Por mais que o tentasse, não conseguia apagar aquela enorme nódoa da sua cabeça. Mal escutava o que lhe era dito, palavra após palavra, justificação após justificação, porque sabia que não tinha importância nenhuma. A nódoa sim, a nódoa era importante. Era tudo o que importava. Era à volta dela que tudo girava, era o alfa e o ómega, o seu alfa e ómega, o princípio e o fim de tudo, a sua razão de existir. Desde tenra idade que se habituara a ouvir da boca da sua mãe coisas como "a verdade acima de tudo" e "cesteiro que faz um cesto..." e, embora por vezes achasse que a sua mãe era injusta, até com ela, intuía que ela no fundo é que tinha razão, "A verdade acima de tudo" e a verdade é que aquela nódoa a tira do sério. Já lavou aquela alma muitas vezes, já acreditou que nunca mais a voltaria a ver manchada, já jurou a pés juntos que o que importava, afinal, era a capacidade de ver para além daquela mancha, que manchas todos temos, e que ele até, cuidadosamente umas vezes, bruscamente outras, a fizera ver que as nódoas são pertença envergonhada de todos, que o que difere é o trabalho que cada um dedica à sua procura, que há quem escolha não as ver, não lhes dar importância, que há quem se dedique a permitir que se ganhe outras cores, outras matizes, mais vivas, mais alegres. E ela, tolamente, acreditara nisso, ao ponto de ter dito à sua mãe que, afinal, ela estava errada, que se colocasse o mesmo afinco à procura das cores que colocava à procura das nódoas, a sua própria vida seria mais alegre, porque acreditaria mais, porque viveria mais, porque daria em vez de tirar. Mas aquele "és tão inocente" que obtinha como resposta, aquele libelo acusatório, aquele atestado de menoridade impedia-a de acreditar de peito aberto no que acabara de dizer. E deixava sempre aquela semente de dúvida, de inquietação "e se ela tem razão?". Uma semente que germinava sempre, invariavelmente, na mínima oportunidade, no mínimo abalo, na mínima discussão potenciando a máxima discussão, onde o que importava era aquela nódoa, à volta da qual tudo girava, e que a impedia sequer de ouvir o que ele lhe tinha para dizer, onde o que importava, a única coisa que importava, era dar cumprimento ao seu papel de descobridora de nódoas alheias porque, afinal, "a verdade acima de tudo", e recordadora de nódoas alheias porque, afinal, "cesteiro que faz um cesto..." O resto não importava nada. Era coisa de inocentes.

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