Olhava-a e continuava a ver aquela expressão traquina que sempre a acompanhou e que o tempo não conseguiu ainda desfazer. Olhos vivaços, sorriso fácil - quando não está num dos seus terríveis acessos de mau génio - sempre a medir-nos enquanto nos fala, sempre a pesar o que lhe dizemos, como lhe dizemos, como a acolhemos, sempre à procura de alguma acusação implícita. Apenas baixa a guarda quando se certifica que continuamos a gostar dela, apesar do tempo, apesar das asneiras, apesar do seu encolher de ombros. Fala-nos da sua última experiência, a dançar em bares, como a mãe dela fazia, como nós sabíamos, desde pequenina, que viria a fazer, porque aquela miúda nasceu para dançar, revela-se a dançar, e fazê-lo em bares é um caminho demasiado fácil e evidente para que possa ter sequer considerado outra alternativa. Fala-nos com um sorriso nos lábios e dor no olhar. Inteligente, como sempre foi, sabe que corre o risco de chumbar o ano, fruto das noites mal dormidas, do dinheirinho no bolso, das companhias que - sabe-o bem - a usam. Às tantas remete-nos para o muito que vivemos juntos "aquelas colónias... eu fazia-vos a vida negra... portava-me tão mal... era tão bom!"
Olho para a Isabel e percebo que falta pouco para rebentar. Se há algo que a move é uma vida que corre o risco de se ver desperdiçada. Ainda por cima, esta pede, sem pedir, para ser salva. Mal a miúda sai para conversar com outros de nós, a Isabel começa a contactar com quem a poderá ajudar, começa a delinear um plano de ação, uma saída, para que este ano letivo não seja ainda um ano perdido, para que possa completar ainda este ano o 9º e enveredar por um ensino profissionalizante na área da dança, ou do teatro, ou de qualquer outra coisa que leve aquele miúda a ser novamente uma miúda, que a ajude a não desperdiçar o enorme talento que tem. Passada meia hora, já tinha aulas de apoio marcadas com professores da especialidade, já tinha conversado com a professora de dança para a integrar no nosso seio, já tinha conversado com as restantes miúdas do grupo para a acolherem devidamente, e quando se voltou a sentar com ela, deu-lhe já outras possibilidades de futuro.
Quando veio ao nosso encontro sabia bem ao que vinha. Sabia que a escutaríamos, que tudo faríamos para a ajudar, sem criticar, sem apontar o dedo, preocupados apenas com o seu presente, concentrados apenas no seu futuro. Disse-me a Isabel que, quando saí de junto delas para tratar de outras coisas, ela lhe disse que gostava muito de nós, porque desde pequenina que tinha visto que gostávamos mesmo um do outro, e que tinha sido também isso que a levara a procurar-nos. Temos muitas maneiras de ser para os outros. Acredito que as melhores e as mais importantes nos são invisíveis, inconscientes até, mas que transpiram de nós com a mesma naturalidade do suor do nosso corpo. E fiquei feliz. Pela miúda, claro. E porque aquela casa tem vindo, lentamente, paulatinamente, de forma segura, a cumprir o motivo pelo qual nasceu: dar vida a quem já não confiava nela.

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