20141128


Esta foi uma semana daquelas. O único dia em que jantamos juntos foi no já longínquo princípio da semana e não nos temos visto mais que por alguns momentos. Tenho andado a correr como um doido, reuniões aqui, ensaios ali, preparações em todo o lado. Como se não bastasse, partiram-me o vidro do carro e levaram-me o tablet. Provavelmente, quem o fez é amigo ou conhecido ou vizinho daqueles que estavam comigo na faculdade de Direito a assistir a uma palestra sobre os excluídos. Ironias! E no entanto...
Hoje, quem me visse na minha cada vez mais preciosa caminhada matinal junto ao mar, pensaria que sou (ainda mais) maluco, tal o sorriso. Esquisito, não?
Digo muitas vezes aos meus miúdos que conhecer Jesus rouba-nos desculpas. Deixamos de poder alegar desconhecimento ou distração, deixamos de poder olhar para o lado e ficar de consciência tranquila, deixamos de ter a consciência tranquila em qualquer dos casos, porque é sempre muito mais o que podemos fazer quando comparado com o que realmente fazemos. Deixamos de poder dizer que não sabíamos, ou que não sabíamos como fazer, que nunca nos disseram que o sermos todos irmãos é muito mais que uma frase bonita. Deixamos de nos sentir donos do que quer que seja porque sabemos que tudo nos foi dado e foi-nos dado para os outros. Deixamos até de sermos apenas nossos porque até a vida nos foi dada para que possamos ser para os outros. Por isso, conhecer Jesus não é conhecer um amiguinho bom que nos garante o arco-íris e o pôr-do-sol e o luar sempre bonito com doces harmonias tocadas por anjos, mas descobrir a inquietação que apenas encontra a serenidade quando conseguimos ser nos outros.
Mas não é apenas para isso que Jesus nos rouba desculpas. Conhecendo-o, deixando que ele permaneça na minha vida, querendo-o a meu lado, deixo também de ter desculpas para ser infeliz. Aprendo que as pessoas são sempre, mas sempre, infinitamente mais importantes que as coisas, aprendo a olhar para quem me acompanha e me desafia a ser melhor e a dar o que nunca julguei ter (essa treta de não se poder dar o que não se tem é isso mesmo: treta), aprendo a aprender de quem menos esperava aprender, aprendo a dar valor ao arco-íris, ao pôr-do-sol e ao luar como mais um risco numa tela que está plena de vida vinda da entrega e da descoberta do próprio Jesus nos outros.
Por isso esta semana não conseguiu roubar-me o sorriso. Enquanto caminhava pensava apenas em como tenho mais que motivos para louvar a Deus. Pensava nas deliciosas partilhas e descobertas desta semana, com amigos que apenas por acaso são colegas de trabalho, com miúdos que apenas por acaso são mais novos que eu, com pretéritos rufias em potência que apenas por acaso escolheram estar comigo e com a minha mais-que.tudo numa aprendizagem quando poderiam estar com os que se entreteram a mexer no que estava quieto. Pensava justamente na minha mais-que-tudo e como ansiava que ela estivesse ali, comigo, naquela caminhada matinal, como tantas vezes fazemos, e já agora, como gostava que os nosso filhos também lá estivessem, e fazia planos para que, talvez amanhã, o possamos fazer juntos. Pensava no tempo que não tenho e no tempo que não temos todos lá em casa porque todos escolhemos arranjar tempo para os outros, e pensava em como não termos tido tempo para nós pode não ser assim tão mau... desde que não abusemos.
Não, esta semana não me roubou o sorriso. Pelo contrário, permitiu que ele fosse mais sincero.
Job, lembras-te?

