20140226


São impagáveis, aqueles momentos a seguir ao jantar, lá em casa. Se durante o jantar vamos conversando, algazarradamente, sobre como foi o nosso dia, por entre gargalhadas e ralhetes, a profundidade está normalmente reservada para o prolongamento. Na realidade, apesar de perdermos muito tempo, todos os dias, à volta da mesa, por vezes precisamos ainda de mais tempo, desta vez com maior serenidade, para falarmos do que nos inquieta. E ficamos, normalmente, dois ou três, a discutir um qualquer assunto que tenho vindo à baila, normalmente relacionado com a fé. Ou melhor, com a forma como a fé se confronta com o quotidiano, O seu quotidiano.
À medida que os meus filhos se vão descobrindo no caminho que percorrem, vão-se confrontando com o que foram aprendendo de nós, dos avós e de toda a comunidade de fé que nos envolve, nem sempre condizente com o mundo muito mais multicolor com que se deparam na faculdade. É nesta altura que fazem as suas primeiras escolhas decisivas, fundamentadoras, porque nós já não estamos nem queremos estar para decidir por eles. E nem sempre é fácil lidar com as suas escolhas.
Sempre fiz questão que os meus filhos tivessem a cabeça em cima dos ombros. Que fossem cidadãos do seu tempo, do seu mundo - que em muitos aspetos já não é o meu - mas com o upgrade de consciencialização que apenas a fé em Jesus Cristo pode proporcionar. Gostam de se divertir, como todos, fazem disparates, como todos, por vezes andam meios perdidos, como todos, mas têm sempre consciência que a vida é muito mais que apenas diversão, que apenas disparates, porque tem um sentido que lhe é dado pela fé. E isso faz toda a diferença. Nunca quis que fossem vistos como abéculas, ou como toninhos da Igreja, até porque é no mundo, sendo do mundo, sendo respeitados e admirados pela sua alegria de viver, que eles podem ser melhor testemunho. É mais perigoso, concerteza, é muito mais trabalhoso, é muito mais exigente para nós, pais, e principalmente para eles, que se vêm confrontados desde cedo com a necessidade de escolher quem querem ser.
Mas é por isso que temos aqueles momentos a seguir ao jantar, lá em casa. É aí que, normalmente, conversamos o que eles sentem necessidade de conversar.
E semeamos.

20140225


Uma das minhas filhas tem uma extraordinária obsessão com ela própria. Como até grande parte da sua adolescência era gordinha, especializou-se em encontrar-se defeitos físicos, nem que para isso recorra àqueles espelhos de aumentar que nos tornam, inapelavelmente, horríveis criaturas de Deus. Ela, por sinal, é lindíssima, muitíssimo inteligente e trabalhadora e com uma capacidade incrível de se voltar para os outros. Não fosse a sua tremenda falta de autoconfiança, e teria tudo para ser e fazer felizes os que têm a sorte de gravitar à sua volta. Assim, dependerá sempre daqueles que lhe ampararão a vida e as escolhas. Os amigos, para ela, são por isso particularmente decisivos: ela é o que eles forem.
Converso muito com ela, tal como com todos os meus filhos. Leio-lhe a alma com muita facilidade, antecipo as suas angústias, elevo-a quando está em baixo, baixo-lhe a crista quando, iludida, pretende ser o que nunca foi nem será, sobretudo porque é muito melhor. O seu futuro aproxima-se a passos demasiado largos e questiono-me muitas vezes se ela estará alguma vez preparada para voar.
Quando os meus filhos eram pequeninos, aprendi a conter o imenso tudo que sentia por causa deles. Contrariar esta minha tendência total e totalizante de os meter numa redoma, de os proteger de tudo e de todos, e frequentemente apanhei-me a raiar a obsessão absolutamente louca de os impedir de viver. Felizmente, lá conseguia sempre respirar e impor-me aquilo que eu ia entendendo ser o melhor para eles. Sempre muito atento, sempre muita em cima, mas sempre fazendo um enorme esforço para manter a aparência da distância e do desprendimento suficientes para que eles se possam sentir autónomos mas nunca desamparados.
Creio que daqui por dois anos, por esta altura, a minha filha estará já fora de casa, a voar. Espero que daqui por dois anos, por esta altura, a minha filha esteja já fora de casa, a voar. Gostava tanto que daqui por dois anos, por esta altura, me pudesse ainda deitar com todos os meus filhos sob o meu teto!

