"Estás mudado. Antes não pensavas assim, tão livremente. Nem concedias essa liberdade de pensamento aos outros." Não foi bem com estas palavras mas, atendendo ao contexto da discussão - as diferentes formas de viver a fé - era esta a intenção. Noutros tempos tivéramos auditivos e desbragados debates durante os quais eu era, invariavelmente, acusado de ter palas nos olhos e de não saber ver as coisas como as coisas são. Eu sentia-me ofendido com tamanha acusação, tão injusta e tão cega... e, pelo menos por vezes, tão verdadeira. A verdade é que fui aprendendo. Vou aprendendo. Muito por causa dos meus filhos, de ter que aprender com as suas - mais que legítimas, incentivadas - escolhas.
O problema dos ideais é que facilmente me esqueço que eles habitam o mundo das ideias. São metas, são objetivos, são horizontes, mas raramente são o chão que tenho sob os meus pés. Esse é sempre mais duro, mais cinzento, menos claro, com nuances que me provocam mais dúvidas que certezas. Normalmente, quando conheço a situação concreta, a dor concreta, a alegria concreta, as motivações concretas que fazem parte da história concreta de cada pessoa que comigo se cruza, a realidade recorda-me - muitas vezes com uma chapada na cara - como preciso de acordar para a vida.
Claro que eu preciso de ideais, de metas, de horizontes que despertam caminhos e vontade de os calcorrear. Claro que preciso de clareza, de saber por onde ir, quem seguir, de conhecer o bem e o bom e o belo para os poder escolher. Não me posso é esquecer que esse é o meu caminho, que o posso e devo testemunhar  - idealmente sem ser necessário dizer coisa nenhuma - mas que é apenas o meu caminho, tão certo e tão duvidoso quando o de alguém, ainda que esse alguém seja entranha das minhas entranhas, anda que esse alguém se desloque em sentido contrário.
O curioso disto tudo é que, à medida que envelheço me sinto genuinamente mais livre, não porque tenha mais certezas mas, pelo contrário, porque abraço melhor a incerteza e a dúvida como forma de caminhar. Na realidade, à medida que constato que as minhas certezas vão sendo cada vez menos, embora porventura mais enraizadas - a família, a fé, o serviço e a amizade como grandes pontos cardeais sobre os quais assenta a minha felicidade e a dos que me rodeiam - o espaço que concedo para o acolhimento das certezas e das dúvidas dos outros abrem caminhos. E presenças cá por dentro.

 

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