20141125


Foi mais ou menos na mesma altura, teria cerca de 14 anos, que duas leituras me marcaram e desde então me fizeram companhia: o livro de Job e o Cântico Negro. Na altura foram mais sentidas que entendidas, até porque tanto num caso como noutro, tinham muito de incompreensivelmente belo mas imensamente sedutor, tocando numa interioridade que, naquela fase da vida, estava muito longe de sequer imaginar que existia. Do Cântico Negro, que ouvi a primeira vez sublimemente recitado pelo meu extraordinário professor de Português do 9º ano - e que nunca mais ouvi da mesma maneira! - retive toda a raiva incontida, toda a agressividade, todo o desdém que decorre da inevitabilidade de se percorrer um caminho, que é o único, apesar de todas as dúvidas, de todas as contrariedades, de todos os medos, de todos os bons conselhos, de todos os dedos apontados. De Job, aprendi a confiança, até ao limite, contra todas as evidências, contra todos os dedos apontados, contra todos os bons conselhos, num Deus que me ama e que apenas quer o melhor de mim, porque apenas no melhor de mim encontro alguma paz. Entender a obstinação de um ajudou-me a perceber a minha própria obstinação; entender a tranquilidade do outro, ajudou-me a abandonar-me confiadamente, sobretudo quando já não tinha forças para mais. Um ajuda-me a perceber o que vou sentindo; outro ajuda-me a domar o que vou sentindo. Um e outro, em determinadas alturas, digladiam entre si, por vezes num tremendo rebuliço, que ecoa incessantemente e me rouba o silêncio. Noutras, porém, lá se conseguem entender, percebendo que há lugar para ambos, desde que sejam suficientemente cavalheiros para cederem a passagem conforme as necessidades. Esses são os meus dias bons, aqueles em que me percebo, em que sinto que por vezes até faço sentido.

20141124


foi imediato. vi esta imagem e pensei logo em quelimane, naquela casa onde tantas vezes foram buscar uma cadeira para que eu me pudesse sentar e conversar. ignorante, recusei-a quase sempre, não percebendo que naquela cultura a conversa de coisas importantes faz-se sentado, em sinal de respeito, tempo e disponibilidade. soube-o depois, já em maputo, demasiado tarde, digo eu. quando lá cheguei levava uma íntima arrogância no olhar e nos sentidos que nem um ano de formação conseguiu impedir. em abono da verdade, creio que nem meia dúzia de anos o conseguiriam, porque é preciso estar lá, viver com eles, sentir-lhes o cheiro, brincar e conversar com eles, para termos uma pálida ideia do que vamos lá fazer. e ainda assim, essa ideia é muito discutível, porque sabemos sempre que iremos voltar, que podemos voltar, que aquele não é o nosso lugar, que é uma questão de suster a respiração e esperar que o tempo passe. enquanto lá estive, apesar de toda a boa vontade, apesar das horas de sono perturbadas por aqueles miúdos, apesar de toda a entrega, extensiva a todos, eu sabia que haveria de voltar, que na noite escura os meus pensamentos e os meus sonhos estavam deste lado do hemisfério. apenas depois de voltar percebi muito do que lá vivi. num processo que ainda não está fechado, que ainda continua, e nem posso assegurar que alguma vez esteja absolutamente definitivo. vejo um filme sobre áfrica e sinto-lhe o cheiro a terra, a confusão, os esgotos a correr a céu aberto, e dou por mim a desejar aquele silêncio, aquele espaço, aquele luar. tenho sempre a ideia que lá hei de voltar, que a vida mo há de proporcionar e que, quando isso acontecer, receberei essa forma de vida de braços abertos. sim, porque a voltar será como forma de vida e não já de passagem. armado em visita.

20141122


"O próximo é aquele que cuida das feridas". Surgiu assim, do aparentemente nada, e fez-se luz: "o próximo é aquele que cuida das feridas". No clique que se deu cá por dentro, liguei instantaneamente ao que tenho sido nestes últimos tempos. E percebi imediatamente que tenho dado uma série de tiros ao lado. "porquê?" Apesar de não me ter em grande conta em muitas coisas, sei que penso a vida, sei que me preocupo em olhar e ver o que se passa à minha volta, em confrontar o que vou dizendo e sentindo e fazendo com aquilo que me é pedido que diga, sinta e faça. Sei, por isso, que nestes últimos tempos havia sempre algumas pontas soltas que me dificultavam a tranquilidade e me impediam o sossego. Olhava, olhava e voltava a olhar, e não conseguia encontrar o motivo. Só me podia ser externo, por isso. "O próximo é aquele que cuida das feridas." Não era externo. Era uma questão de olhar, de direcionar o meu olhar, de ver o que deveria ver e não aquilo que desejava ver. era uma questão de me deixar interpelar e mover por uma realidade que sei que existe, está lá, mas que eu preferia mil vezes que não existisse. Porque sei o que vai implicar. Agora que vi, efetivamente, acabaram-se as desculpas e lá vou eu ter que mergulhar e arranjar forma de colar a sarna que, inevitavelmente, aí vem. Apenas porque descobri que eu não estava a curar feridas, estava a abrir feridas, não estava a fazer parte da solução mas do problema, estava refastelado, comodamente sentado no que queria ver e sentir, em vez de abrir os olhos para o que se passava à minha volta.