20140224


Divorciaram-se. Recentemente. Foi um choque para todos. Sabíamos como eles se amaram, como construíram uma vida juntos, como partilharam sonhos e projetos e vidas eternas. Foi um choque e uma lição. Acontece a todos, é o que alguns dizem. Mas eu estas coisas nunca apenas acontecem.
Numa conversa, quis-me contar o que se passara. Não havia infidelidades, nem sequer outra relação, não havia outro projeto de vida, não havia nada que fosse suficientemente forte para acabar com uma relação de tantos anos. Apenas se sentia mal amado. Já não havia o mimo, o cuidado, a atenção quotidiana que sempre tiveram um com o outro. E não fora para isso que se casara. Por várias vezes, deu por si, tolamente, a invejar aqueles casais que via de mão dada no shopping ou na rua. Invejava os gestos de carinho delas, as festas no cabelo, as conversas intimistas, sussurantes, cúmplices. Já não tinham isso há algum tempo e ele sentia-lhes imenso a falta. Também não era cama, o que lhe faltava, mas a intimidade sem o mecanismo, sem o cumprimento de calendário, com a satisfação de que ambos se recordavam com muita saudade! Uma intimidade que andava arredada havia muito tempo e lhes roubava o prazer para além do carnal, que sempre fora o verdadeiro, o motor, sem o qual a satisfação da carne não passa de satisfação meramente fisiológica. Faziam sexo, não amor, e isso era-lhes insuportável.
Não há como me sentir bem, dizia-me, com os olhos arrasados de água. Não há como não me culpar pelo que fui deixando acontecer, pelas vezes em que deixei que o comodismo ganhasse à discussão, em que fui varrendo para debaixo do tapete aquilo que deveria ter sido posto às claras, ainda que discutíssemos, ainda que berrássemos, ainda que nos zangássemos. Deixei que o silêncio se instalasse, que a intimidade se calasse, e fui permitindo que apenas picássemos o ponto, como se fossemos funcionários públicos de uma instituição que tem que ser uma prisão. Não é isto o que eu quero, não foi isto que sonhei, que sonhamos, pelo qual nos batemos tanto. Mas não há sonho ou projeto ou futuro que valha o tremendo desperdício de uma vida desamada.

Vejo, escuto, e tento aprender.

20140223


Cheguei a uma fase da minha vida em que apenas desejo duas coisas: ser feliz e fazer feliz. Chega-me. Não tenho grandes projetos, não tenho grandes empreendimentos, não almejo já alcançar mundos e fundos, sobretudo se a energia necessária para que isso aconteça me desviar das duas coisas que realmente me importam: ser feliz e fazer feliz.
Pode parecer lapaliciano, este desejo, mas não creio que o seja. Tempos houve em que eu corria atrás de muitas coisas, tinha muitos projetos, muitas preocupações, nomeadamente a de conseguir as condições para que os meus pudessem desenvolver as suas capacidades da melhor forma possível. Continuo a ter essa preocupação, claro, mas não corro já atrás de coisas. Tenho sonhos, agora, alguns, mas já não tenho projetos. E os meus sonhos nada têm a ver com coisas, mas sobretudo com a capacidade de saborear o que os dias me vão dando, como máximo de sabedoria e tranquilidade possível. Mesmo para os meus filhos, importa-me agora muito mais que eles sintam que eu sou aquele que está, sempre, bastando que o desejem, que garantir o seu futuro, orientar o seu trabalho, que eles nisso estão com um desempenho fantástico.
Confesso que me faz alguma confusão quando vejo algumas pessoas, que trabalharam no duro a vida toda e que agora, filhos criados, casa paga, poderiam ter uma vida mais saborosa, mas escolhem ainda trabalhar no duro, o máximo de horas possível, para ganhar mais dinheiro que mais não serve senão para amealhar mais um pouco. Pergunto-me sempre porque é que eles correm tanto e se pretendem parar algum dia. Eu adoro o que faço, todos os dias me deparo com novos desafios, novas correrias, novos projetos, e de alguma forma até a componente trabalho está diluída no que eu tanto gosto de fazer. Mas não deixa de ser trabalho. Não deixo de ter que prestar contas e ter horários a cumprir, e ter que avaliar constantemente o que faço e como faço para que o possa fazer constantemente melhor. E não me custa absolutamente nada pensar na possibilidade de, daqui por meia dúzia de anos, ir abrandando o ritmo, ir saboreando mais o mar, que está aqui tão perto. Até lá. todos os dias dou duro. Mas quando chegar essa altura.... Hmmmm!

