uma hecatombe.
No entanto, todos os geólogos deste tipo que conheço, são ainda mais implacáveis para si próprios que para os outros. São, por isso, pessoas frequentemente amarguradas, desconfiadas, pouco seguras de si, para quem a única certeza é que a catástrofe acabará, inevitavelmente, por acontecer. É como se escolhessem relevar apenas o lado escuro da vida, interpretando tudo o que a vida tem de bom como demasiado fugaz e ilusório. Cultivam a infelicidade como modo de vida e têm medo, muito medo, de serem felizes, porque se alguma coisa corre bem é porque, de certeza, alguma coisa muito má estará para acontecer.
Normalmente, para estes geólogos, a verdade está acima de tudo, é o valor mais alto, e por isso a proclamam cheios de orgulho, não percebendo que há pessoas que, se nada dizem, não é porque não consigam ver a verdade, mas porque entendem que há verdades que não vale a pena serem ditas, ou que há alturas e formas diferentes de tentar fazer ver a verdade, recatadamente, sem por ninguém em causa nem provocar pânico. Então existem eles, os paladinos da verdade, os corajosos, que dizem o que querem custe o que custar, doa a quem doer; e os outros, aqueles para quem o mundo não é preto e branco mas tem tonalidades, tem cores, tem outras formas de ver a vida e, sobretudo, de viver a vida.
E isso, para qualquer geólogo que se preze, é perfeitamente incompreensível!
20140313
Por vezes, descubro-me ridículo. Este ano, como em todos os anos, prometi-me uma quaresma especial. Iria ter paciência, calma, atenção para com os outros, iria jejuar de mim mesmo, abster-me de mim para me voltar para os que acompanham o meu quotidiano. Ridícula, esta minha pretensão de me tronar especialmente digno aos olhos de Deus. Logo nos primeiros dias o meu compromisso foi posto à prova. E esquecido. As promessas cumprem-se na dificuldade, e, na dificuldade, voltei a ser eu mesmo, não me consegui sobrepor a mim próprio.
Não sou ridículo quando pretendo ser mais. É o que o meu Deus me pede, que me ultrapasse, que vá para além dos limites que eu julgo serem os meus. Por isso é que Ele vai colocando pessoas muito especiais na minha vida, que confiam em mim, que me desafiam, que me levam a percorrer caminhos que nunca seriam os meus. No entanto, sou ridículo quando pretendo jogar com Deus, trocar promessas, catapultar-me para ficar mais bem visto aos olhos d'Ele, esquecendo-me que ele me conhece bem melhor que eu próprio, que antecipa os meus passos e perscruta o meu coração.
Esta consciencialização de mim próprio, das minhas limitações, acontece-me, invariavelmente, em todas as quaresmas. É a minha Quaresma. É a minha constatação, na vida vivida, da minha pequenez. Todos os anos prometo e todos os anos deixo por cumprir. E redescubro o meu lugar.
20140312
Vivi uma parte importante da infância no centro do Porto. Por isso, os vizinhos e os estranhos são culpados até prova em contrário. Quando muito, cumprimentam-se quando nos cruzamos na rua, e pouco mais, para evitar confusões. A distância é boa, e eu gosto.
Esta era a minha formatação. E continua a ser, instintivamente, embora atenuada pela vida vivida. No entanto, tudo isto muda mal estabeleço contacto com alguém. Que até pode ser fugaz, com uma simples conversa ou, nos casos especiais, com um simples cruzamento de olhares acompanhado de um sorriso. Aí, essa pessoa passa a ser inocente até prova em contrário.
Uma vez ouvi o Ricardo Araújo Pereira dizer que conhecer as pessoas lhe dava prejuízo porque depois de estabelecer uma ligação não conseguia fazer delas o alvo das suas brincadeiras. É um pouco isso, o que se passa comigo. Depois de conhecer alguém não consigo ter cuidado, ficar de pé atrás, não dar o benefício da dúvida. Claro que volta e meia tenho amargos de boca, tenho desilusões, tenho experiências muito desagradáveis com atitudes que não consigo prever nem perceber. Quando isso acontece, a luzinha do sobreaviso acende e eu fico mais atento nos tempos mais próximos. Mas passa-me rapidamente. Recomeçar é uma das minhas mais perenes condições de vida. São incontáveis as vezes em que me foi permitido recomeçar.