20141120


Creio que ninguém me consegue fazer desejar recolher como Damien Rice.
Tem tudo a ver com inverno, com chuva miudinha, com uma boa conversa, uma lareira acesa, e o suave crepitar da madeira, e o suave o incenso que liberta, uma boa garrafa de vinho, uns cobertores e tempo, muito tempo, para que a conversa possa ser devidamente saboreada, degustada, como se de um bom Porto se tratasse.
Tem tudo a ver com regressar a casa, à nossa casa, onde nos sentimos aconchegados e eternos, protegidos de tudo aquilo que nos assalta a alma e perturba os dias. Uma casa que nada tem a ver com paredes e janelas e muros mas onde tudo são recantos, nossos, que falam a nossa linguagem, sussurrada, suspirada, transpirada por tudo o que vivemos e trocamos e conversamos uma e outra vez com o mesmo gozo e a mesma surpresa da primeira vez, porque para quem se ama como nos amamos qualquer vez é a primeira vez.
Tem tudo a ver com a noite, com o escuro da noite, aqui e ali apenas entrecortado com a luz refletida de uma lua que recorda, silenciosa, distante, o testemunho doutras paragens, muito mais distantes do corpo que da alma, que essa por vezes continua lá, autonomamente, (in)conscienciosamente, à espera que ambos se reencontrem e voltem a experimentar a liberdade que apenas a (in)consciência permite experimentar.
Tem tudo a ver com saudade, ser sermos quem somos, de voltarmos a ser quem éramos e de desejar sermos muito mais do que então poderíamos sequer imaginar. Uma saudade feita, por isso, de memórias e de desejos, de anseios e sonhos, de vontades não confirmadas mas sempre, sempre, desejadas.
Creio que ninguém me consegue fazer desejar recolher como Damien Rice. Tem tudo a ver connosco!
 

20141118


Foi a segunda vez que o ouvi. E gostei do que ouvi. Embora não me deslumbrasse, que eu ando nestas coisas há tempo suficiente para não me deixar deslumbrar facilmente. Tem uma visão nova, desempoeirada, que questiona as coisas da fé e da Igreja, e isso faz-me sempre bem. Porque questionar a fé e a Igreja é questionar-me a mim próprio e aquilo em que acredito, e questionar-me a mim próprio é contribuir para construir alicerces mais sólidos e profundos. Até aí tudo bem. A questão foi quando eu lhe pedi "por acaso não estará disponível para...". Vi logo nos seus olhos, na maneira como os desviava dos meus, no contraste da sua linguagem corporal com a que evidenciara enquanto proferia a sua palestra, o que a sua boca não conseguiu responder. Disse-me que sim quando eu lia distintamente que não. Tudo bem. Também eu sou muitas vezes encostado à parede, preso na armadilha que as minhas próprias palavras cuidadosamente me armaram. Nada de novo, portanto. Ontem, quando tentei confirmar o seu compromisso, disse que afinal não poderia ser. Tudo bem, na mesma. Também eu o faço algumas vezes - cada vez menos, espero, ou pelo menos, luto muito para que assim seja - também eu me refugio numa qualquer eventualidade que mais não é que uma desculpa que eu poderia contornar se assim o quisesse verdadeiramente. Vamos ao que verdadeiramente importa, à lição do dia para o sr. José: seja o teu falar sim, sim, não, não. Não te ponhas com demasiadas expectativas nem deixes que as ganhem em relação a ti. O que puderes fazer, faz. O que não puderes, faz na mesma se for mesmo importante. Mas não penses que podes tudo. Nem que a vontade pode tudo. E quando não pode - e tu sabes sempre quando não pode - di-lo na cara de quem conta contigo, ainda que vejas a deceção nos seus olhos. Custa, claro que custa, mas custa menos que deixá-la com as calças na mão. Como eu estou. Aprende, José, que eu não duro sempre!


Dia mais complicado! Passei o fim de semana alegre e confiante: tinha resolvido dois berbicachos aos quais faltava apenas a confirmação. Afinal, o primeiro apanhou uma gripe e deixou-me na mão, e ainda estou à espera que o segundo diga alguma coisa. Há dias assim, eu sei, e normalmente estou preparado para eles. E devia saber que eles nunca vêm sós. No ER a coisa hoje foi caótica: não havia monitores, os meus miúdos estavam todos, e todos impertinentes, e passamos hora e meia em que mais parecíamos protagonistas dos Gladiadores, comigo a tentar dominar as feras e elas sistematicamente a levarem a melhor. Por momentos pareciam hienas, as feras, porque se riam na minha cara ;-).