Este blogue serve para muitas coisas. Desabafo, procura e encontro, um pouco de arquivo ao que vou sentindo e até ponto de miragem para mim próprio. Ao ler muitos dos meus posts mais antigos apercebo-me como vou flutuando ao sabor da maré mas percebo também um rumo definido. E isso é bom, particularmente quando, até há bem pouco tempo, a ideia que eu tinha de mim era a de uma maria vai com as outras. Tento sempre não pensar na possibilidade de me lerem. Se este blogue não é secreto - é estúpido pretender que qualquer coisa seja secreta na net - tem pelo menos a clara intenção de circular, anónimo, em plena Santa Catarina numa sábado de manhã de saldos: perfeitamente invisível aos olhares da multidão. É assim que é, é assim que deve ser. E eu fico feliz por isso.

Nestas noites de insónias, que regressaram sempre com o mesmo pretexto, tenho-me tentado furtar à dor de cabeça pensando em meia dúzia de ideias para outros tantos contos. Qualquer dia aventuro-me. Coisa simples e banal, apenas para saber se sou capaz. se tenho ou não a consistência para o fazer. Sempre gostei da estrutura dos contos. Mais leves que os romances mas, quando são bons, não menos profundos. E depois, há sempre uma certa dimensão de parábola que me seduz bastante. Poder dizer sem fechar, mantendo o espaço aberto para que cada um possa encaixar(se) na história, é muito desafiante. Qualquer dia...

20140217


Têm-me dito, ultimamente, com alguma frequência, que me devia dar mais valor. Fazer-me mais caro, dizer mais vezes que não posso, que estou muito ocupado, que têm que arranjar outro alguém para fazer o que querem ver feito. Fazer marketing de mim mesmo, por forma a que os outros me reconheçam como peça fundamental e indispensável.
Tolos. Não me conhecem.
A primeira vez que senti que não queria abdicar de ser eu tinha cerca de doze anos. Como gaguejo, uma professora contactou um especialista de terapia da fala para me por normal. Fui a meia dúzia de sessões, aprendi algumas técnicas, mas percebi que não era para mim. A artificialidade da minha forma de falar tinha implicações na naturalidade da minha forma de ser. Entre ambas, instintivamente ou por comodismo, escolhi a segunda. Ainda bem.
Quando sabiam que eu tinha quatro filhos e que viria mais uma a caminho, ainda por cima nem minha filha era, chamavam-nos tolos. Uma senhora lá da paróquia, por sinal das que batem com a mão no peito, perguntou se não tínhamos juízo, se não sabíamos o que eram anticoncecionais. E quando nos viam na rua com os filhos pequenos havia dois tipos de olhares: ou de satisfação, ou de comiseração. Como era possível, com a vida como está, ter tantos filhos? Só podem ser ricos, ou então da Opus Dei. Nem uma coisa nem outra. Temos pena!
Diziam à boca pequena, pensando que eu, por ser gago, sou também cego e surdo, que estava a alimentar uma relação perigosa. Que não sabia manter as distâncias, que permitia uma proximidade excessiva, que não seria bom para ninguém. Invariavelmente, lembrava-me da história do velho, do jovem e do burro, argumentava contra mim próprio, e persistia no meu caminho, incorporando as dúvidas, procurando as certezas, tendo ambas por companhia quotidiana. Ainda bem!
Quando era miúdo, no bairro, era conhecido por ser o fiel. Pejorativamente, no sentido canino do termo, porque mal a minha mãe me chamava eu largava a brincadeira e ia fazer o que ela dizia. Quando os meus amigos e amigas de brincadeira da infância e adolescência começaram a drogar-se e a prostituir-se continuávamos a  conviver normalmente, falando disso quando me  negava a partilhar as suas escolhas apesar dos convites. A determinada altura apercebi-me que o gozo começou a dar lugar à procura para conversar e aconselhar. De alguma forma, sentia que estava do caminho certo.
Ao longo do meu percurso tive que fazer muitas escolhas. Nem sempre as certas. Raramente as racionalizei, em quase todas elas, no entanto, fui escolhendo ser contra a corrente. Nunca me incomodei muito por isso. Intui sempre que a tentação de agarrar a vida é ilusória. Tentar controlar tudo e todos, se gostam ou não de nós, se somos ou não queridos, se conseguimos ou não ser bem sucedidos nos nossos gestos, é combater contra os moinhos de vento que fazem de nós cavaleiros de trise figura.  E, em boa verdade, também não me tenho dado mal. Normalmente escolho ter fé. é muito mais simples. Basta fechar os olhos e confiar-me a quem me ama.

