20151231
serenidade, alegria, verdade e liberdade
Também eu não costumo escapar aos balanços de fim de ano. Nem o desejo, em boa verdade. Se nos tempos normais gosto de me sentar e dividir o tempo, e analisar o que eu e o tempo nos temos provocado mutuamente, no final de cada ano - e quem está no ensino tem mais que uma sensação de final de ano... e oportunidade de recomeçar - essa tarefa é absolutamente dominante. Passo-me em revista, revisito caminhadas e conversas e partilhas e dores e alegrias, voltando a sentir muitas delas, alternando sorrisos e suspiros, peso gestos e atitudes, volto a penitenciar-me por alguns, a orgulhar-me por outros, e chego à invariável conclusão que estou mais velho... e que isso não se nota nada. Continuo a sonhar, por vezes contra todas as probabilidades, continuo com a mesma dificuldade em me situar dentro dos parâmetros exigidos para quem tem a minha idade, continuo a não reconhecer quem está do outro lado do espelho, apesar das dores nas articulações, das insónias cada vez mais frequentes, do cansaço generalizado cada vez mais instalado.
Este ano teve a particularidade de me abalar as estruturas, de me questionar ainda mais que o normal, de ter que tomar decisões de fundo, de me desconstruir e de continuar a tentar - quase com cinquenta anos! - perceber quem sou e para onde quero ir. Como todos os que lidam comigo, acreditava que por esta altura já ia sendo tempo de ter mais juízo, de calçar mais vezes as pantufas, de me ir instalando cada vez mais confortavelmente, não no sofá - que isso eu faço na perfeição! - mas na pessoa que vou sendo. Não sei se é por ter muitos filhos, não sei se é por trabalhar muito com malta nova, não sei se é por ter uma alma que anda sempre à procura não sei bem de quê, mas o facto é que estou longe de conquistar aquela serenidade interior que sempre associei à sabedoria profunda. Em boa verdade, não sei se alguma vez chegarei lá, ou se a sabedoria profunda apenas estará ao alcance de quem percebe que chegou a algum lugar. Enquanto eu tiver esta permanente sensação que estou algures a meio caminho do que quer que seja, não creio que me vá permitir muito mais do que tem sido. Que não tem sido pouco, convenhamos.
Creio que nesta altura do campeonato posso afirmar que vivo sob a égide do amor. Apesar do elevado nível do pirosismo desta afirmação, não consigo encontrar outra que defina minimamente este estado permanente de Louvor e Graças a Deus, e à vida, e a todos os que me acompanham nesta jornada. Vou percebendo de forma cada vez mais nítida como faço parte de um todo muito maior que eu, nas múltiplas atividades que me preenchem a vida, nos múltiplos encontros que vou tendo, nas múltiplas partilhas que vou vivendo e que fazem com que eu seja uma espécie de parque de campismo e dentro de mim se armem tendas e acampem, e permaneçam. Indefinidamente. Indelevelmente.
Normalmente, nestas alturas, faço balanços, não projeções. Talvez porque me é muito mais fácil avaliar o que se passou, onde falhei e onde fui bem sucedido, que encetar compromissos que, por muito gerais que sejam, sei que me sairão furados. Há, no entanto, um compromisso que terei que assumir: o de não prometer - ainda que tacitamente - o que poderei não conseguir cumprir. Creio ter sido esta a grande lição deste ano.
"It takes two to tango", e "It ain't over till the fat lady sings" talvez sejam os grandes ensinamentos que fazem a ponte entre 2015 e 2016. A ver vamos.
PS: 2015 foi o ano em que escrevi mais... e em que fui mais vezes lido (cerca de 30 000 visualizações). A parte da escrita é normal: preciso de escrever quando me enervo, estou confuso, tenho medo, confio, partilho e aprendo, cresço e aprendo, faço asneira e me penitencio, quando tento o que quer que seja, estou maravilhado e grato, e rio e choro, tenho orgulho em quem quer que seja, e louvo e dou Graças, quando estou apaixonado, quando amo, quando (me sinto) vivo... 2015 foi pródigo em tudo isto; A parte dos leitores é assustadora. Mesmo! Lamento, Miguel Sousa Tavares, mas sou dos imbecis que escrevem para si próprios. E por isso esforço-me por, e vou conseguindo desligar-me de quem me lê, não pensando nas suas reações ou sentimentos que daí possam despoletar. Ainda que isso me possa trazer alguns dissabores.
