20211231

Mesmo com o meu habitual otimismo, não há maneira de conseguir sentir que este foi um bom ano. Vi demasiadas vezes o desespero e a dor nos olhares daqueles para quem trabalho para que possa ter a veleidade de fazer as pinturas que faço sempre para dar novas cores à minha realidade. É que, desta vez, nem se trata da minha realidade mas da realidade que acontece fora do meu exacerbado umbigo. Talvez por isso, ao longo deste ano as coisas boas nunca foram inteiramente boas, foram sempre acompanhadas de um espectro que pairava, permanentemente, e que quase me fazia sentir envergonhado quando me alegrava com o que me faz alegrar, como se não tivesse sequer o direito de o fazer. Ao longo deste ano dificilmente me sentia bem sem sentir uma pontada de dúvida: será que não estou a ser egoísta? Creio que esta será a marca deste ano, um pouco como calculo que será a marca deixada pelos estados de guerra, quando as pessoas têm mesmo, por questões de sobrevivência, de fazer um esforço para se alhearem do que se passa "lá fora", sendo que, nesta nossa guerra, o "lá fora" é a casa do vizinho, quando não é a casa de um familiar menos próximo. 

Este é, por isso, um ano para não esquecer. 

Curiosamente, hoje, estou com muito pouca vontade de recomeçar, o que é bastante inusitado da minha parte. Nem de recomeçar, nem sequer de começar. Não me apetece nada fazer o habitual reset para sentir renovadas energias e iludir vontades. Hoje, curiosamente, apetece-me permanecer. Sem cortes, sem ruturas, sem novas decisões de ano novo, mas, pelo contrário, assumindo e agarrando-me ao que é meu, verdadeiramente meu, sendo inteiramente eu. Agarrar-me aos meus, aos que amo, à minha fé, aos meus valores, à minha bússola, aos que comigo fazem o meu caminho, àqueles por quem batalho e com quem batalho, aos que ensino e com quem aprendo, congregando energias e balanço, como naquele movimento de finca pé que impulsiona antes do salto. Hoje apetece-me olhar para dentro, para os imensos que me habitam, e agradecer-lhes. E agradecer. Agradecer muito. Foi um ano duro. Muito duro. Mas estamos aqui. Preparados para o que der e vier. 

Venha ele.

20211228

 Sim, eu sei.

 

Estamos todos à distância de um click ou de uma mensagem 

mas não é a mesma coisa.

Encontramo-nos e rezamos juntos, numa estranha eucaristia, no aconchego do lar de cada um,

mas não é a mesma coisa. 

Despedimo-nos, à distância, uns dos outros, desejando-nos o melhor, com os sorrisos possíveis

mas não é a mesma coisa.

Cearemos todos, hoje,  mais ou menos ao mesmo tempo, nas nossas mesas,

mas não é a mesma coisa.

 

Faltou, este ano, mais uma vez, o estarmos efetivamente juntos na eucaristia, 

o sabor do bacalhau com broa da nossa ceia

os risos e as gargalhadas de quem se vê todos os dias em “farda de trabalho”

as brincadeiras do SPEC

as canções dos novos

o abraço apertado, caloroso, antes de rumarmos às nossas casas.

 

Seria tão bom que tivesse acontecido!

 

Seria... não foi. 

Pela segunda vez... não foi. 

Quando todos contávamos já que fosse... não foi.

Quando todos desejávamos já que fosse... não foi.

 

E ser Rosário, é também isto. 

 

É também a saudade que nos habita por não podermos ser o que, tão naturalmente, somos. 

É também sentirmos não ser a mesma coisa estarmos juntos e não podermos estar juntos; 

é também estarmos fartos de nos vermos por detrás de écrans; 

é também estarmos cansados de não nos vermos por detrás da máscara. 

 

E é também acreditar que a nossa fragilidade dará lugar a retomada energia

E é também confiar em quem nos lidera, 

em quem trabalha ao nosso lado, 

em quem se cruza connosco nos corredores.

 

E é também saber, 

sentindo, 

sorrindo, de olhos fechados, 

que Ele, o Menino Deus, 

está no meio do Nós.  

 

Feliz Natal, Gente Boa

 

É um privilégio fazer Natal convosco.

20211222


 

Não sou de humildades bacocas. Tento perceber quais as minhas capacidades, o que faço bem e o que faço menos bem, ou não consigo, de todo, fazer com um mínimo de qualidade e, quando me pedem alguma coisa, é justamente com base nesse conhecimento de mim próprio que aceito ou recuso as propostas e pedidos. Soa racional, mas não é apenas racional. Em mim, aliás, nada é puramente racional. Junte-se a isto uma enorme - saudável? - dose de loucura proveniente de um infantil entusiasmo pela possibilidade de ser e fazer com outros, e percebe-se porque tenho muitas vezes a sensação que estou perdido porque me meti numa alhada e dei um passo maior que as pernas. No entanto, é justamente esta saudável e inconsciente loucura que me leva a descobrir em mim capacidades que me desconhecia e a fazer coisas que me julgava impensáveis. E a dar com a cabeça na parede quando não o consigo.

Mas não me ouvirão dizer sim quando o que pretendo dizer é não, ou a dizer não à espera que me peçam com mais força. Quando julgo que posso - e quero - voluntario-me com alguma facilidade e desfaçatez, e cansam-me imenso aquelas pessoas que gostem que lhes abanem ao fogareiro. Da mesma maneira, não é por me pedirem muito que eu mudo de ideias.

Evidentemente, na prática, nem sempre tenho a possibilidade desta clareza. Todos nós, que fazemos parte de instituições, em algumas alturas nos vimos condicionados - pelo respeito, pelo carinho, pela amizade, pela autoridade (muito raramente, na minha vida) - a fazer aquilo que sabemos que não é a nossa praia. E umas vezes isso acontece porque naquela circunstância somos quem está mais à mão, ou todos os outros se encostaram ou então porque vêem em nós justamente aquilo que nós próprios não conseguimos ver. No meu caso, a um pedido desses segue-se sempre um enorme período de sofrimento, e um outro de estudo profundo, num ambiente interior de enorme insegurança. E, invariavelmente, não gosto de mim nesse desconforto generalizado. Até pode correr bem, até posso crescer, até posso desempenhar um bom trabalho, mas, no final, não me sinto compensado. 

É que eu, normalmente, gosto mais, muito mais, da viagem, e tendo a menosprezar o destino. E é-me sempre muito mais gratificante apreciar as pequeninas coisas do quotidiano que a eventual (e, para mim, sempre fugaz e efémera) glória da vitória. Que nunca compensa que tenha perdido a alegria do percurso.

20211216

 

Sou crescidinho o suficiente para já saber como por vezes a vida me impõe o que, se eu controlasse tudo, jamais faria. Na verdade, à medida que vou avançando no tempo, vão sendo cada vez menos as imposições ligadas àquilo que eu entendo que sou e mais ligadas àquilo que eu faço. São escolhas, claro, mas que de uma forma geral não me alteram nem a personalidade que é a minha nem os valores que me orientam. Mas, mesmo isso, nem sempre é assim tão líquido.

