Nós, cristãos, por vezes referimo-nos à sociedade como se a
sociedade nos fosse algo estranho, exterior a nós, como se fizéssemos parte de
uma reserva de puros que nada tem a ver com o que se passa “lá fora”. Então
quando nos referimos à Família e aos Valores, fazemo-lo quase sempre em
oposição, como se as nossas famílias e os nossos valores nada tivessem a ver
com aqueles que a sociedade nos impõe. Esquecemo-nos com demasiada frequência
que a sociedade não existe de per si, que os valores, ou melhor, que estes
valores que agora vigoram e dos quais tanto nos queixamos não caíram do céu aos
trambolhões. São, como sempre acontece em sociedade, consequência de pequenos
passos, de pequenas atitudes, que todos os dias damos, no recato do nosso
próprio lar.
É inegável que vivemos numa sociedade que privilegia o
imediato e a superfície. Que menospreza o valor intrínseco das coisas e das
pessoas e valoriza apenas a aparência. Quantos de nós temos enfiado nas nossas
gavetas um telemóvel que ainda funciona mas estava desatualizado? Quantos de
nós temos peças de roupa encostadas porque estão fora de moda? Quantos de nós
estamos instalados e instalamos dessa forma a cultura do supérfluo no
subconsciente dos nossos filhos? Queremos o último grito da moda e da
tecnologia e esquecemos que as coisas são apenas coisas mas que o uso que
fazemos delas transmitem ideias e valores.
Frequentemente, quando falamos em temas como a Sociedade, a
Família e os Valores, entramos em clara contradição.
Por um lado, sabemos o que temos e não gostamos do que
temos. Queixamo-nos do individualismo exacerbado, da indiferença globalizada,
da superficialidade como paradigma atual das relações humanas. É-nos ainda
difícil lidar com o relativismo dos valores, com a autorreferencialidade da
vida que se fecha nos seus próprios interesses e que se julga perfeitamente
autónoma, desdenhando de tudo o que potencia raiz e profundidade. Nós próprios
ansiamos demasiadas vezes ser eternamente jovens, os melhores amigos dos nossos
filhos, competindo com eles em matéria de modernidade, de bem viver, porque lá
no fundo tememos a velhice e não sabemos o que nos farão quando já não
servirmos para nada. Chegamos a casa estafados depois de um dia tremendamente
desgastante e pouco mais conseguimos fazer que sentar-nos no sofá enquanto
fazemos zapping pelos inúmeros canais de televisão que ninguém vê ou
mergulhamos no ilusório anonimato da internet. Cada qual com o seu computador,
cada qual com a sua televisão, telemóvel ou tablet, conversamos com pessoas do
outro lado do mundo sem trocarmos qualquer palavra com quem está sentado ao
nosso lado. Muitos dos nossos lares pouco mais são que albergues com salas de
chat.
Por outro lado, no entanto, sabemos ainda que o futuro não
pode ser por aqui. Sabemos que temos que dizer a verdade aos nossos filhos, que
não lhes podemos continuar a esconder que a vida é também sacrifício, que o
quotidiano é também esforço e luta e coisas que por vezes correm mal. Que a
doença acontece, que as pessoas ficam velhas e desprotegidas e que quanto mais velhas
ou desprotegidas são as pessoas mais precisam que nós lhes façamos sentir que
são dignas do nosso amor e carinho. Sabemos que precisamos de apresentar aos
nossos filhos o Cristo e nos deixarmos de lhes dar apenas a conhecer um Jesus -
o amigo JC - todo paz e amor, todo bonzinho, que nunca se zangava nem chorava
ou sofria. Sabemos que precisamos de voltar a sermos pais e mães que estão, que
acompanham, que lutam pelos filhos, que lhes dão a vida, fazendo-lhes saber e
sentir que a vida é também feita de coisas menos boas e caídas mas que é na
família que também aprendemos a levantar, sacudir o pó e a recomeçar.
Não podemos continuar a desligar o que acontece dentro das
nossas portas do que acontece na sociedade. Somos todos os dias chamados a ser
sal. A levar aos outros a alegria da Graça e do Amor, a desafiá-los para a
partilha e para a generosidade, a encaminhá-los para a confiança que advém da
consciência que todos somos filhos amados pelo Pai. Se não é necessário
andarmos com cartazes ao pescoço ou em bicos de pés, se primamos pela
discrição, não podemos contudo optar pela omissão.
Referimo-nos muitas vezes à sociedade como se fosse algo
exterior a nós. Não é. Não deve ser. Não o seria certamente se fossemos mais
corajosos. É da nossa responsabilidade transformamos a sociedade em que vivemos
e não há outra forma senão começarmos, todos os dias, por nos transformarmos a
nós próprios e por transformar as nossas famílias. A alternativa é
continuarmo-nos a queixar.
Texto publicado na Pastoral IRSCM no âmbito da Conferência sobre a Famíia
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