20140214


Eu namoro. Todos os dias. Ou pelo menos tento, que por vezes a vida não se compadece com o tempo para estas coisas. Porque estas coisas precisam do tempo. Principalmente depois da fase do encantamento passar. Sim, porque enquanto há encantamento há sempre tempo, as nossas escolhas fazem com que haja sempre tempo. Mas nem sempre há encantamento. e aí, não há hipótese: ou há amor e arranja-se tempo, ou ficava tudo pelo encantamento e o encantamento é maravilhoso mas é fugaz. E passageiro. E às tantas estamos a pesar o que gostamos de fazer e descobrimos que gostamos de fazer qualquer outra coisa e acabou. E mais vale acabar.
Eu namoro. Todos os dias. Ou pelo menos tento, por entre a correria, que até nem é má porque impede a monotonia, e permite aquela sensação tão boa que estamos a roubar tempo ao tempo porque gostamos de estar juntos. E nós gostamos mesmo de estar juntos. Sempre. Adoramos conversar sobre tudo e sobre nada, adoramos caminhar à beira mar ou imaginando-nos à beira mar, adoramos falar, por vezes meigamente, por vezes discutindo, sobre o imenso que nos separa que sucumbe por amor ao imenso que nos une. Adoro conduzi-la enquanto ela adormece ao meu lado. Então se for às tantas da noite, só nós e a estrada, ao som do Miles Davis ou do Coltrane, e eu a olhar para ela a dormir, embevecido, louvando a Deus por me ter colocado no seu caminho, e a deixar a cabeça flutuar lá por cima.
Nunca precisamos de grandes condições para namorar. Nenhum de nós gosta de estar muito tempo fora de casa, nem muito longe, e um qualquer lugar onde possamos estar a dois chega perfeitamente. Quando conseguimos roubar tempo ao tempo e dinheiro ao dinheiro, lá conseguimos passar uma ou duas noites num hotel baratinho mas confortável para podermos saborear mais um pedacinho de céu completamente á vontade. Imagino-nos juntos, felizes, velhotes, numa casa do lago - como no filme - a morrermos na companhia um do outro, depois de uma casa e de uma vida recheada de filhos e netos. Sobretudo imagino-nos felizes, juntos.
Eu namoro. Todos os dias. E todos os dias dou Graças a Deus por namorar a minha mulher.