Eu cresci num meio social em que é maior motivo de vergonha pedir que roubar. Vou repetir: quando era muito miúdo, roubar era quase natural e pedir era sempre humilhante. Mesmo na eventualidade de se ser apanhado a roubar – o que não era muito frequente, pelo menos na altura – a justificação que era encontrada era, naquela envolvente, mais bem aceite pelos pares que a humilhação de ter que pedir. Afinal, só se roubava porque não se tinha o que a outros sobrava, pelo que seríamos uma espécie de Zé do Telhado em proveito próprio. E quem tinha, se não cuidava do que tinha, era porque não lhe fazia falta ou não lhe era suficientemente importante para justificar o seu bom cuidado. O meu percurso de vida fez-me reencontrar esta lógica da batata recentemente, junto de alguns dos miúdos com quem passo grande parte dos meus dias. E desmontar isto, mesmo para mim, que o entendo, não é fácil. Sobretudo se aliado a uma outra realidade, que até é incutida pelos pais: “Tu não pedes ajuda, tu desenrascas-te. E se eu venho a saber, seja por quem for, ainda ficas de castigo” (leia-se isto devidamente acompanhado de impropérios típicos do Norte: para cada palavra, dois impropérios). Para o bem e para o mal, esta arte do desenrascanço, a sós, no silêncio da culpa, marca-nos indelevelmente o corpo e a alma. A mim marcou.

Naturalmente, fui crescendo e a sorte da escolha mútua de boas companhias foram-me limando estas e outras arestas que me permitiram ir adotando um outro código de valores mais consentâneos, não com o que sou – ou julgava que era – mas com o que sou chamado a ser. Mas sabemos todos como há coisas em nós que permanecem, que, racionalmente, escolhemos que não sejam de uma determinada maneira, mas que nos desassossegam e exigem um esforço hercúleo para serem contrariadas.  Ora, pedir, para mim, é uma dessas coisas. Pedir o que quer que seja a quem quer que seja qualquer que seja o motivo é uma daquelas coisas que me revolvem as entranhas ao ponto de sentir náuseas. Por isso, sempre que pude, evitei esse ato de pedir.

Nas campanhas de solidariedade – que são frequentes na minha vida - nos hipermercados, escolho sempre estar noutro lugar que não seja o da entrega dos sacos. Posso estar na organização, posso estar durante vários dias, com vários turnos, na recolha dos bens e dos sorrisos, mas entregar sacos é matar-me. Posso trabalhar duro no armazém, ser o primeiro a chegar e o último a sair, organizar criteriosamente os alimentos por género e número, contar e recontar para que não falhe nada, mas não me peçam para os pedir. Nem pedir às pessoas para estrem presentes, ou colaborarem, ou abdicarem do seu tempo para me ajudarem. Nada disso. Eu resolvo, eu sacrifico-me, eu desenrasco-me. Com um sorriso nos lábios.

O que eu não sabia – e que a vida se encarregou de me ensinar da melhor maneira: espetando a parede contra a minha cabeça – era que esta é uma extraordinária falta de humildade da minha parte. Pedir é recusar-me autossuficiente, é colocar-me à mercê de alguém, é dizer eu não tenho, é olhar nos olhos e dizer eu preciso, é tornar-me dependente, é arriscar ser desprezado e humilhado, é encarar a possibilidade de ser motivo de pena, que é, para mim, a suprema humilhação. Vai contra todos aqueles instintos que me foram incutidos em miúdo e que ainda hoje me fazem engolir em seco quando têm que ser contrariados. Mas têm que ser contrariados. Eu tenho que os contrariar. Porque pedir, se é aquilo tudo que referi anteriormente, é também descoberta que se é amado, é também ser puxado para cima, é também encontrar uma mão que nos é estendida, é também mergulho num Nós que apenas ultrapassa o vácuo palavrar e encontra verdade quando tem a oportunidade de se fazer vida vivida, vida sentida, vida partilhada. Efetivamente. Na carne. Na alma.

Já adulto, pedi e peço muitas vezes. Nenhuma delas sem um enorme custo, nenhuma delas sem aquela náusea, nenhuma delas sem a procrastinação que destino às coisas verdadeiramente desagradáveis que espero que não tenha necessidade de fazer acontecer, nem que seja por uma qualquer luz vinda do céu: “afasta de mim este cálice, Pai”. Quando peço, o que quer que seja, a quem quer que seja, para quem quer que seja, faço-o inevitavelmente tarde e a más horas, quando já não consigo adiar mais, quando já enfrento as nefastas consequências de não ter tido a coragem de efetuar o pedido antes, atempadamente, quando se justificava, quando sabia ser inevitável enfrentar a dolorosa necessidade de pedir.

E, no entanto, sempre que peço fico maravilhado. Pela generosidade de quem me acompanha, pela naturalidade da entrega, pelo amor que me rodeia e que se torna particularmente palpável quando eu preciso do que quer que seja, de quem quer que seja, para quem quer que seja. Vou percebendo que pedir é uma espantosa maneira de revirar o quotidiano permitindo que o ar se renove, libertando o que nos ata, dando visibilidade e possibilidade ao melhor de nós. E que, por isso, pedir, colocar-se à mercê, submeter-se, estender a mão, é, afinal, o que nos torna verdadeiramente humanos. E caminho, para que os outros façam acontecer amor em nós.

 

Publicado aqui: https://hospedeignorado.blog/

 

20211102

 


Manhã de novembro. Alguma chuva, algum frio. Os suficientes para afastar aqueles que não gostam tanto assim de caminhar à beira mar. O suficiente para aqueles que, como eu, encontram aqui o começo quase que perfeito para cada dia. Encontro o dia em cada passada, lenta, que me mantém num clima interior propício o reflexão e à oração. Encontro-me em cada passada, lenta, num diálogo interior que me prepara para o dia que agora começa. Sou um privilegiado. Dou Graças. Pelo dia, pelos que tenho, pelos que encontro, pelos que não chego a conhecer. Peço pelos que me habitam, para que sintam, algures neste dia, esta serenidade, esta harmonia, esta completude. Peço por mim, para que saiba ser digno do privilégio de começar assim o meu dia, de viver assim a minha vida.

Obrigado, Pai.

Vamos a isso.