Esta capacidade de recomeçar e, fundamentalmente, de permitir recomeçar - que é daquelas coisas que sinto que me foram dadas e nada fiz para ter - tem-se revelado particularmente útil no Centro. Aquilo que muitos destes miúdos mais necessitam é justamente que lhes permitam recomeçar, que lhes permitam viver sem estar permanentemente a recriminá-los, que lhes façam sentir que o desejo de futuro é mais importante que a angústia do passado. Para quem já feriu e foi ferido, deixar refazer é mais importante que fazer de novo. E isso apenas se consegue confiando. E esquecendo os amargos de boca.
20140311
Nunca me considerei fora deste mundo. Tenho demasiada vida vivida, tenho demasiado passado e, sobretudo, tenho demasiado sonho de futuro para sequer ter a vontade de viver num mundo à parte. No entanto, tenho já alturas em que não me é muito fácil encaixar em algumas das coisas que esta malta nova faz. E que publicita, escancara, nas redes sociais. Há pouco tempo era a história de beber a cerveja de penalty, hoje vi uma outra coisa do género: dois estranhos a beijarem-se pela primeira vez enquanto esse momento é registado para o Facebook.
Eu percebo que muita desta malta nova ande à deriva. Muita multidão, muito ruído, muita confusão, muita sofreguidão de viver. Neste ponto não são muito diferentes do que eu era na idade deles. Mas eles têm um problema: uma enorme desconfiança do futuro, que deriva de uma profunda descrença. Perderam a referência familiar - provavelmente os pais andam eles próprios ainda á procura de si mesmos - perderam o sentido da vida, não acreditam já nos amanhãs que cantam nem no mundo que há de vir, têm medo de ficar sós e tentam contrariar esse temor da solidão da pior forma possível: expondo a pior parte de si, fotografando-se e filmando-se na superficialidade e no vazio. O que lhes é próprio, original, único, o que faz deles pessoas com sentido, é escondido dos olhares alheios, por vergonha da diferença. Segundo eles, o que é importante tem que caber num like, em 140 carateres ou numa sms. O que vá além disso é ultrapassado.
Uma das coisas que mais me intriga é que este não é um comportamento estanque. Não há alguém que é assim e outro alguém que é assado. Não há pessoas com um determinado comportamento e outras com outro. Há pessoas, jovens ou não, que em determinada altura, têm este comportamento de uma forma massificada e irracional, que agora estão num desses desafios completamente parvos e mentecaptos e uma hora depois estão com a mesma naturalidade e a mesma entrega numa oração plena de silêncio e profundidade.
Até pela minha profissão, até pela malta com quem vivo a maior parte de cada um dos meus dias, até pelo profundo interesse - preocupação? - que me despertam, vivo tempos profundamente desafiadores. Por um lado, inquieta-me, incomoda-me, a sua forma de vida. Por outro lado, no entanto, por vezes tenho enorme dificuldade em lidar com o seu desperdício de dons e talentos, com o seu deixar andar, com o Carpe Diem de que tanto se orgulham.
20140308
Quando estava a pensar se me casaria ou não, estava aterrado com a possibilidade da monotonia. Impressionava-me muito saber que iria acordar todos os dias junto da mesma pessoa, ter as mesmas conversas, retomar as mesmas discussões e não sabia se era isso o que eu queria. Sabia, sim, é que a decisão seria definitiva, que nunca fui homem de biscates.
Casar é tudo menos monótono. Não é fácil, não é um passeio no parque, tem muitas alturas com pouca luz, com poucas certezas, com rara clarividência. Discute-se muito, batalha-se muito, recomeça-se muito, e às tantas questionamo-nos o que tudo isto tem a ver com as relações softs e perfeitas das comédias românticas.
Mas depois acordamos e adormecemos, dia após dia, noite após noite, e percebemos que a nossa história de vida é já uma vida plena de histórias. E que, sem o nós, a nossa vida seria incomensuravelmente mais pobre, mais vazia, mais cheia de coisa nenhuma. E não me refiro sequer aos nossos filhos mas a nós mesmos, enquanto duas pessoas que, por amor, escolheram partilhar o mesmo destino.
Conversava ontem com uma amiga que me dizia que nem todos têm a sorte que eu tive. É possível. Porque eu tive mesmo muita sorte. Mas acredito que a sorte aconteceu quando Deus, brincando com a nossa história pessoal, contra todas as probabilidades, colocou a Isabel no meu caminho. E acredito que muito do que tem acontecido depois, aconteceu porque nós temos mantido Deus no nosso caminho. E isso, acreditem, faz toda a diferença.