20140212


Pensar é absolutamente fundamental para mim. Há muitos anos via com os meus filhos uma animação em que a sociedade estava organizada entre thinkers e doozers. Eu sou um thinker. Gosto muito de fazer coisas, de ter os meus dias preenchidos, de andar a correr de um lado para o outro. Mergulho de cabeça com o meu trabalho, que poucas vezes sinto como tal, e apercebo-me do dia que passou apenas quando, à noite, caio na cama e passo em revista o que fiz e o que não consegui fazer. Os dias sucedem-se, as semanas sucedem-se, e às tantas eu á nãos ei a quantas ando. É por isso que eu sou um thinker. Eu preciso de desligar o piloto automático e de dar um sentido a isto tudo.
Tenho um curso para acabar, a minha tese para apresentar e não tenho tido sequer disponibilidade mental para pensar nisso. De correria em correria, chego ao fim do dia completamente exausto e afundo no sofá, de onde saio apenas para ir para a cama. Sabe bem? Claro que sim. É bom para mim? Claro que não. Deixo-me enredar com extrema facilidade no quotidiano mas às tantas sou acompanhado por duas coisas que me são destrutivas: a sensação que a vida me passa ao lado e a culpa de não aprender mais. à minha volta começam-me a perguntar se estou bem, dizem que a minha cara se fecha, que o sorriso é menos frequente e às tantas eu acordo: tenho que me retomar.
E hoje é um dia tão bom como qualquer outro para o fazer.
Mãos à obra.

20140211


“Houve certos seres através dos quais Deus me amou”   
Saint Martin, filósofo do século XVIII

Adoro quando a minha verdade me chega de fora. Pode ser um livro, um filme, ou, como neste caso, a leitura de uma frase de uma das fabulosas entrevistas da Anabela Mota Ribeiro. 

Por vezes cometemos o erro de pensar que somos especiais de corrida. No fim de semana passado, a propósito de uma acontecimento desagradável com alguém que ambos conhecemos, conversava com o meu filho mais novo. Ele dizia algo como "Não estava nada à espera que isso acontecesse. Ele não é de fazer destas coisas." E eu dizia-lhe que nós não somos especiais de corrida, nem vivemos em cima de um altar, nem pairamos acima de ninguém num pedestal. Nós somos pessoas comuns, mergulhadas na vida como todas as outras. Não existe essa coisa de "nós não fazemos destas coisas" ou de sermos particularmente abençoados por Deus, que evita que façamos o mal ou que coisas más nos aconteçam. O que nós somos é o que todos são. O que nos distingue enquanto pessoas, no fundo, é a nossa (in)capacidade de dizer sim ou não ao que se nos vai apresentando diante de nós. 
Claro que todos temos as nossas circunstâncias, que nos podem ou não condicionar, claro que não somos impermeáveis aos e ao que nos rodeia, mas em última análise a responsabilidade pela nossa vida e pelos nossos actos é sempre nossa. Por isso eu sempre alertei os meus filhos para terem muito mais cuidado com os amigos que com aqueles que lhes são indiferentes. Porque são os nosso amigos quem tem uma parte importante da nossa vida nas suas mãos. É com eles - e muitas vezes por eles - que temos os gestos mais grandiosos e que fazemos as coisas mais estúpidas. 
Quando estava em Moçambique pensei muitas vezes que nós não somos muito diferentes uns dos outros. Que as necessidades humanas dos miúdos e graúdos com quem trabalhávamos não eram diferentes daqueles com que todos os dias me deparo em Ramalde. Todos eles - e eu! - precisam de alguém que lhes dê atenção e carinho, todos eles - e eu! - precisam de sentir que têm lugar na vida de alguém, todos eles - e eu! - precisamos que testemunhem o que todos os dias tentamos ser.
Eu ficaria feliz se, em algum momento, tiver conseguido ser o ser através do qual eles se sentiram amados por Deus.