20211025


 
Iludo a distância que medeia o Porto e Cabo Verde com o WhatsApp. Uma das minhas filhas está lá a trabalhar, numa carreira internacional que a seduz, mas que agora lhe dá a conhecer um sabor que a desagrada. Há bem pouco tempo, depois de vir de Bruxelas, dizia-me que não se via a fazer o que eu e a mãe fazemos: a permanecer no mesmo local vários anos, com rotinas estabelecidas e vidas organizadas. Há momentos acabou por me dizer o contrário, que se calhar já não tem idade para andar a saltar e sente necessidade de alguma estabilidade. Mesmo descontando o facto de ter passado do centro da Europa civilizada para África - que conhecia, mas apenas como campo de missão - e do choque emocional que está a sentir num país onde tudo é diferente, eu entendo-a bem. Também eu estive em missão em África e, se intuía que não gostaria de África, vim com a certeza que detesto África. Curiosamente, não sei bem o que detesto, já que adorei as pessoas e a paisagem, das quais tenho imensas saudades. Mas não consegui lidar com o caos, com a falta de esgotos, com a confusão e o pó e o clima e aquela desorganização total que me levou a pensar, pela primeira vez, que pagar impostos é, afinal, uma coisa boa. Calculo que seja algo desse tipo o que a minha filha está a sentir. Sobretudo depois de um ano intensíssimo vivido em Bruxelas - a que ela chama o centro do mundo político europeu. Mas no fundo isso não importa para nada. O que importa é que ela é nossa filha e a nossa vontade é metermo-nos num avião e irmos lá nem que seja para lhe afagarmos a cabeça e dizermos que está tudo bem, que é normal, e recordar-lhe que ela tem sempre o seu lar para onde voltar. Claro que não lhe dizemos isso, que a empurramos para fora, e falamos do tempo péssimo em Portugal e como deve ser bom viver perto da praia naquele clima de Cabo Verde, e elogiamos a sua casa e as frutas que vemos em cima da mesa, e a forçamos, no fundo, a olhar para o lado A da sua vida. Não fácil. Nem para ela, nem para nós. Mas é o que tem que ser.

20211022

Acho sempre curioso quando nós, os que dizemos que temos fé, agimos como se ela não existisse. Mais até que aqueles que dizem não a ter.

Para qualquer pai ou mãe crente, a educação dos filhos é algo problemática. Enquanto são miúdos e têm que fazer o que nós lhes "pedimos", a coisa ainda vai. Mas eles não o fazem sempre. Nós, lá em casa, educamos os nossos filhos a desenvolverem a sua capacidade de escolha e de argumentação o suficiente para que eles, a determinada altura, pudessem escolher o seu caminho, que poderia ou não ser coincidente com o nosso. E não é. Claro que há aqueles princípios básicos civilizacionais - o respeito, a boa educação, a não discriminação... - que são inegociáveis. O que, pelo menos para nós, não é o caso da fé.

A fé é um encontro, íntimo, profundo, autêntico, entre Deus e cada um. Ao considerarmos a fé desta maneira, não faz sentido a imposição da fé aos nossos filhos. Na verdade, todos eles fizeram o percurso catequético e sacramental de um católico, mas isso não tem a haver com a fé, mas com a religião. Por isso, enquanto alguns deles permanecem nesse caminho, com prática eucarística dominical, por exemplo, outros já o deixaram de fazer por escolha própria. 

Para ser sincero, isto não é absolutamente claro para nós enquanto pais - aliás, recordo-me de um número muito reduzido de coisas na educação dos nossos filhos que eram absolutamente claras - e, mesmo entre mim e a Isabel há posições e opiniões muito díspares. No entanto, até pela minha história pessoal do encontro de Deus comigo - e há sempre uma história pessoal - eu acredito mesmo que Deus vem ao nosso encontro. Assim, o que me preocupa é se os meus filhos estão atentos aos potenciais momentos de encontro com Deus. Se eles se escutam, meditam, se promovem o encontro consigo próprios ou vivem no turbilhão da luz e do som e do movimento ensurdecedores do espírito.. E o que fazem com o que escutam, como o operacionalizam, como saem de si mesmos para irem ao encontro dos outros. E do Outro. E aí a resposta é clara: até pelas suas escolhas profissionais, pela maneira como vivem o seu quotidiano, eles vivem com Deus dentro. Podem não ter prática religiosa convencional, mas o seu modus vivendi tem Deus dentro. E isso, para mim pelo menos, é o mais importante.

E é aqui que retorno à minha primeira afirmação. Nós, os que dizemos que temos fé, agimos muitas vezes como se não a tivéssemos. Falamos em Encontro Profundo, e caminhada de fé e no final vemos os sacramentos não como momentos em que esse encontro acontece mas como práticas de uma socialização eclesial que, sendo importante, não é, de todo o mais importante. Na verdade, a nossa grande tentação, enquanto pais, é a de forçarmos esse encontro, sem a liberdade que Deus nos deu para sermos nós a decidi-lo na profundidade e no recolhimento de nós próprios. E isso, quando a mim, denota pouca fé no próprio Deus, que, quaisquer que sejam as circunstâncias, vem sempre ao encontro de cada um. Em total e mútua liberdade. E tem que ser nessa liberdade que cada um decide a sua resposta. A cada momento!

20211021


 

Como se mede, hoje a distância? Quão longe é, hoje, o longe?

 

I

Há já algum tempo que vários dos meus filhos vivem e moram longe de casa. Daquela que era a sua casa. De entre eles, alguns ainda vivem no país e outros – uma das raparigas – não vive sequer no mesmo continente. Entre nós, falamos quase todos os dias, certamente todas as semanas, e acompanhamos os seus estados de espírito com uma frequência que, provavelmente, não acontecia quando eles estavam à mão de semear. Não admira: todos temos esta coisa de quase desprezo pelo corriqueiro que sabemos que amanhã se repete com facilidade. Na nossa relação familiar à distância, as redes sociais são uma verdadeira bênção: conhecemos as suas casas como se já lá tivéssemos estado, temos conversas em família com todos ao mesmo tempo, combinamos prendas, por vezes cozinhamos juntos, e até a árvore do último Natal foi montada a partir de bitaites enviados pelo WhatsApp. Excetuando aquelas alturas em que sentimos que eles estão com dificuldades – e que nos dão ganas de nos metermos no primeiro avião para lhes dar colo – a distância física não equivale, de todo, à distância afetiva. Estando longe, estão perto. Na realidade eles não estão fora, estão dentro, bem dentro, e o que nos separa é nada, absolutamente nada. 

 

II

Nos Açores, no topo da montanha, conseguia ver toda a ilha. E todo o mar à minha volta. E a única coisa que conseguia pensar era: onde vai esta gente toda ao domingo? Pela primeira vez vi-me confrontado com um sítio demasiado pequeno para os meus anseios. Nunca antes me tinha acontecido esta sensação de claustrofobia em céu aberto. Mas já me tem acontecido, depois desse episódio. Várias vezes! Hoje em dia ninguém fica deste lado do mundo na viagem de lua de mel, as férias passam-se nas Maldivas, ou em Cabo Verde, ou em qualquer outro lugar que, há dez anos, nos exigiria anos de poupanças e planeamento. A sensação que tenho é que a Terra está a ficar demasiado pequena. Para onde iremos daqui a vinte anos? O que será longe, nessa altura? Por isso os ricos querem viajar agora para o espaço: a última reserva exclusiva dos endinheirados.

