Não é verdade. Não aprendi isso ontem. Aprendi isso há muitos anos, no meu primeiro emprego numa oficina de pneus, quando me puseram de castigo a varrer, durante dias, uma garagem enorme, de um condomínio, cheia de terra. Deixavam-me lá de manhãzinha, apenas com a maramita, e iam-me buscar era já noite. Foram quatro dias assim, fechado numa imensa garagem de São Mamede de Infesta, sozinho, para varrer algo que me parecia impossível ser varrido. Lembro-me que só pensava num cartoon do pateta que tinha lido pouco tempo antes, que, castigado como eu, tinha sido incumbido de varrer todos os ladrilhos da estrada que ligava Jerusalém a Roma. Quando o Mickey lhe perguntou como conseguia, ele respondeu "é fácil: varres um ladrilho, respiras fundo, varres o seguinte, respiras fundo, varres o seguinte..." e varria aquele metro quadrado, respirava (não muito fundo por causa do pó) e passava para o metro quadrado seguinte. E repetia-me muitas vezes que aquele dia haveria de terminar, e que no final do dia, acontecesse o que acontecesse, voltaria para casa. E amanhã seria um outro dia.

Este "amanhã é outro dia" visita-me sempre que alguma situação me é insuportável. Foi assim quando a minha filha mais velha foi para o hospital, foi assim quando o meu sogro morreu, foi assim quando a minha vida ficou de cabeça para baixo, e será assim, com toda a certeza, quando algo de grave me voltar a confrontar com a minha impotência. Porque em determinadas alturas eu só me consigo agarrar à inevitabilidade da tempo e da vida para não claudicar. É uma esperança desesperante, porque nela não sou tido nem achado, que não depende de mim, nem das minhas forças, nem da minha vontade, e faz-me sentir, sempre, invariavelmente, tremendamente insignificante.

Quando passo no Hospital de Santo António, olho instintivamente para duas janelas, afastadas uma da outra apenas por alguns metros. Por trás de uma delas, a que fica mais perto da esquina que dá para o jardim, já fui imensamente feliz. Aí, nesse quarto, senti-me várias vezes verdadeiramente abençoado por Deus, quando via, pegava, acariciava, um novo filho. Uma verdadeira explosão de sentimentos, de alegria incontrolável, que me prometia rebentar com o peito tal era a intensidade, que me aparvalhava sempre, mas também me atemorizava sempre, ao ponto de, a custo, me dizer: "tem calma, amanhã é outro dia" e com isso nos confiar a Deus, sabendo que podia contar com Ele para me ajudar a lidar com o que viria.  Por trás da outra janela, a que fica por cima da entrada, vivi o meu medo mais profundo. Aí, nesse quarto, senti-me quase abandonado por Deus, quando via a minha filha, doente, sem saber o que tinha. Uma verdadeira explosão de sentimentos, de dor incontrolável, que prometia rebentar com o peito tal era a intensidade, que me aparvalhava tal era o medo, ao ponto de, a custo, quase me forçar a dizer: "tem calma, amanhã é outro dia" e com isso nos confiar a Deus, sabendo que podia contar com Ele para me ajudar a lidar com o que viria.

Ontem quis muito poder dizer isso. "Tem calma, amanhã é outro dia". Não podia. Há situações em que as palavras, quaisquer que elas sejam, apenas atrapalham a inevitabilidade do futuro. Preferi o silêncio. Da oração. Preferi pedir que confiasse em Deus. Para que saiba que pode contar com Ele para lidar com o que virá. E comigo. Mas isso já o sabia.

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