A experiência tem destas benesses. Já passei por muito, por muitas alturas de verdadeiro desespero, e aprendi a não julgar o tempo apenas pelo momento. Bem sei que as coisas doem é no momento, mas também sei como é importante conseguir manter a perspetiva correta dos problemas e aprendi, à força de cabeçada, que nem nunca é tão mau como quando tudo corre mal, nem nunca é tão como como quando tudo corre bem. Aprendi que amanhã é sempre outro dia e que é importante aproveitar o regresso a casa para serenar e voltar a por a vida no lugar a que pertence.
E como é bom regressar a casa!

20141116


Ontem fui a um museu. Em Fátima. Ao qual espero não voltar. E ao qual espero que os meus filhos não vão, O que é esquisito, confesso.
Este museu estava carregado daquelas coisas da Igreja que eu preferia que a minha Igreja não tivesse. Mantos e coroas, ouro e diamantes, bordados caríssimos, cálices de prata, tudo aquilo que não nos acrescenta coisa alguma, antes tira, dando razão a todos quantos não percebem como somos capazes de pregar tão no vazio. Eu sei bem que muitas daquelas coisas foram oferecidas, mas é justamente isso o que me causa confusão. Que um padre, bispo ou um papa sinta qualquer necessidade de ter um cálice de prata ou que, como já um deles me disse, o compre para justificar una qualquer necessidade de dignidade. Disseram-me já que os paramentos têm que conferir dignidade, assim como o cálice a patena, mas não me conseguiram explicar porque um cálice de prata é mais digno que o cálice do filho do carpinteiro.
Da primeira vez que cheguei a Santiago depois de fazer o caminho era Domingo de Ramos e às tantas vejo a chegar uma multidão a cantar e com ramos na mão. À frente dela ia creio que o bispo e precedia-o umas palmas amarelas, que, se não eram, pelo menos simbolizavam o ouro. Pensei logo no acolhimento que foi feito a Jesus, no jumento e na multidão, e no que se seguiu. Tive a clara noção, naquela altura, que se o que viesse a seguir àquele domingo de manhã fosse semelhante ao que aconteceu há dois mil anos, não haveria ouro ou prata que convencesse quem quer que seja a liderar aquela multidão. Mas também quis pensar que, provavelmente, aquele mesmo bispo a lideraria, como tantos o fazem, todos os dias, sem que seja preciso ouro ou prata. Então, porquê todo aquele aparato? Porque teimamos nós dar contra testemunho e não temos a coragem de nos voltarmos ao essencial? Porque continuamos nós a ser tão bons a dar razões para não acreditar?
Espero mesmo que os meus filhos não cheguem a visitar aquele museu. Porque, se o fizerem, lá terei eu que tentar defender o indefensável.

20141113



"Tu ouves-te quando me dizes o que dizes?"

não. nem sempre. e essa é apenas parte da questão. porque quando a guarda baixa, nem sempre o que me sai da boca passou pelos devidos lugares. não foi devidamente processado, sai diretamente do coração, ou da alma, ou, sei lá, de onde saem aquelas coisas que sentimos, e não passou pela cabeça, pelo cérebro, pela razão, esse garante que o que te digo hoje dir-to-ei da mesma forma amanhã. ou depois.
não. nem sempre ouço o que digo. sei que ressoa sempre, sei que fica sempre, cá por dentro, a matutar, a maturar, e que muitas vezes descubro-lhe apenas o sentido muito tempo depois de o ter dito. e que por vezes até gosto do que disse. e que noutras gostaria de não o ter dito mas é tarde demais. é sempre tarde demais quando me descubro no reflexo que projetei em ti. seria muito melhor, e mais fácil, e mais seguro, que reencontrasse o meu reflexo apenas depois de passado pelo crivo do que deveria ser. mas tu tens isso. pões-me à vontade, subtrais o medo e deixas que me instale. ajeitas-me as almofadas, se for preciso, e às tantas fecho os olhos e deixo-me ir. o conforto tem destas coisas. a confiança também. faz-me sentir seguro, arrojado, deixa que eu vá, simplesmente, sem me sentir arrastado ou questionado mas tão só aceite. assim. tal como sou.
a exuberância do silêncio contrapõe-se apenas à frugalidade dos gestos, contidos, discretos, atreitos aos mal-entendidos que ambos dispensamos. mal-entendido por mal-entendido, preferimos o da palavra, que ecoa, que permanece, nos seus múltiplos sentidos e (in)convenientes leituras. cedo descobrimos que não há intimidade maior que a do silêncio que confere sentido à palavra. tudo o resto são manifestações, confirmações que não precisamos ter quando o mais importante já foi dito. e sentido.