 

III

A distância nunca foi tão iludida. E nunca foi tão ilusória. Todos conhecemos pessoas que, morando no mesmo espaço, habitam noutros lugares, onde se sentem queridos, onde se sabem entendidos, aceites sem subterfúgios, sem discussões nem exigências outras que não aquelas que estão dispostas a conceder. Neste, como noutros tempos, o nosso mundo afetivo é composto por aqueles que conhecemos e a quem nos damos a conhecer. Mas enquanto noutros tempos esses eram, fundamentalmente, os que gravitavam no mesmo espaço físico, agora o espaço é outro. Não o fora de nós, nem o de dentro, mas o algures, o não-sei-bem-onde, no qual apenas entra quem permitimos que nos habite, com ou sem tenda montada, sem pagar renda, mas despejo programado. São lugares precários, estes, onde se habita o efémero e, inevitavelmente, o ilusório. São lugares onde rapidamente se deixa de estar, tal a facilidade com que se parte para um outro lugar, que o virtual exige armas, mas não bagagens. Também por isso há, hoje, uma evitabilidade da exigência, por contraposição à antiga inevitabilidade do encontro, quando não tínhamos outra alternativa senão habitar a mesma casa, a mesma aldeia, a mesma vizinhança, e era mais difícil evitarmos o confronto com os outros... e connosco próprios. E, passito a passito, como na canção, vamos ficando distraidamente longe... 

 

IIII

Quando Z chegou ao Espaço, bastou o seu olhar para sabermos logo qual deles chegara. Z é um miúdo com aquelas experiências que, quando chegam, chegam sempre demasiado cedo. Nos seus oito anos já defendeu a mãe e a irmã da porrada do pai, e apanhou por tabela; já viveu, escondido, numa instituição, já viu refeita a sua família com um – agora sim - pai, e agora, infelizmente, guarda tudo no seu coração. Infelizmente, porque nem sempre são as coisas boas o que se guarda no coração, e o Z não as viveu ainda o suficiente para poder substituir as que o habitam. Inusitadamente doce, terno, sobretudo para um miúdo do bairro, o Z traz-me sempre à memória o Dr Jekyll e o Mr Hyde, do Stevenson, só que desta vez não o leio em livro, mas nos seus olhos, ora suplicantes, ora furiosos, prontos a explodir. Quando nos chegou não sabíamos o que fazer, e fazíamos tudo mal. Mas fomos aprendendo: ficamos perto, atentos, deixamos que o Hulk salte cá para fora e depois sentamos, escutamos, mimamos, recordando-lhe ao ouvido o quanto gostamos dele, e que está seguro connosco. E sabemos que assim que a lágrima cai, suavemente, é sempre seguida de um abraço do tamanho do mundo, que nos restitui ao que a vida deveria ser. E o Z a si próprio, cada vez mais perto do que sonha ser.

20211007


 

Recebi uma mensagem do meu filho: "isto é um escândalo!" É, filho, é mesmo um escândalo. "É vergonhoso!", respondi. Que haveria eu de dizer? Educamos os nossos filhos na Fé e na Igreja, onde fizeram o percurso catequético inteiro, foram dirigentes do grupo de jovens e estão envolvidos em vários grupos cristãos. Apesar de nem todos, agora adultos, terem prática eucarística dominical, vivem todos com Deus dentro, o que significa que as suas escolhas de vida, mais importantes ou menos importantes, têm sempre como pano de fundo a fé em Jesus Cristo, o seu inspirador nas atitudes e valores com que pautam as suas profissões e as suas vidas.  Desde sempre que temos longas conversas sobre a fé e a pertença à Igreja - que é difícil para eles - sem assuntos ou temas tabus, sem autores ou ideias proscritas, sendo tudo e todos passíveis de discussão. Discutimos, por isso, inúmeras vezes a posição da Igreja face aos temas fraturantes, cuja importância a Igreja despreza esquecendo que esses são, efetivamente, os seus temas, porque são aqueles que eles têm que debater nos mais variados areópagos que habitam. Lá, nas faculdades onde estudaram, nos hospitais e demais empresas onde trabalham, nas discotecas e bares que frequentam, ninguém sabe nem quer saber quem foram os teólogos mais marcantes na História da Igreja nem o que defendiam. Mas lêem jornais e vêem notícias e consultam a internet e sabem por isso quem é o Papa Francisco, de quem gostam, até porque acham que está muito à frente. Por isso, o que me preocupa enquanto pai, católico, mergulhado na Igreja até aos ossos, é como esta Igreja, que eu amo, que é uma parte muito importante da minha vida, fala aos meus filhos e aos seus amigos que não falam esta linguagem. O que diz ela? Que Jesus apresenta? Que modo de vida propõe? Como propõe? Eu conheço bem o que diz, eu até sei distinguir o trigo do joio, as parangonas daquilo que é efetivamente escrito. Mas não é para mim que a Igreja, hoje, tem que falar. E, se não quer falar a linguagem dos meus filhos ou nos lugares onde eles habitam, que se cale. Pelo menos que se cale. Se se calar, eles, os meus filhos e os filhos dos muitos católicos como eu, pelo menos não se vêem na necessidade de defender o indefensável ou, no limite, não são obrigados a baixar a cabeça com vergonha do que nós, os cristãos, também andamos a fazer. E a permitir que façam. Face às pedofilias, às fugas de capital, aos comércios duvidosos, às opolências, à surdez seletiva do mundo, às inúmeras segregações motivadas pelo género, pelas opções sexuais, pelos acontecimentos da vida, pela tentativa de cada um de exercer o seu direito de poder ser visto com a dignidade de filho de Deus qualquer que seja a sua circunstância, face a tantas enormidades que todos os dias leio e presencio por parte de pessoas da Igreja, que hei de eu dizer aos meus filhos e aos filhos dos outros? Curvo a cabeça em sinal de respeito e vergonha, peço perdão como o Papa, e luto por dentro, todos os dias, para que esta Igreja, que amo e à qual pertenço, consiga estar mais próxima do que Jesus quis para ela. Não é assim tão difícil: basta olhar para o Filho de Deus e tentar imitá-Lo. Difícil é consegui-lo.

20210924


A minha memória tem coisas giras. Hoje, na minha (abençoada) caminhada matinal deparei-me com o diálogo destes dois bancos de jardim. Imediatamente, a minha memória recuou vários anos, a Quelimane, onde aprendi uma das grandes lições da minha vida: a importância do tempo para estar. Lá, sempre que eu visitava a casa de alguém, a primeira coisa que faziam era colocar duas cadeiras à sombra de uma árvore. Mesmo que eu dissesse que não valia a pena o trabalho, que seriam apenas uns breves momentos de conversa, insistiam, e eu lá me sentava adaptando, com dificuldade, o meu ritmo europeu ao africano. Mais tarde, o Padre Jorge explicou-me: era uma maneira de me dizerem que aquele tempo me era dedicado, sem pressas ou desvios de atenção, que eu era suficientemente importante para justificar esse trabalho e esse tempo.
Claro está que vim de Quelimane com a pretensão de fazer o mesmo. Em vão. Mas ficou a lição. E é mais uma daquelas coisas que me fazem sentir alguma culpa e eu remeti para as calendas da reforma. 
É um bocadinho estúpida esta tendência para a culpa pelo uso que faço do tempo. Sobretudo porque sou um privilegiado, porque tenho a possibilidade de viver a vida que escolhi e exercer uma profissão que, de tanto sonhada, por vezes ainda me parece inverosímil. Normalmente aproveito bem o tempo, raramente o sinto como desperdiçado, e isso tem-me permitido ser habitado por memórias e lugares e pessoas que me enriquecem. Mas a verdade é que, demasiadas vezes, privilegia em demasia o tempo ao fazer e concedo pouco tempo ao estar. Para sentar e escutar e falar ou simplesmente estar, e contemplar, e saborear tudo o que me é proporcionado viver. Porque, sempre que o consigo, esse é um tempo de encontro. E o tempo de encontro é tão bom quanto fundamental para que eu consiga ser feliz.