20140210


Há algo de inquietantemente maravilhoso na amizade. Que pessoas tão diferentes entre si se deixem moldar pelas circunstâncias, que permitam que o acaso primeiro estabeleça e depois fortaleça os laços que os unem, é algo que apenas a Deus está reservado.
Parece-me que, em determinada altura da vida, todos andamos à procura de alguém com quem partilharmos a vida. Parece-me também que esta é uma procura que, de alguma forma, fecha um ciclo, não o abre. Sabemos todos que por vezes as coisas não correm bem e as relações a dois acabam, mas, justamente, acabam quando não correm bem, porque à partida é desejo mútuo que dure a vida inteira. Este é um amor que pede exclusividade, entrega total, que precisa de fechar em si mesmo para que possa ser fecundo. Se quisermos, são duas sementes que se fundem numa só e apenas a partir desta pode ser gerada a vida. Este amor é exigente, construção e construtor, fundamento e fundador, e eu tenho a sorte da vontade de o iniciar todos os dias como se não existisse ontem ou amanhã, com a certeza no entanto que são o ontem e o amanhã que lhe garantem a perenidade e fecundidade.
A amizade é outra coisa. É portas abertas, é janelas abertas, é corrente de ar que permite respirar, que permite o tempo, que aceita conviver com o longe e a distância e ainda assim pode subsistir sem qualquer arranhão. Normalmente resulta mais do acaso que da procura e também por isso é mais livre, ainda que não menos exigente. Quando bem vivida, a amizade não requer exclusividade mas partilha, é o lugar do encontro voluntário, onde cada um apenas (se) dá na medida em que (se) quer dar, e fá-lo voluntariamente, porque escolhe confiar e confia na escolha que fez.
Tenho para mim que o melhor da vida está no fugaz que perdura. Uma conversa que tudo tem para ser banal e depois acampa em nós, uma caminhada curta que nos transforma, uma partilha despretensiosa que se revela absolutamente decisiva, são coisas que encerram em si o modus operandi de um Deus que nos ensina todos os dias que o aparentemente pequeno pode ser, afinal, o mais decisivo. Um Deus que nos ensina a estarmos atentos aos pequenos sinais, às pequenas conversas, aos pequenos momentos que, vistos à distância, são muitas vezes os transformadores. Um Deus que me ensina que um simples almoço numa simples sexta feira pode ser, afinal, o maior dos motivos para dar Graças pelos que Ele vai colocando, cuidadosamente, criteriosamente, no meu caminho.

20140207


"Só para te informar que quando se escreve oração no google apareces na primeira página". Olhei para a mensagem da minha filha e ri-me. "Vá lá. Podia ser por piores motivos." respondi-lhe. Descontando o facto de, aparentemente, a minha filha desconhecer o que são os cookies da google, que fazem com que as nossas pesquisas sejam personalizadas - originando que a sua primeira página seja diferente da de qualquer outro - não pude deixar de sentir um pequeno orgulho. A primeira coisa que me vem à cabeça nestes momentos é "nada mau para um puto do bairro". Esta é uma marca que me acompanha sempre, e que, curiosamente, apenas depois de Ramalde consegui pacificar em mim. Desta vez, no entanto, também fiquei feliz. O facto de a minha filha ver associado o meu nome à oração, apesar de eu não fazer a mínima ideia de como isso aconteceu, é daquelas coisas que poderão falar mais alto do que qualquer palavra que eu possa dizer.
É verdade que a oração faz parte, mais que do meu quotidiano, de mim próprio. Não são muitas as rotinas de oração que eu tenho - às refeições e ao deitar, basicamente - mas, ao longo do decorrer dos dias, são muitas as alturas em que dou Graças pelo que vou vendo e sentindo. Tenho montes de motivos para o fazer, particularmente aquelas pequenas coisas aparentemente sem importância nenhuma mas dão um colorido muito importante à minha vida. Pequenos gestos, pequenas atitudes, pequenos sorrisos, alguém que eu encontro no corredor ou na rua, até pensar em alguém que me traz boas recordações, tudo isso são motivos para dar Graças pelo dom da vida.
O facto de ser sempre um puto do bairro permite-me estar ligado à terra. O facto de apreciar quem tenho à minha volta permite-me estar ligado ao melhor que Deus escolheu para mim. O primeiro é mera circunstância, o segundo é pura gratuidade de quem me ama. E me deixa perceber o que é ser amado.

20140206



Nós, cristãos, por vezes referimo-nos à sociedade como se a sociedade nos fosse algo estranho, exterior a nós, como se fizéssemos parte de uma reserva de puros que nada tem a ver com o que se passa “lá fora”. Então quando nos referimos à Família e aos Valores, fazemo-lo quase sempre em oposição, como se as nossas famílias e os nossos valores nada tivessem a ver com aqueles que a sociedade nos impõe. Esquecemo-nos com demasiada frequência que a sociedade não existe de per si, que os valores, ou melhor, que estes valores que agora vigoram e dos quais tanto nos queixamos não caíram do céu aos trambolhões. São, como sempre acontece em sociedade, consequência de pequenos passos, de pequenas atitudes, que todos os dias damos, no recato do nosso próprio lar.