20141112





Sempre que o tempo e o trabalho o permitem, tenho começado os meus dias caminhando na Foz. As manhãs frias, a omnipresença das nuvens carregadas de água e o vento frio, curiosamente, potenciam a minha reflexão e consequente oração matinal, como se um ambiente belo mas agreste fosse necessário para me repensar, como contraponto aos dias solheiros e quentes, que me despertam a enorme gratidão a um Deus que me ama.

"Devias ter tido mais cuidado. Foste um bocado rude, hoje, na reunião."

Desde que nos conhecemos que é assim. O meu grilo falante, sempre atento, sempre cuidadoso, sempre preocupado em que mostre apenas o melhor de mim e guarde aquilo que, francamente, não interessa a ninguém. Volta e meia, quando me descaio, lança-me um daqueles olhares fulminantes e eu sei que acabei de meter água. Por vezes, quando estou mais sereno, acato e tento remediar logo na altura. Outras, no entanto, ando demasiado zangado comigo mesmo para que isso aconteça e continuo, cheio de mim, no meu processo de perda. Porque é disso que se trata, de fazer ganhar ou deixar perder.
É muito esta linguagem tácita, silenciosa, que dispensa as palavras, que tem alicerçado o nosso casamento. Adoramos conversar um com o outro - é, confesso, uma das minhas maiores fontes de confiança em relação ao nosso futuro - mas nem sempre precisamos de o fazer. Um olhar, um silêncio, um esgar, e temos o eco um do outro, ao qual se juntam anos e anos de conversas e discussões e partilhas e caminho construído a dois. Por vezes, na maior das tempestades, somos o único reduto: vemos o que o outro não consegue ver, mergulhado na desesperança e no derrotismo. Desde a altura em que nos descobrimos um, que nos temos e sabemos que nos temos. É uma segurança que se fundamenta na construção de tudo o que tem sido a nossa vida, recheada, como qualquer vida, de pequenos e grandes momentos, alguns dos quais apenas quando colocados sobre o altar encontram o seu sentido.

Há dias em que é mesmo importante que eu comece os dias por caminhar na Foz!

20141110


Tenho andado às voltas com as orações dos Dias de Reflexão.
No início, ingenuamente, acreditei que todos os miúdos que tinha diante de mim sabiam do que eu estava a falar. Afinal, estávamos num colégio católico e eu assumi, à partida, que todos o eram ou que, pelo menos, o eram as suas famílias. Naquela altura - já lá vão mais de meia dúzia de anos - fiquei espantado quando percebi que alguns não tinham qualquer noção das parábolas e do que elas implicam na nossa vida. Rapidamente formulei o meu esquema e o meu discurso e adaptei-me às circunstâncias. Apercebi-me então que o jogo de cintura que os anos todos de catequese juvenil me deram revelaram-se fundamentais. Acredito cada vez mais que não há experiência de vida que, mais cedo ou mais tarde, não tenha a sua utilidade.
Este ano, até porque iniciamos uma nova abordagem, as orações continuam a preocupar-me. Como havemos de chegar àqueles que temos diante de nós. Que volta havemos de dar para não desvirtuar a profundidade e a riqueza da Palavra tornando-a, ao mesmo tempo, relevante para cada um deles? Temos uma comunidade - a turma - temos a partilha da experiência - que ao longo de todo o dia é iluminada pela Palavra e pela imagem - importa agora dar sentido a tudo isso. E pareceu-me que  a melhor forma de o fazer seria justamente colocar tudo isso em cima da mesa. Pegamos em tudo o que ouvimos, naquilo que fomos sentindo, nas (re)descobertas que fomos fazendo ao longo do dia e colocamos em cima daquela mesa - para quem não tem fé - em cima daquele altar, para quem a tem ou anda à procura dela.  E fazemos um pedido: hoje e no futuro, quando chegarem a casa, quando tiverem a vossa família, repitam este gesto, esta atitude, de forma simples: coloquem o vosso dia em cima da mesa do jantar e peçam àqueles que vos rodeiam que também o façam. Acredito que dessa forma se colocarão nas mãos uns dos outros e serão mais felizes. Haverá alturas em que não será fácil, mas descobrirão que o amor é bem mais presente do que suspeitavam. E descobrindo-o, cedo ou tarde descobrirão também que estão bem mais perto de Deus do que suspeitavam.
Nessa altura, a terra estará fértil.