20210922


Convidaram-me para falar de como é esta coisa de viver com fé dentro às turmas do 11º ano. E eu, que padeço desta incontinência verbal que me impede de dizer não a um bom desafio, tolamente, disse sim. E desde aí ando com este assunto na cabeça. É que falar do viver na fé é a mesma coisa do falar do respirar. Eu sei que respiro mas, exceptuando nos momentos em que o exercício aperta, não ando a pensar na maneira como respiro, se o ar entra pelo nariz passa pelos pulmões e é expelido pela boca. Não estou nem aí: respiro e já está. E, pelo menos nesta altura do meu campeonato - não significa que tenha sido sempre assim ou que o seja para sempre - viver com fé dentro é-me tão natural quanto respirar. Quer isto dizer que todos os meus atos, todos os meus pensamentos, todas as minhas pequenas decisões quotidianas são refletidas e ponderadas e contextualizadas pela fé e decididas de acordo com a minha fé? Claro que não. No entanto, espero, desejo, anseio, que subjacente a elas esteja a fé e que espelhem a forma como vivo a fé. Mesmo nas camelices - e são muitas - e na maneira como me arrependo delas e as tento trabalhar para ir sendo melhor, está presente a fé. Ou, sobretudo nelas, nas camelices, porque originalmente foi essa permissão para renascer que me atraiu em Jesus Cristo. Este olhar sempre novo sobre mim, sobre os outros e sobre a vida, sem coisas na manga, sem ontens recalcados, prenho de presentes possíveis e futuros sonhados, vividos e contagiados, tem muito a haver com a minha fé, com a maneira como vivo a fé. Agora... como se explica isto senão vivendo isto?

20210920


 

A cada morte, a cada notícia de morte, a cada confronto com a morte dos outros, inevitavelmente penso na vida. Hoje vínhamos a conversar justamente sobre esse confronto, sobre o como e sobre o que vale ou não a pena viver. O Padre Almiro dizia sempre que mais vela uma vida gasta que uma vida enferrujada. Sim, mas... e a dor? Vale a pena viver a dor? Em nome de quê? E o sacrifício? Vale a pena o sacrifício? Em nome de quê? Até que ponto?

A minha experiência vai-me dizendo que tudo isso pode valer a pena. Se formos felizes. Verdadeiramente felizes. Não permanentemente alegres, que isso, para além de ser idiota, é impossível. Mas intimamente felizes, como apenas quem vive em sintonia consigo e com aquilo a que se sente chamado a ser é. Naturalmente, uma sintonia assim só se atinge depois de muita escuta e de muita cabeçada na parede. Depois de começar e recomeçar imensas vezes, tantas aquelas em que se duvidou se aquele era, de facto, o nosso caminho. Porque a felicidade não pressupõe a ausência de tristeza. Ou de dor. Ou de desespero. Isso tem outro nome: alegria. E a felicidade nem sempre é alegria. É também, por vezes, dor. Mas a felicidade pressupõe a aceitação transformadora do que dói, encarando-o e trabalhando-o para que ganhe sentido: se dói, há um sinal qualquer que eu não vi e preciso ver para poder trabalhar, e transformar. 

Se me perguntarem, dificilmente direi que vale a pena viver a dor. E o sacrifício. A não ser para podermos ser e fazermos ser mais felizes. Se não o formos, se não o conseguirmos fazer ser, se, apesar dos momentos de alegria, a dor permanece, esse é um sinal de que precisamos de mudar. Dentro de nós. Ou fora de nós. Sob o risco de deixarmos a vida escapar-se-nos por entre os dedos. Por muito que a tentemos agarrar.

20210915



Nesta fase do meu campeonato tenho uma preocupação especial em não ser anti-coisa nenhuma. Já aprendi - quase sempre como se aprende verdadeiramente, à custa de cabeçada na parede - que todas as pessoas têm a sua própria visão da realidade, que decorre de múltiplos fatores internos e externos a si. De uns, poderão ser até diretamente responsáveis, mas de outros não, a não ser na escolha do que cada um considera, ou não, importante assimilar. No entanto, independentemente disso, todos têm direito a ter a sua própria opinião e a manifestá-la, desde que seja coerente com a sua própria mundivisão e, claro, desde que conceda aos outros o mesmo respeito e liberdade pela sua própria opinião e idêntico lugar a que a manifeste.
Soa bonito, não é? É, sim senhor. Eu gosto. Mas há alturas em que é extraordinariamente difícil de concretizar. Nos últimos quinze dias, por exemplo, eu teria que ter uma força sobre-humana para conseguir respeitar o anti dos antis, sejam eles juízes ou velhotas a vociferar idiotices num megafone. Há um mínimo de respeito que coincide com um máximo de tolerância, e quando estes são ultrapassados estamos já, não no campo do direito à liberdade, mas no da exigência do respeito por essa mesma liberdade. Uma liberdade que demorou muito tempo e exigiu muitos sacrifícios para reconquistar. Uma liberdade que importa muito respeitar. E importa ainda mais preservar. 

20210913


Quem me conhece um pouco mais que apenas circunstancialmente sabe como me são caros os recomeços. Por um lado, sempre foram por mim tidos como oportunidades, como refazeres ou, mais importante ainda, como reseres, deitando fora tudo o que em mim se vai acumulando de detestável e desprezível, permitindo-me - ilusoriamente, claro - sentir-me um outro que não eu. Nesta perspetiva, o recomeço é prenho de desejo de ressurreição, de Pessach, pleno de juras de melhoria e de projetos sonhados que me permitam, finalmente, transformar no Homem Novo que sempre anseio ser. À medida que a vida foi acontecendo fui percebendo que a esta minha Páscoa se sucedia, invariavelmente, não a vida nova da ressurreição, mas a condenação ao deserto dos velhos hábitos. Que afinal eram vãs as minhas promessas e que eu continuava a ser eu, apenas com mais algum tempo em cima. E, ao ritmo de sempre, marcava nova data no calendário, esta sim, agora é que vai ser definitiva, verdadeiramente transformadora de mim, conferindo interminável vida a este ciclo.