20151226
À medida que vou envelhecendo, parece que um certo Natal vai envelhecendo em mim. Lembro-me com alguma nostalgia de uma véspera de Natal em que era quase hora da ceia e eu ainda estava na baixa do Porto, mergulhado num trânsito caótico, feliz da vida enquanto todos à minha volta estavam com ar desesperado. Na altura, Natal era também muito isso para mim: confusão, compras, movimento, música no ar e luzes a piscar. E depois, já em casa, era aproveitar a magia a que apenas os filhos emprestam ao Natal, com a sua felicidade extrema, com os seus gritos de alegria, com a sua inocência que, uma vez partida, já não regressa da mesma maneira. A nossa felicidade era a antecipação da sua felicidade, a nossa alegria era o gozo prematuro da sua alegria, a nossa maior prenda de Natal eram as suas prendas de Natal.
A determinada altura a vida impôs um outro tipo de condições. Os presentes já não eram bem os desejados mas os possíveis, e com isso o Natal começou a ser por mim vivido com um certo amargo de boca e com algum sentimento de culpa. Por muito que apele à racionalidade, há facetas em mim que nunca se hão de deixar de se sobrepor ao raciocínio lógico, e, por muito que me dissessem ou tentassem fazer-me sentir que não tinha importância nenhuma, a mágoa não deixa de existir apenas porque sim. E o Natal, a partir daí, ganhou uma outra cor, que acabou por se juntar ao crescimento dos filhos e à perda daquela magia que antes tinha.
Recordo com muita saudade um Natal de há dois ou três anos atrás em que fui convidado para cantar numa das estações do Metro do Porto. Acompanhado de uma data de miúdos do Primeiro Ciclo do Colégio, fomos para a estação da Casa da Música e cantamos durante duas ou três horas para as pessoas que passavam a caminho das suas vidas. Eu, que, como sempre acontece, acedi a custo a participar naquela iniciativa, descobri nela uma outra maneira de saborear o Natal, estampada nos olhares quer dos miúdos que cantavam comigo, quer nos dos transeuntes que paravam, sorrindo, para nos escutar.
O Natal, sem esta componente de entrega mútua e de celebração litúrgica, faz hoje muito pouco sentido para mim. Talvez esteja a ficar velho. Ou a precisar de netos ;-)
PS: nunca escrevi tanto, nunca tive tantos leitores (30000 visualizações) como ao longo deste ano. A escrita é normal: preciso de escrever, principalmente quando estou confuso, em dificuldades, agradecido, preocupado, calmo, nervoso, com problemas, durmo mal, como bem, converso, me arrependo, faço asneiras, partilho, estou apaixonado, amo... 2015 foi um ano repleto disso tudo e de muito mais; os leitores assustam-me. Sempre. Mas vou ficando cada vez melhor em esquecê-los quando escrevo. Ainda que isso me possa trazer problemas.
20151221
Nunca mo tinham perguntado assim, de forma tão clara e direta, tão olhos nos olhos, tão alma na alma, suspendendo as palavras até que ecoasse a minha resposta: "gostas do que vês quando te olhas ao espelho?". A pergunta, como qualquer boa pergunta, não era bem uma pergunta mas uma necessidade de constatação. Antecipávamos ambos, pelo que nos conhecemos, a resposta, e seria uma enorme surpresa se tivesse sido outra. Foi justamente porque sabíamos a resposta que a pergunta tinha sido feita. E foi devidamente dada.
Nunca me considerei definitivo. Em nada. Em ninguém. Em nada porque desde muito novo que me habituei a reconstruir a minha paisagem quotidiana. De cada vez que mudava de casa - e foram muitas - mudavam também os cheiros e os toques e os sons e as vistas e agarrava-me ao que permanecia, apesar de tudo, eu e (fugazmente) os meus. Em ninguém porque com as casas vinham os vizinhos e os amigos e os colegas da escola e os professores e os amigos, e tudo isto era definitivo... até à próxima vez.
Sempre me considerei provisório. Em tudo. Em todos. Em tudo porque fui obrigado a desenvolver aptidões que rapidamente se ajustassem ao que me envolvia. Era preciso cantar? Canta-se. Era preciso tocar? Toca-se. Era preciso fazer rir? Palhaça-se. Rapidamente e em força, que amanhã é um outro dia e - nunca se sabe! - um outro lugar. Em todos porque todos sempre foram mais. Mais estáveis, mais inteligentes, mais consistentes, permanentes. E ser provisório é viver intensamente. Tudo. Sempre. Que amanhã é outro dia. Um outro lugar. Um outro alguém. E não há sequer tempo para causar uma segunda impressão.