20141106


Sinto-me sempre abençoado quando me apercebo do grito que pode ser na minha vida um acontecimento ou um testemunho aparentemente menor.
Hoje, numa deliciosamente curta conversa com uma das minhas filhas, ela disse-me que não se vê nada numa vida competitiva. Que as suas espectativas vão muito mais no sentido de se empenhar na sua profissão mas conciliá-la com a família que ela tanto deseja, que a aposta numa carreira profissional de sucesso. Ao dizer-me isso revelou-me uma serenidade que me deixa mesmo feliz. E confirmou até que ponto somos parecidos.
Lembro-me sempre da única vez em que comprei um carro novo e algo potente. Ia na autoestrada e, com a estupidez tão tipicamente masculina, pus-me a conduzir depressa apenas porque podia. Às tantas apercebi-me de como estava tenso, - eu que gosto tanto de conduzir, ao ponto de me servir de terapia de relaxamento - reduzi a velocidade para a minha zona de conforto, e usufrui, aí sim, das potencialidades daquele carro.
Como invariavelmente me acontece com coisas nenhumas, esse acontecimento habitou-me durante muito tempo! Recordo-me  de pensar que aquela tinha sido uma das primeiras vezes que deixei de fazer alguma coisa apenas porque podia. Até aí, puto de bairro, apenas o que me era exterior me limitava - a falta de dinheiro, a falta de conhecimento, a falta da educação - mas aquela fora a primeira vez em que eu próprio me tinha imposto um limite. À luz daquela decisão revi alguns dos acontecimentos da minha vida e constatei que por várias vezes, nas várias profissões por onde tinha passado, não me tinha conseguido impor esse mesmo limite. Sempre começara por baixo e sempre fora por aí acima, até cargos cada vez mais próximos do topo. No entanto, sem que na altura me apercebesse, a partir de determinada altura a pressão do sucesso tomava o lugar do gozo no que fazia e daí até ao descalabro era um pequeno passo. Aqueles, poucos, minutos de condução, ensinaram-me mais de mim que outros acontecimentos aparentemente mais relevantes.
Fui aprendendo a não subestimar o impacto das pequenas coisas.
E a dar Graças por elas.

20141103


Uma das minhas maiores lamentações é a minha incapacidade de aprender de uma vez para sempre. Eu ainda gosto de acreditar na minha capacidade de aprender. De estar atento ao que se passa à minha volta e disso tirar as lições necessárias, venham elas de onde vierem, porque a vida ensinou-me que as maiores verdades são-nos oferecidas pelas pessoas e momentos mais inesperados. No entanto, enredado no quotidiano, facilmente me esqueço delas.
No último dia de reflexão que tive com uma turma do 9º ano, a partilha do Bom Samaritano conduziu-nos à questão da não violência. O que levará alguém a não reagir? O que levou Jesus a não se defender das acusações que Lhe levantaram? O que teria levado Gandhi a persistir naquela não violência tão gritantemente silenciosa? E aquela imagem do homem, sozinho, desarmado, diante dos tanques de Tiananmen, permanece na memória de todos nós, os que assistíamos a milhares de quilómetros de distância. 
De todas as filmagens referentes aos campos de extermínio dos judeus a que assisti, as que sempre me inquietaram ao ponto do desespero foram as cenas de multidões de judeus a serem levados para os campos de concertação, como cordeiros, em fila, sem que alguém se revoltasse a sério. Seria cobardia? Seria rendição? Seria ignorância do que os esperava? Como é que alguém, a pretexto seja do que for, permite que aqueles que ama sejam arrastados daquela maneira para o cadafalso? O que se passará na cabeça de alguém para que se permita espezinhar daquela forma?
No dia de reflexão chegamos à conclusão que a não violência é o caminho dos fortes. Daqueles que não se esgotam no imediato, no hoje, aqui e agora, mas que vêm mais longe, ainda que a custo de si próprios. Daqueles que escolhem viver a vida com os olhos postos no futuro, não o do amanhã, mas o outro, o que é eterno, e o que verdadeiramente importa. Daí a serenidade do seu olhar. Porque sabem que estamos todos de passagem.

Bambora

  Não é estranho que nos digam que «ser homem é muitas vezes uma experiência de frustração». Mas não é essa toda a verdade. Apesar de todos ...