Se estes eram os recomeços que me eram caros, no sentido de queridos, agora permanecem caros, mas num outro sentido, o do custo da perda. Porque agora, nestes recomeços, me faltam presenças, falta-me gente. Faltam alguns companheiros de trabalho, que escolheram outros projetos, outras vidas. E faltam alguns dos miúdos com quem partilhei entregas e orações e cantorias e até dores e alegrias. Uns e outros vivem nesta altura a alegria da sua própria Pessach, com aquela mistura tremendamente viciante de expectativa, risco e ansiedade, devidamente potenciados pela enorme quantidade de adrenalina que faz os sonhos voar, e nós com eles. Uns e outros são gente que parte, que deixo de ver nos corredores, que deixo de cumprimentar naquela quotidiana quase indiferença porque sei que amanhã o poderei fazer novamente. Uns e outros são olhos que deixo de ver, são vozes com quem deixo de trocar gracejos e piadas de gosto duvidoso, são pessoas com quem deixo de aprender, todos os dias, a maravilha do complemento direto da diferença.

O que separa ambos os recomeços? O umbigo. O meu umbigo. Na verdade, os meus recomeços de mim são desilusões. Irredutíveis e inevitáveis desilusões provenientes do pisar o chão das minhas expectativas. Tão inevitáveis quanto a minha persistente dificuldade em perceber que eu não sou um jogo de computador, que não posso fazer um reset de mim próprio, como se hoje eu não tivesse nada a haver com quem era ontem. Porque a ideia não é recomeçar, mas transformar. Transformar evolutivamente quem eu sou em quem eu gostaria de ser. Sem cortes drásticos. Sem ruturas impiedosas. Sem ignorar aquelas partes detestáveis e desprezíveis de mim – que continuam cá por dentro – mas, pelo contrário, reconhecendo-as, valorizando-as, para que as possa transformar e a mim próprio com elas. 

Os recomeços dos outros, dos que me habitam cá por dentro, são fonte de alegria. Porque, apesar da separação, é bom, muito bom, vê-los voar, testemunhar o seu crescimento enquanto pessoas de cabeça erguida, acompanhando à distância – e a distância hoje encurta-se de tantas maneiras! – os seus feitos e fracassos, rejubilando com uns e sofrendo com outros, sabendo que no final o que importa é que a bússola funcione em condições por forma a manter o rumo definido.

São-me caros, os recomeços. Sempre. São perdas e ganhos. São realidades transformadas e transformadoras. São oportunidades. São inevitáveis. São desejáveis. São, ao fim e ao cabo, o que nos faz despertar o desejo de crescer. 

Recomecemos, pois.


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20210908


Uma das minhas necessidades básicas é o silêncio. Quando era muito miúdo, porque passava enormes quantidades de tempo sozinho, o silêncio era o meu habitat natural. Mais tarde, na adolescência, descoberto o valor dos outros na minha vida, o silêncio continuava a ser companhia quotidiana, sobretudo nas longuíssimas caminhadas casa-escola. No bairro só passava uma camioneta no início e final do dia e a escola ficava a três quilómetros de distância, e eu fazia esse percurso todos os dias, quase sempre sozinho. Quando comecei a trabalhar a sério, o gabinete ficava próximo da escola e como eu ia almoçar a casa, fazia doze quilómetros por dia a pé, quase sempre sozinho. E, mais tarde, quando conheci a Isabel e me foi permitido ir a casa dela, depois do jantar ainda ia e vinha a pé, mais dois quilómetros para cada lado, quase sempre sozinho. Não admira, por isso, que seja tão importante para mim caminhar, e tão natural ficar absorto nos meus pensamentos enquanto caminho. O que eu gostava era que esse recolhimento se mantivesse quando estou com outros. Sobretudo quando estou à vontade com outros. Como levanto as vigias sobre mim mesmo, tendo a dizer enormes disparates, a ser um bocadinho o joker lá do sítio, o que está nos antípodas do que me é mais confortável. Com o tempo aprendi que houve tempos em que provavelmente precisava disso - questões de falta de auto-estima - mas agora, quando isso acontece, fico ainda mais surpreendido comigo mesmo. E recordo-me do "por qué no te callas?" do rei Juan Carlos a Hugo Chávez. Muitas vezes faz-me falta um rei assim, para que possa ser mais dono do que calo que escravo do que digo.

20210819


 

Há imensa irracionalidade nestes temos que vivemos. Venho à net e, no mesmo minuto, deparo-me com o sol e a escuridão total e absoluta. Por um lado, as imensas fotos de praias e férias e alegria e dolce fare niente; e no separador à direita relatos de uma dor e crueldade incomensuráveis, inimagináveis para quem nunca soube o que é viver em estado de guerra. Num minuto, preocupo-me com as coisas comezinhas, insignificantes, risíveis, do meu quotidiano - para mais em férias - e, nesse mesmo minuto, desvio os sentidos do terror que entra por mim dentro através das redes sociais e dos canais de comunicação. Entre um lugar e outro habito eu. Habitamos nós. Nas nossas conversas no jantar de ontem alterávamos de tema e de expressão facial consoante o tema e de estado de espírito dependendo do que discutíamos. Ao riso solto e franco sucedia a apreensão dura e calada. E falamos disso. Como é possível vivermos assim? 

Como é possível?

É possível. Tem que ser possível.

Este não é, aliás, um exclusivo nem destes tempos nem da guerra nem da vida moderna. Esta foi sempre a nossa forma de ser. Testemunhar a dor, condoer-se, e avançar apesar da dor. E não é egoísmo,  é instinto de sobrevivência, é necessidade de cuidar daqueles que cuidamos, é a necessidade premente de não nos deixarmos tolher pelo medo, agravando as consequências do nosso sentimento de impotência. 

Recordo muitas vezes o Ir. António, de Quelimane. Quando lá chegamos e perguntamos o que queria que fizéssemos na sua casa de acolhimento, ele respondeu. "Brinquem. E riam. Os meninos precisam disso, que brinquem e riam com eles. Quando a minha família me vem visitar eles chegam junto dos meninos e choram perante a miséria que vêem. E eu ralho-lhes. Vai chorar para a tua terra. Aqui eles têm choro que chegue."

Há uma parte racional em mim que me diz que é assim que tem que ser. E depois há a parte visceral em mim, que me remói as entranhas e que tem que me impelir a fazer alguma coisa. E, por isso, a ter que iludir a impotência da ação lá longe com a ação com todos e em todos os que me rodeiam. Para que o acontece lá não aconteça cá. É pouco. Imensamente pouco que, sendo uma expressão que se contradiz, espelha bem a contradição e a impotência que por vezes me habita.