Até que fui pai. E descobri como posso ter o imenso dentro de mim. E aprendi como posso ser o imenso para alguém.
20151220
Para muitas pessoas que me conhecem, tenho um terrível defeito: sou um péssimo pagador de promessas. E, mesmo para mim, é um bocadinho difícil entender porquê. Nesta altura, convém referir que não prometo apenas quando estou atrapalhado. Nem prometo apenas em voz alta. Nem prometo apenas aos outros. Ou até especialmente aos outros. Antes de mais, para que a promessa tenha alguma hipótese de concretização, começo por me prometer a mim mesmo. Algo assim do tipo "não voltarei a ligar" ou então "não imporei mais a minha presença" e por vezes até "vou fazer de conta que não existe". Tudo coisas bastante simples de prometer, que quase sempre dependem única e exclusivamente de mim, e que quase sempre beneficia outros para além de mim próprio. E, fundamentalmente, tudo promessas que quando prometidas fazem todo o sentido na minha cabeça. Repare-se que não prometo nada que à partida não posso cumprir, nem mundos e fundos, nem coisas que escapam ao meu alcance. Nada disso! Coisas simples e pequenas que devagar se vai ao longe.
Pois.
O pior é que nem devagar nem longe.
Acontece que o requisito fundamental não reside no facto de ter prometido mas de fazer ou não sentido. E há coisas que fazem todo o sentido numa determinada altura e não fazem sentido nenhum noutra. E estas eu tenho muita dificuldade em cumprir. Sim, eu sei. Já mo disseram muitas vezes. Já me chamaram a atenção imensas vezes. Até já me insultaram dizendo que assim não sabem com o que podem contar. Pois... Paciência! Se alguma coisa deixa de fazer sentido porque raio hei de eu ficar atado a algo que me faz sentir um palerma? Sempre que possível tento averiguar se essa falta de sentido por mim detetada não será antes uma maneira cómoda de evitar cumprir o que ficou prometido. E por vezes é. E nesses casos, apesar de não fazer sentido na minha cabeça, não tenho outro remédio senão impor-me o cumprimento do prometido. Mas nos restantes...
Esta minha forma de pensar e agir sempre causou um profundo desgosto no meu sogro. Ele sempre pensou que eu não era recomendável, muito por causa disto. Ele era justamente o oposto: uma vez a palavra dada, ia até ao fim. Custasse o que custasse. Prejudicasse ou não. Fizesse sentido ou não. Palavra era palavra. Ponto final. Tempos houve em que tentei com muita força ser como ele. Lamentei muito tempo por não o conseguir. E depois deixei de o querer. Talvez porque tenha encontrado uma outra forma de fazer sentido. A minha forma de fazer sentido. Que é muito menos prometer e muito mais lidar com o que a vida vai colocando nas minhas mãos. Que é muito menos planear e muito mais usufruir. Que, ao fim e ao cabo, é mito menos razão e muito mais coração. E confiança, já agora.
20151217
"É preciso construir boas memórias!" Recordei-o hoje à medida que caminhava quase no deserto, envolvido num amanhecer agreste, na margem de um mar ainda mais agreste, tendo apenas as memórias como companhia. Recordei-o a propósito da esplanada, hoje ainda mais despida, hoje sem nos ter como protagonistas principais, hoje sem as personagens secundárias que desfilavam à nossa frente sem verem ou serem vistas, hoje sem história, ou filme, ou enredo, tendo apenas as memórias por companhia. Recordei-o quando o mar me abordou, hoje mais que o costume, muito mais que o costume (estava revolto como nunca o tinha visto) e não tive quem me quisesse agarrar por causa de histórias de vertigens alheias, e tive apenas as memórias por companhia. Recordei-o ainda quando, totalmente imerso na paisagem que me rodeava e me invadia a alma, pensava numa partilha de Taizé e numa forma de descobrir Deus na natureza e aí O confirmar e aí ter a certeza da Sua presença e eu a pensar, na altura, como para mim Deus é pessoas e como estava tão longe dessa natureza encantada e como, hoje, essas memórias que tinha por companhia me ajudaram a entender melhor aquela partilha.