20140307
"És pó..."
No final da conferência, perguntou-me se a minha vida tinha sido sempre um mar de rosas. Apeteceu-me dizer-lhe que pancada é o meu nome do meio. Por vezes acho que a minha vida é quase só pancada. Quando penso que as coisas estão finalmente a encarreirar, vem a vida e encarrega-se de me colocar os pés no chão.
"És pó..."
Eu sei que sou pó, eu sei que me sinto muitas vezes fogo de vista, eu sei que quem torto nasce tarde ou nunca se endireita, eu sei isso tudo, mas por vezes apetece-me muito voltar as costas a tudo, pegar numa mochila, e arrancar, sem olhar para trás.
"És pó..."
Disse-lhe que não, que não era tudo um mar de rosas, mas que eu faço um esforço para dar importância apenas àquilo que é verdadeiramente importante. É uma questão de escolha. Como toda a minha vida. Creio que se tivesse caída numa fossa e estivesse mergulhado na merda até ao pescoço provavelmente arranjaria forma de pensar que a merda até faz bem à pele e manter-me-ia à tona o máximo de tempo possível. E isto não é bom. Nunca foi bom. É uma forma de mascarar a realidade - o que quer que isso seja - é uma forma de procurar ser feliz mas, acima de tudo, sempre foi uma forma de sobrevivência. A questão é que, por muito que eu tente manter-me à tona, tem dias em que me apercebo que nunca saí dessa fossa, e que tudo é ilusão.
"És pó..."
Gosto muito da quaresma. Deve ser da idade. Antes, gostava muito mais do Natal, do encontro com os outros, da festividades. da música, das luzes e da alegria. Agora, à medida que vou crescendo para dentro, vou-me apercebendo que sou muito mais quaresma.
"És pó..."
Não te preocupes. Eu sei que sou pó. A vida encarrega-se de mo lembrar.
20140306
«Se alguém quiser seguir-Me, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz todos os dias e siga-Me. Pois quem quiser salvar a sua vida, tem de perdê-la; mas quem perder a vida por minha causa salvá-la-á. Na verdade, que aproveita ao homem ganhar o mundo inteiro, se vier a perder-se ou arruinar-se a si próprio?». Lc 9, 23-25
Nunca me foi fácil seguir Jesus. Pelo menos o Jesus em quem acredito, que é diferente daquela pessoa peace and love, bonzinho e soft, que por vezes nos é impingido. O Jesus no qual acredito é radical, absolutamente radical, na sua proposta de vida, na forma como viveu a sua própria proposta de vida, que era a do Pai. E por isso nunca me foi fácil seguir Jesus. Porque sei que não tenho desculpas, porque me sinto envergonhado sempre que volto a cara para o lado e escolho não ver. porque sei que não tenho o desapego suficiente para assumir essa radicalidade de viver exclusivamente para os outros. E, sem isso, sem essa radicalidade, tudo é grau, tudo é dimensão própria, fruto da escolha de cada um de se manter agarrado ao que entende ser mais importante.
Volta e meia, cá pelo burgo, há pessoas que se entretêm a discutir quem poderia participar mais nos projetos, quem poderia ser mais ativo, quem é mais cómodo do que devia e não permite aliviar a carga àqueles que se sentem demasiado sobrecarregados. Confesso que nunca dou demasiada importância a este tipo de discussão. Mesmo descontando a nossa especialidade em exigir aos outros o que não exigimos de nós próprios, eu tenho consciência do percurso que tive que fazer, interior e exteriormente, para chegar a esta altura da vida e fazer o que gosto de fazer. É-me muitíssimo pouco relevante ter muita gente à minha volta ou estar praticamente sozinho. Não é já uma questão de número mas de comunhão. Mesmo que tivesse muitas mais pessoas disponíveis não faria as coisas com menor intensidade, simplesmente porque não sei viver as coisas com menor intensidade. No entanto, tenho sempre a consciência que estou sempre muito aquém do que poderia fazer e do que sou chamado a fazer. E se eu, que até sei o que me é proposto, que até conheço Aquele que me propõe uma outra forma de vida, me refugio muitas vezes na minha própria vida, como poderei exigir dos outros aquilo que eu próprio não consigo dar?
Chego muitas vezes à conclusão que há apenas uma forma de seguir Jesus na radicalidade que ele nos pede: com entrega total e total disponibilidade interior. Tudo o que seja menos que isso fica aquém. Como eu.
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Bambora
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