20210818



The Long Road by Passenger
https://www.youtube.com/watch?v=Pne7xGPaokA

You've walked the long road and you've worn it well
You stitched yourself up when you fell
Keep your memories in jars
Carry secrets in scars
Beneath your shell
You've seen some good days, and some bad ones too
You weave through fashion and trend
You've seen a sun rise on an ocean blue
You've seen it set for the dearest of friends

You found faith but you, chose to doubt it
You found love but you, left without it
And now you don't want, to talk about it

You travelled down through foreign lands
Touched mountain tops and golden sand
Seen pyramids and temples made of stone
Keep seashells in a cashmere scarf
A treasured book of photographs 
In every single one you stand alone
You've seen Vienna and the Berlin wall
As you watched the decades fall
The letters that you wrote never made it home
Your birthdays flew past like June
With Christmas days in hotel rooms
And new years eve with people you don't know

You built friendships but they, sailed without you
You never meant it and that's why, they doubt you
They don't ever talk about you

You're older than you used to be
The mirror weaves a tapestry 
Of lines that dance and shimmer 'round your eyes
You stare back at a man, forever holding out his hand
As if the answer's going to fall out of the sky
But the penny never dropped
And no man has ever stopped time flying by

Não tenho o hábito de estar atento às letras das músicas. Mesmo das portuguesas. A música age como um todo em mim, e pode ser bela ou horrível qualquer que seja a sua nacionalidade justamente porque funciona como um todo. E normalmente a música é pretexto e companhia de caminho, não me detém mas impulsiona-me a viajar dentro, apenas por causa da sua sonoridade. Mas estou de férias e uma das bênçãos das férias é o tempo de que disponho para fazer o que habitualmente não faço. E hoje deu-me para estar mais atento à letra desta canção do Passenger - somos todos caminheiros e passageiros ao mesmo tempo - que me transmitiu uma enorme melancolia.
Sempre tive medo do vazio. Particularmente do vazio que, eventualmente, corremos o risco de deixar como testamento. O não deixar boas memórias - ou memórias nenhumas, sequer - o passar ao esquecimento, o não ter sido suficientemente relevante na vida de ninguém para que mereça ser recordado nas conversas, nos risos, nas lágrimas. O viver por viver, apenas, sem ganhar ou deixar marcas, o anonimato puro e duro - quem??? não me lembro! - sempre me assustou imenso. 

"Gostaria de fazer o discurso da tua despedida". Disse-mo com a naturalidade de quem sabe que eu sei que falava verdade, com a mesmíssima naturalidade de quem habita a mesma terra, a mesma realidade não palpável que ambos sabemos que habitamos, aquela inominável, indefinível, mas tão real como a que temos todos os dias diante do olhar. Sorri. Como não? Afinal, parece que, ao contrário da canção, zarparemos juntos. Ainda que não no mesmo barco.

20210816


"Estás mudado. Antes não pensavas assim, tão livremente. Nem concedias essa liberdade de pensamento aos outros." Não foi bem com estas palavras mas, atendendo ao contexto da discussão - as diferentes formas de viver a fé - era esta a intenção. Noutros tempos tivéramos auditivos e desbragados debates durante os quais eu era, invariavelmente, acusado de ter palas nos olhos e de não saber ver as coisas como as coisas são. Eu sentia-me ofendido com tamanha acusação, tão injusta e tão cega... e, pelo menos por vezes, tão verdadeira. A verdade é que fui aprendendo. Vou aprendendo. Muito por causa dos meus filhos, de ter que aprender com as suas - mais que legítimas, incentivadas - escolhas.
O problema dos ideais é que facilmente me esqueço que eles habitam o mundo das ideias. São metas, são objetivos, são horizontes, mas raramente são o chão que tenho sob os meus pés. Esse é sempre mais duro, mais cinzento, menos claro, com nuances que me provocam mais dúvidas que certezas. Normalmente, quando conheço a situação concreta, a dor concreta, a alegria concreta, as motivações concretas que fazem parte da história concreta de cada pessoa que comigo se cruza, a realidade recorda-me - muitas vezes com uma chapada na cara - como preciso de acordar para a vida.
Claro que eu preciso de ideais, de metas, de horizontes que despertam caminhos e vontade de os calcorrear. Claro que preciso de clareza, de saber por onde ir, quem seguir, de conhecer o bem e o bom e o belo para os poder escolher. Não me posso é esquecer que esse é o meu caminho, que o posso e devo testemunhar  - idealmente sem ser necessário dizer coisa nenhuma - mas que é apenas o meu caminho, tão certo e tão duvidoso quando o de alguém, ainda que esse alguém seja entranha das minhas entranhas, anda que esse alguém se desloque em sentido contrário.
O curioso disto tudo é que, à medida que envelheço me sinto genuinamente mais livre, não porque tenha mais certezas mas, pelo contrário, porque abraço melhor a incerteza e a dúvida como forma de caminhar. Na realidade, à medida que constato que as minhas certezas vão sendo cada vez menos, embora porventura mais enraizadas - a família, a fé, o serviço e a amizade como grandes pontos cardeais sobre os quais assenta a minha felicidade e a dos que me rodeiam - o espaço que concedo para o acolhimento das certezas e das dúvidas dos outros abrem caminhos. E presenças cá por dentro.

 

20210720


Normalmente, trabalho o evangelho de domingo durante a semana. Leio-o, vou-o rezando com a vida e depois, ao sábado, sinto-me apto para preparar os cânticos para a eucaristia. E às vezes, ao domingo, enquanto escuto a homilia, percebo que a minha percepção foi completamente ao lado. Assim aconteceu este fim de semana: eu apenas via o Bom Pastor e ambas as homilias das eucaristias em que participei abordaram a importância do descanso. 

Dificilmente chegaria lá, nesta altura. Porque não é, ainda, altura do descanso e tudo em mim aponta em sentido contrário. Tenho diante de mim a perspetiva de duas semanas absolutamente cheias de trabalho, de actividades fora da caixa, que me envolvem o dia inteiro durante vários dias. Não chegam na melhor altura, depois de um ano que ficará para os anais da história como intenso e extenuante, mas serão como que a cereja em cima do bolo, permitindo, no seu final, que viva o que não consegui viver durante todo o ano letivo: a oração, o serviço e a entrega, com malta nova, durante vários dias.

Vai ser bom, mas, em tempo de balanço de ano - e de vida vivida - vou percebendo que o tempo me vai chamando para outro tipo de atividades. É bom quando o tempo nos fala, e é melhor quando nos permitimos escutar o que o tempo os diz. É uma aprendizagem, também, quando conseguimos escutar o que o nosso corpo e o nosso espírito nos querem dizer. Nunca acreditei nessas coisas da juventude do espírito - sempre preferi abraçar o tempo de cada tempo - que o que tenta é fintar, ilusoriamente, os seus limites em vez de encontrar as suas vantagens. 

O descanso há de chegar. A seu tempo. Por agora, trago à memória aquela meia maratona da Nazaré que fiz ainda miúdo: nos últimos dois quilómetros já víamos a meta, e isso criava a ilusão que faltava pouco... mas faltava o mais difícil, que é a gestão da mente que tem que contrariar o corpo que está nos limites. É um pouco isso que acontece todos os anos por volta desta altura: já vejo a meta, mas o desejo do descanso torna o risco de perder o foco ainda maior. 

Vamos lá. Já falta pouco!

20210715


 

“As alegrias quotidianas permanentes são, para mim, tão importantes como os dias de júbilo, que passam fugazes.”