E recordei a nossa conversa de como as memórias nos pertencem para sempre e para sempre nos fazem companhia, de como é importante que deixemos que nos façam companhia, sejam elas boas ou más, porque as boas acalentam-nos a alma e com as más aprendemos a evitar o que me nada nos acrescenta. E pensei que, por muito tempo que viva, aquele percurso à beira mar que escolho fazer imensas vezes nunca mais será um mero percurso como tantos outros, porque tem recantos recheados de palavras e de olhares e de toques e de companhias e de solidões e por tudo isso e muito mais, de vida, de imensa vida. E concluí que, provavelmente, no futuro ou por aí perto, regressarei sempre àquele percurso à beira mar, quanto mais não seja para resgatar a minha alma por entre as memórias que aí foram sendo construídas.
20151216
"Se algum dia ouvir aquilo que o L ouviu, ninguém me volta a por a vista em cima." Disse-o a três pessoas. Apenas. As que interessava. Por motivos distintos. Completamente distintos. Porque são pessoas diferentes. Completamente diferentes. Porque, juntas, abarcam toda a vida. Todas as dimensões da vida. E assim já sabem o que não procurar. Onde não procurar.
"O senhor que não olhava para ninguém, olhava para o vazio." Li agora mesmo. Do António Lobo Antunes, na Visão. É isto, é justamente isto, o que não quero. Ele consegue ver uma coragem que eu não consigo, que eu não quero, que eu me nego ver. Prefiro outra. Prefiro gastar a minha vida ou, nessa altura, o que restar dela, numa qualquer terra de África ou da Ásia ou da Europa, ou de qualquer parte do mundo a torná-la verdadeiramente significativa para alguém. Assim, mato dois coelhos de uma cajadada: deixo-me gastar de forma digna (porventura resgatando-me a mim próprio) e evito os olhares piedosos dos que amo.
Disse que não sei o que é estar sozinho. É verdade. É, pelo menos, uma meia verdade. Não sei o que é viver sozinho, sem sonhos partilhados, sem futuros projetados, sem perspetivas a dois... ou a sete. Pelo menos! Não sei o que é decidir sem ponderar outros - ainda que pondere contra o que porventura desejariam - sem ter em linha de conta as suas próprias expectativas em relação a mim. Não sei o que é isso por que já o remeti para outras núpcias. Mas há sempre algo que sou que, por mais que o tempo passe, por mais que a vida molde, permanece. Sempre! Uma solidão intrínseca, profundíssima, quase sempre adormecida, que espreita nas menores oportunidades e é prontamente rechaçada pelos que me rodeiam. Mas que, acredito, se instalará de armas e bagagens em alguma altura da minha vida. Que venha longe!
20151215
Falamos hoje a primeira vez. Ao telefone! Desde 26 de Outubro que não escutava nada vindo dele. Desde esse dia que apenas o vi dormir, quando o fui visitar, mas ele estava tão cansado que nem conseguia abrir os olhos e nem deu conta que eu estava lá. Hoje disse-me que lho tinham dito. Ainda bem! Prometi-lhe que esta semana visita-lo-ia, com tempo para sentar, olhá-lo, ser olhado, e conversarmos o que temos a conversar. Com Tempo! Que eu pensei nunca mais voltar a ter junto dele.
Sou um homem de fé. Acredito em milagres. Não particularmente em luzinhas vindas do céu, particularmente dirigidas a alguém, mas acredito em milagres. Acredito que há pessoas boas e profissionais bons e sensíveis e inteligentes que estão atentos aos que deles necessitam e fazem tudo o que podem e sabem, não querendo saber nessas alturas das suas próprias circunstâncias. E acredito que Deus atua neles e por eles, por vezes até ao arrepio das suas próprias conveniências.
E acredito que o Jorge é um milagre. Não que tenha tido um olhar mais atento de Deus sobre si que sobre alguém que atravessava o mediterrâneo, mas porque tinha outros à sua volta que, em determinada altura, escolheram a sua profissão acreditando que poderiam salvar vidas e empenharam-se em salvar a vida do Jorge. E tinham condições físicas e materiais para o fazerem.
Importante mesmo, no entanto, não é se eu acredito ou não em milagres. Importante mesmo é que o Jorge, lentamente, ao seu ritmo, vai ficando melhor. E eu louvo a Deus por isso.