É inegável que vivemos numa sociedade que privilegia o imediato e a superfície. Que menospreza o valor intrínseco das coisas e das pessoas e valoriza apenas a aparência. Quantos de nós temos enfiado nas nossas gavetas um telemóvel que ainda funciona mas estava desatualizado? Quantos de nós temos peças de roupa encostadas porque estão fora de moda? Quantos de nós estamos instalados e instalamos dessa forma a cultura do supérfluo no subconsciente dos nossos filhos? Queremos o último grito da moda e da tecnologia e esquecemos que as coisas são apenas coisas mas que o uso que fazemos delas transmitem ideias e valores.
Frequentemente, quando falamos em temas como a Sociedade, a Família e os Valores, entramos em clara contradição.

Por um lado, sabemos o que temos e não gostamos do que temos. Queixamo-nos do individualismo exacerbado, da indiferença globalizada, da superficialidade como paradigma atual das relações humanas. É-nos ainda difícil lidar com o relativismo dos valores, com a autorreferencialidade da vida que se fecha nos seus próprios interesses e que se julga perfeitamente autónoma, desdenhando de tudo o que potencia raiz e profundidade. Nós próprios ansiamos demasiadas vezes ser eternamente jovens, os melhores amigos dos nossos filhos, competindo com eles em matéria de modernidade, de bem viver, porque lá no fundo tememos a velhice e não sabemos o que nos farão quando já não servirmos para nada. Chegamos a casa estafados depois de um dia tremendamente desgastante e pouco mais conseguimos fazer que sentar-nos no sofá enquanto fazemos zapping pelos inúmeros canais de televisão que ninguém vê ou mergulhamos no ilusório anonimato da internet. Cada qual com o seu computador, cada qual com a sua televisão, telemóvel ou tablet, conversamos com pessoas do outro lado do mundo sem trocarmos qualquer palavra com quem está sentado ao nosso lado. Muitos dos nossos lares pouco mais são que albergues com salas de chat.

Por outro lado, no entanto, sabemos ainda que o futuro não pode ser por aqui. Sabemos que temos que dizer a verdade aos nossos filhos, que não lhes podemos continuar a esconder que a vida é também sacrifício, que o quotidiano é também esforço e luta e coisas que por vezes correm mal. Que a doença acontece, que as pessoas ficam velhas e desprotegidas e que quanto mais velhas ou desprotegidas são as pessoas mais precisam que nós lhes façamos sentir que são dignas do nosso amor e carinho. Sabemos que precisamos de apresentar aos nossos filhos o Cristo e nos deixarmos de lhes dar apenas a conhecer um Jesus - o amigo JC - todo paz e amor, todo bonzinho, que nunca se zangava nem chorava ou sofria. Sabemos que precisamos de voltar a sermos pais e mães que estão, que acompanham, que lutam pelos filhos, que lhes dão a vida, fazendo-lhes saber e sentir que a vida é também feita de coisas menos boas e caídas mas que é na família que também aprendemos a levantar, sacudir o pó e a recomeçar.

Não podemos continuar a desligar o que acontece dentro das nossas portas do que acontece na sociedade. Somos todos os dias chamados a ser sal. A levar aos outros a alegria da Graça e do Amor, a desafiá-los para a partilha e para a generosidade, a encaminhá-los para a confiança que advém da consciência que todos somos filhos amados pelo Pai. Se não é necessário andarmos com cartazes ao pescoço ou em bicos de pés, se primamos pela discrição, não podemos contudo optar pela omissão.

Referimo-nos muitas vezes à sociedade como se fosse algo exterior a nós. Não é. Não deve ser. Não o seria certamente se fossemos mais corajosos. É da nossa responsabilidade transformamos a sociedade em que vivemos e não há outra forma senão começarmos, todos os dias, por nos transformarmos a nós próprios e por transformar as nossas famílias. A alternativa é continuarmo-nos a queixar.