Aquilo em que creio, Hans Kung

 

Final do dia, o habitual trânsito – devagar, devagarinho e parado – da VCI, o som suave do  Kind of Blue a separar o ambiente de dentro e fora do carro como se do Mar Vermelho se tratasse. À cadência dos minutos passados – tão lenta quanto o movimento dos carros que me envolvem -  sinto que o cansaço do dia intenso vai dando lugar à tranquilidade, serenando a cabeça, depois o corpo e, finalmente, sossegando a alma. Este é, a par com muitos outros ao longo de cada dia, um momento de puro prazer, de pura felicidade.

Há não muito tempo desesperava, mais ou menos àquela hora, mais ou menos naquele lugar, mais ou menos com aquele trânsito. Ansiava por chegar ao destino, por chegar a casa, para poder, enfim, descansar de um dia igualmente extenuante. E aquela quotidiana viagem era terra de ninguém – que sempre foi, para mim, algo parecido com a ideia de inferno - nem carne nem peixe, nem trabalho nem descanso, mas apenas tempo perdido algures entre um e outro, deixando-me na boca, todos os dias, o amarguíssimo sabor a vida desperdiçada.

O que mudou? Não o trânsito, não o cansaço, não o desejo de chegar a casa. Nem sequer a música, que antes me irritava solenemente e agora sinto como um bálsamo refrescante e retemperador. Eu mudei. Eu. Ou melhor: foi meu olhar que mudou, e com ele a devida adequação às circunstâncias. Em vez de ansiar com todas as forças por chegar a casa, em vez de me abandonar a mim próprio naquele tempo de ninguém, em vez de me desesperar, decidi aproveitá-lo. Em vez de me revoltar, de dar largas ao desespero, decidi apropriar-me da situação, fazendo-a minha, aproveitando-a para viver nela o tempo que, afinal, nunca conseguia viver quando chegava a casa. Porque a verdade é que não me recordo de algum dia ter chegado a casa e ter conseguido ouvir o Kind of Blue, pelo menos não com a envolvência que este álbum sempre justifica. Porque, na verdade, estava a trocar aquele tempo que me era dado a viver, dentro do carro, pelo desejo sonhado - nunca efetivado – da felicidade que antecipava sentir uma vez chegado a casa. E a verdade, verdadinha, é que desperdiçava a viagem em nome de um ideal de destino.

Hoje, com menor dificuldade, vou saboreando tudo o que me é dado a viver. Vou conseguindo esta lucidez de aproveitar os pequenos momentos para ser feliz. Como quem pega num quadrado de chocolate e lhe dá o tempo necessário para que se derreta na boca. Suavemente. Docemente. Sem sofreguidão nem antecipação. E posso assegurar que, quando revisito o meu dia, confirmo com genuína alegria que são cada vez menos aqueles que sinto ter desperdiçado. 

 

também aqui: https://hospedeignorado.blog/2021/07/14/a-voz-aos-amigos-xxiv/

 

20210713

 

A maneira como sou reconhecido é, desde sempre, um dos focos da minha atenção. Tempos houve em que o era excessivamente, em que me preocupava de uma maneira quase obsessiva com o que os outros ficariam a pensar de mim, e isso acabava por me limitar e me levar a fazer asneira: para que ficassem apenas boas memórias, por vezes não fui carne nem peixe, ou fui ambos, o que é ainda pior. E ainda hoje recordo com frequência últimas palavras, ou últimas atitudes, ou últimas decisões que, se tomadas hoje, seriam diferentes e penso que, perante a eventual notícia da minha morte, gostaria de ir ter com algumas dessas pessoas e desfazer o que foi feito ou dito, ou deixado por fazer ou dizer. A verdade é que é importante para mim ser bem recordado. Com um sorriso, se possível. 

À medida que a idade avança vou percebendo que isso não será, de todo, possível. Não com toda a gente, não com todas as situações, não com todas as circunstâncias. Ainda ontem, curiosamente, tive necessidade de falar grosso com alguém que estava a ser mal educado e sobranceiro com quem achava que podia e eu tive que - de forma pouco meiga - por cobro à situação. Claro que o que ela vai recordar de mim não será coisa boa, mas incomodar-me-ia muito mais não ter feito nada. Porque a verdade é que as memórias que eu eventualmente deixo em alguém são importantes, mas não são tudo. E muito menos à custa de tudo. 

Mas que é bom ser (bem) recordado...

20210707

 

De todas as minhas facetas, aquela que me causa maior perplexidade e profundo incómodo é esta contradição que me habita. E que habito. Perplexidade porque tinha toda a esperança que, depois de uma vida atento às possibilidades de aprendizagem que todos os dias me trazem, chegasse por volta desta altura com maiores certezas. Bebo de todo o lado, não deito nada fora à partida, são escassas as certezas que tenho na minha vida, e, na minha imaginação, isso deveria funcionar como uma peneira, onde apenas o que é importante e certo e definitivo ficasse retido. Tolo! 

Desde 19 de fevereiro que começo os meus dias, ainda antes de a manhã e eu próprio acordarmos, na elíptica - paralítica, é o nome que se lhe dá cá em casa. Apesar da música alta, batida e convenientemente ritmada, me ecoar nos ouvidos, começo invariavelmente de olhos fechados, meio a dormir, deixando que corpo e pensamento despertem com os seus ritmos próprios, à vez. E deixo-me fluir. Hoje, ao fim de todo este tempo, percebi como isto é uma contradição. A música alta, o corpo a suar por quantas tem e, ao mesmo tempo, o pensamento sereno, longe, em constantes devaneios oratórios, filosóficos, preparatórios, avaliatórios, o que quer que seja que me venha à cabeça naquela altura. Pela janela aberta que tenho diante dos meus olhos, vejo a relva fresquinha, matinal, orvalhada, numa manhã belíssima que desponta. Fosse eu normal e estaria lá fora, sentado numa manta, de olhos fechados, a acolher o dia. Mas não. Sendo quem sou, sendo como sou, tinha mesmo que começar o dia nesta contradição. Que espelha os meus dias. Que espelha a minha vida.

Por isso me causa profundo incómodo. Não apenas porque eu próprio desejaria a constância da serenidade. Mas também porque para os outros sou este espelho de contradição e é-me dito muitas vezes - sobretudo por aqueles que me habitam mais profundamente - que não bate a cara com a careta. Que, invariavelmente, as expectativas que crio nos outros saem goradas. Que tanto sou motivo de êxtase como de profunda desilusão. 

Incomoda-me ser contradição. Aprendi já que nem tudo é desvantagem - nada nem ninguém é 100% bom nem 100% mau - que me permite ver outras coisas, sentir outras coisas, navegar por outras águas sem temer o mergulho ou a falta de ar. Permite-me sintonizar genuinamente com pessoas das mais diversas proveniências, das mais diversas idades, que habitam as mais diversas circunstâncias. Mas também sei o que temo. Muitas vezes.  Que, algures por entre mares mergulhados, me esqueça de vir à tona. Já aconteceu. Muitas vezes. Inúmeras vezes. Por isso preciso, sempre, que alguém me estenda a mão. Ate hoje, Graças a Deus, nunca faltou.

Bambora

  Não é estranho que nos digam que «ser homem é muitas vezes uma experiência de frustração». Mas não é essa toda a verdade. Apesar de todos ...