20151211
Acho sempre espantosa a volatilidade do meu olhar. Acredito algumas vezes que o que vejo é o que vejo e que as coisas são como as vejo. Que o azul é azul e o vermelho vermelho, que o belo que vejo apenas pode ser belo e toda a vida foi belo, que nada nem ninguém pode adulterar algo para mim tão evidente - naquele momento - como aquilo que vejo. E então ajo em conformidade, alicerçado na perceção evidente do meu mundo, que me é trazido pela clarividência do meu olhar.
Perguntaram-me ontem se eu estava com uma depressão. Talvez. Não sei. Não é questão que me tenham colocado antes. Não é questão que eu próprio me tenha colocado antes. Não é questão que me queira colocar agora. Tem sido uma semana difícil, só isso. Em termos emotivos, não apenas em acontecimentos. O coração tem batido demasiado perto da cabeça, com a natural confusão que daí advém, revelando, num impulso, emoções quando racionalidade é pedida.
Esta semana fui caminhar. Todas as manhãs de trabalho. Quase todas, manhãs geladas, cheias de sol, frias e feias. Quase todas as manhãs, gelado, cheio de sombras, frio e feio. A paisagem que ontem me serenava hoje inquieta-me, o silêncio que ontem me sussurrava hoje grita-me, as emoções que ontem me garantiam a certeza do caminho hoje atabalhoam-se.
As pouco habituais manhãs de sol quando esperamos chuva sabem bem mas deixam-me preocupado. Não acredito que a vida possa ser sempre sol nem que possamos escolher o tempo que faz. Ás vezes há sol, outras a chuva, e eu gosto de ambos, que alternadamente apelam à vida lá fora e ao recolhimento, num equilíbrio que me é tão desejado quanto precioso!
Perguntaram-me ontem se eu estava com uma depressão. Talvez. Não sei. Não é questão que me tenham colocado antes. Não é questão que eu próprio me tenha colocado antes. Não é questão que me queira colocar agora. Tem sido uma semana difícil, só isso. Em termos emotivos, não apenas em acontecimentos. O coração tem batido demasiado perto da cabeça, com a natural confusão que daí advém, revelando, num impulso, emoções quando racionalidade é pedida.
Esta semana fui caminhar. Todas as manhãs de trabalho. Quase todas, manhãs geladas, cheias de sol, frias e feias. Quase todas as manhãs, gelado, cheio de sombras, frio e feio. A paisagem que ontem me serenava hoje inquieta-me, o silêncio que ontem me sussurrava hoje grita-me, as emoções que ontem me garantiam a certeza do caminho hoje atabalhoam-se.
As pouco habituais manhãs de sol quando esperamos chuva sabem bem mas deixam-me preocupado. Não acredito que a vida possa ser sempre sol nem que possamos escolher o tempo que faz. Ás vezes há sol, outras a chuva, e eu gosto de ambos, que alternadamente apelam à vida lá fora e ao recolhimento, num equilíbrio que me é tão desejado quanto precioso!
20151208
Acredito que há amor que me ultrapassa. Acredito que todo o amor me ultrapassa. Ou então não é amor. Pode ser arrebatamento, ou paixão, ou obsessão desenfreada que nos tolhe os movimentos e o pensamento por alguns, breves, momentos - o que é um momento no espaço de uma vida? - e depois passa, eclipsa-se, acaba, como acaba o sol no final de cada dia, por muito quente que esse dia tenha sido. Mas não volta. Não permanece. Não fica, apesar de tudo, apesar de toda a racionalidade, apesar de todo o bom senso, ou mau senso, ou qualquer senso. O amor ultrapassa. Todo o senso. Mesmo o contrassenso. Aliás, estou convencido que todo o amor é contrassenso. Não faz sentido. Faz sentir, o que é absolutamente diferente. Para melhor! No amor não pesamos os prós e contras, como numa tabela de cálculo. Porque não há cálculo. Ou então, é um amor calculista. E já não é amor. Não sendo cálculo, terá que ser, assumidamente, risco. Não de engenheiro - não é cálculo - ou de arquiteto - nem sempre é bonito de se ver - mas de criança, mais sarrabisco que risco, muitas vezes tosco, muitas vezes às voltinhas, incontrolável, conduzido por causas superiores, que nem se sabe bem quem são e muito menos ao que vêm. Eu gosto da forma de amar das crianças. De cabeça. Sem comos ou porquês, descomplicadores ligados, vivendo o amor a toda a brida.