Texto publicado na Pastoral IRSCM no âmbito da Conferência sobre a Famíia

20140205


Ensinou-me a minha mãe, provavelmente sem sequer se ter dado conta disso, que eu não preciso da perfeição para amar. Frequentemente deparo-me com pessoas para quem estas duas coisas estão associadas: perfeição e amor. Acham que apenas a beleza é digna de ser amada, que no amor e na amizade tudo tem que ser sintonia, tudo tem que ser confluência, como se fosse apenas possível existir amor entre duas pessoas absolutamente coincidentes - o que as tornaria uma só, e esse amor necessariamente egocêntrico. E temem sempre a discussão, o confronto. Essas pessoas não percebem como posso, por exemplo, não gostar mesmo nada de determinada atitude de alguém e ainda assim gostar muito dela. Não entendem como, numa discussão, entro em claro confronto com as suas ideias e me bato pelas minhas - exacerbadamente, quase sempre, e isso é algo que tenho sempre que corrigir - e finda a discussão continuo tudo como dantes, como se tivéssemos pontos de vista absolutamente convergentes.
Há uns anos, conheci uma amiga que me ajudou a perceber isto muito claramente. As suas opções de vida estão em clara oposição com as minhas e, no entanto, ensinou-me com a sua atitude que poderíamos ser bons amigos partilhando visões completamente distintas. Nas nossas conversas eu descobria sempre uma maneira nova de olhar o mundo, a partir de uma perspectiva completamente nova, completamente descomprometida, que me abalava e me obrigava a questionar-me e me levava a descobrir até que ponto aquilo que eu defendia era mesmo o que eu queria defender.
É um risco, ser amigo de alguém assim. E, acima de tudo, é fonte de preocupação para aqueles que connosco partilham a vida e por isso temem que a vida dê uma volta de cento e oitenta graus. Mas é imensamente gratificante. Pensar sobre a vida, meditar sobre as minhas grandes questões, confrontar-me com alguém que respeito mas que tem uma visão completamente diferente da minha, é tremendamente desafiante, mas é determinante para que as fundações, as minhas fundações, aquelas que suportam o meu quotidiano, sejam verdadeiramente as minhas. E por vezes não tenho assim tanta certeza que isso acontece.
É por isso que todos os meus amigos são maiores que eu. Porque procuro, instintivamente, pessoas que tenham a capacidade de me confrontar comigo próprio. E todos os dias aprendo com eles.

20140204


Creio que foi na semana passada que a Sábado publicou um artigo sobre as dietas recomendadas para cada faixa etária. Lá fui eu direitinho ver a dieta que me era recomendada. No final, no entanto, reparei que estava a ler a dieta indicada para a faixa etária anterior à minha. E não foi por engano de paginação, mas engano de posicionamento: eu tardo em convencer-me da idade que tenho.
No meu tempo de miúdo, um homem com cinquenta anos era um velhote. Ponto. e ria-me quando eles se referiam aos da sua idade como "aquele rapaz". Como era possível? Agora, como eu os percebo! Apenas há pouco temo é que me comecei a habituar ao Sr. com que me interpelam aquele que não me conhecem. Tenho ainda dificuldade em que os alunos, por exemplo, não me tratem por tu, mas percebo que isso facilita tudo. Mas ver-me colocado numa faixa etária que vai dos quarenta aos cinquenta e cinco anos não cabe ainda na minha cabeça. Até porque estou mais perto do seguinte que da anterior.
Não tenho medo de envelhecer. Nunca tive. Sempre me pareceu uma idade de sábios, daquela sabedoria que não se transmite nos livros, mas conseguida à custa da vida. quando me imagino velhote, vejo com facilidade a minha farta barba branca, o meu cachimbo, os meus livros, a minha casa de madeira à beira de um lago sempre cheio de sol. Um Sean Connery cheio de charme e sabedoria que acaba os seus dias a transmitir sabedoria. Claro que é apenas imaginação, porque  o que me esperará, na melhor das hipóteses, é uma casa cheia de netos e com muito pouco sossego.
Deus seja louvado!

Bambora

  Não é estranho que nos digam que «ser homem é muitas vezes uma experiência de frustração». Mas não é essa toda a verdade. Apesar de todos ...