Não sou criança, eu sei. Mas, ainda assim, acredito que o amor me ultrapassa. Só assim o sei viver. Só assim o merecerei viver. Só assim continuarei na firme mas deliciosa ilusão que, apesar de tudo, jamais caminharei só.
20151207
"Está uma manhã fria e feia", escrevi. "Como eu", pensei sem o escrever. Estava, de facto. estávamos, ambos, eu e a manhã, frios e feios, sem qualquer réstia de sol que aquecesse. E o fim de semana até foi bom, tive o Juramento de Hipócrates da minha filha - que estava felicíssima! - deu para descansar e recuperar forças, deu para escrever algumas coisas, preparar outras, mas...
Há uma cena no "vamos dançar" em que o protagonista confessa a sua vergonha por sentir que lhe falta algo, apesar de ter tudo o que sempre sonhou. Como eu o percebo! Tenho dias em que o sol não me aquenta, em que me deixo ir abaixo, em que a acutilância desta sensação de perda me incomoda verdadeiramente. A ponto de moldar o meu dia. São dias em que me sinto uma sombra, em que pareço uma sombra, em que procuro a sombra, em que quero caminhar na sombra do corredor, e onde cada "biba" ou "bom dia" me soa a descabido. Em que o que mais me apetece - e já o fiz hoje - é pegar na guitarra, sentar-me ao fundo da capela, e deixar-me perder nela, nas suas cordas, nas memórias que elas me trazem, no recuo que elas me fazem sentir.
Hoje, daqui a pouco, tenho 24 Minutos ComTigo. Que vem mesmo a calhar com os eu recolhimento, os seus cânticos calmos e acolhedores, com o olhar a pousar nos miúdos à minha volta e a dar Graças por isso, com os amigos à minha volta e a dar Graças por isso. Depois irei ver o Jorge - que se lixe tudo o resto! Já vai sendo tempo de o ver, de o encarar, ainda que isso exija de mim a realidade de o encontrar estendido numa cama de hospital.
E que se lixe tudo o resto!
20151205
"Eu quero viver, sabes? Finalmente viver. Ir a um teatro, a um cinema, a uma exposição de arte, passear a sábado de manhã, escolher não passear ao sábado de manhã e ficar em casa, simplesmente ficando em casa. sem nada para fazer, saboreando o sem nada para fazer. Quero apanhar um comboio ou um avião no final de sexta e ir para um outro lugar e conhecer e viajar, quero estar de volta no domingo, a tempo de descansar e me preparar para a semana que se segue. Quero deixar de ter compromissos de fim de semana e de ter que estar sempre ocupado para os outros e pelos outros. Quero a minha carta de alforria, o meu grito do ipiranga. Adio-me há mais de trinta anos,tenho dez ou quinze para viver com qualidade, para sentir a vida a acelerar o pulsar do sangue e não os quero desperdiçar."
Escutei o que dissera, passei-o em revista, e suspirei fundo, concordando novamente. Em nada do que dissera escutara qualquer novidade. Mas vai ser uma surpresa do caraças. Para toda a gente. Particularmente para quem é mais próximo e ainda assim nunca sentou, nunca conversou, nunca se preocupou em escutar atentamente, cuidadosamente, os variadíssimos sinais que, afinal, apenas careciam de sentido para serem visíveis para toda a gente. Particularmente para aqueles que são mais próximos mas que a proximidade dilui a importância, o valor, o peso das palavras, desvalorizando-as, misturando-as com o passageiro do quotidiano, e que nem sequer se aperceberam que a determinada altura as palavras foram sendo menos frequentes, silenciadas, sem que ninguém lhes tenha sentido a falta. Mas também para aqueles - tantos! - que apontam e comentam e encontram o que querem encontrar, e vêem o que querem ver, e ouvem o que querem ouvir, ignorando os "olhe que não" ou "isso não é assim" em nome de uma qualquer pretensão de humildade que não existe, nunca existiu, mas antes insegurança, e consciência dessa insegurança.
Recordei o que dissera, voltei a passá-lo em revista, e suspirei fundo. Mais uma vez. Apercebi-me da tremenda batalha interior, percebi as noites mal dormidas, o sorriso sonhador que rapidamente intercalava com o olhar baço quem se sente perdido e dá lugar ao rosto fechado e determinado de quem sabe que vem aí borrasca. E se prepara para ela.
20151202
A claridade do olhar, do meu olhar, nem sempre é percebida. É extraordinariamente fácil deixar que o meu olhar se vá toldando, lentamente, gradualmente, imperceptivelmente, e o mundo vai ficando acinzentado, mais nublado, mais turvado, e eu com ele.
Eu gosto de olhar. A fundo. Consigo esquecer os nomes e os lugares onde os nomes se tornaram nomes e as pessoas se tornaram pessoas, mas dificilmente esqueço um olhar. Disseram-me, em Quelimane, numa outra vida - já tive tantas vidas! - que por vezes o meu olhar é demasiado. Intenso, provocador, invasivo, contundente, incómodo, revelador... é vir o diabo e escolher. Não tinha essa ideia. Para mim, olhar sempre fora olhar. Apenas isso. Só depois me apercebi que para mim, olhar é muito mais que apenas olhar. Que serve para ver. Que serve para conhecer. Que serve para valorizar. Ou não. Não estou, no entanto, habituado a ser olhado. Perscrutado. Analisado. Revelado. Amado, até. Pelo olhar de alguém que não o meu. Incrivelmente, há novidades que ainda me são inteiramente novas.
A claridade do olhar, do meu olhar, nem sempre é percebida. É extraordinariamente fácil deixar que o meu olhar se vá toldando, lentamente, gradualmente, imperceptivelmente, e o mundo vai ficando mais nublado, mais turvado, e eu com ele. Até que alguém me olhe. Atentamente. Amorosamente. E o dia ganha mais cor. E a vida recupera a tonalidade perdida. E eu com ela.
20151201
Aperto o casaco de Taizé até cima e ainda assim o vento gelado entra-me pelo pescoço dentro. Meto as mãos nos bolsos, na vã tentativa de manter as mãos quentes - logo as mãos, que neste tempo estão sempre geladas! - e acelero o passo. Hoje não vi ainda ninguém. Não admira. Lá para abril ou maio é que isto começa a ficar pejado de gente a correr, a passear, a estenderem-se como bacalhaus a secar. Por agora o frio ou a expectativa de chuva afasta a maioria das pessoas. Ainda bem! Lá para abril ou maio, à medida que os outros vão chegando, eu vou saindo. Não que tenha a mania, mas porque é sossego, o que procuro, e sossego é pouco compatível com algum tipo de pessoas. Viro a esquina para subir as escadas e deparo-me como senhor de calções. Já vi alguém. Arrepio-me ao pensar como pode alguém andar de calções com aquele vento gelado e sigo caminho. Ao fundo vejo, finalmente, o senhor idoso com o cão idoso e, como sempre quando me cruzo com eles, não consigo concluir qual deles tem mais artroses. Mancam ambos, sempre juntos, sempre ao lado um do outro. Calculo que se passearão mutuamente há alguns anos e pergunto-me o que acontecerá a cada um deles quando o outro já não puder caminhar. Mais adiante, a miúda do cão rafeiro passa por mim, música nos ouvidos, como sempre, vara na mão, como sempre - para que será? - rafeiro atrelado, como sempre. Atrás dela, a senhora do cão de água, já um velho conhecido tantas foram as vezes que me cheirou as pernas. Tantas como aquelas em que a senhora me pediu desculpa, provavelmente. Afinal passaram quase todos. Como todos os dias. apesar do tempo, apesar do frio, apesar da chuvinha, algumas vezes, passamos uns pelos outros quase todos os dias.
Nunca encontrei grande problema em fazer o que quase ninguém faz. Ou em dizer o que quase ninguém diz. Ou em ver o que quase ninguém ver. Talvez porque fale como quase ninguém fala e isso relativiza muito do que se possa dizer ou penar sobre mim. Quando encontro prazer em alguma coisa que não interfira com ninguém não me coíbo nada de a fazer. Esta atitude, que nem sequer é pensada mas instintiva, deu-me já experiências absolutamente fantásticas, difíceis de partilhar porque, na maior parte das vezes, as vivi sozinho. Não é fácil arranjar companhia para estar na praia debaixo de um chuva torrencial tendo a trovoada como pano de fundo, ou a tomar um banho no mar de Nazaré às 4 horas de uma madrugada de novembro ou deixar um jogo de futebol a meio no meio do bairro porque está na hora do ensaio... ou da catequese. Tive também que lamber muitas feridas, também vividos a um, seguindo intuições completamente erradas, indiferente às vozes ajuizadas que me berravam aos ouvidos para não ir por ali.
Creio que será o preço a pagar para ter memórias que valem a pena!
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