20231227

Tenho vindo pouco aqui. E quase sempre apenas de visita. Por vezes perguntam-me porquê, o que se passa para que eu escreva tão pouco. Fico sempre surpreendido. Para começar, que me leiam. Depois, que isso possa ser significativo. Finalmente, que me perguntem. Porque nesse momento - e apenas nesse momento - coloco a mim mesmo essa pergunta. Porque normalmente os dias se sucedem uns aos outros sem que eu sequer me aperceba se escrevi ou não. Normalmente é nessas alturas que eu acordo e percebo que tenho sido mais fazedor que pensador. E não sei se isso é bom. Claro que penso nas coisas, mas normalmente canalizo o que penso para formas de fazer e menos para formas de ser. Penso, mas não me penso. E quando me penso é relativamente a algo que tenho que preparar: uma oração, uma formação, uma catequese, um encontro. E a distância acentua-se. E às tantas vejo-me mais a dizer coisas bonitas que refletidas. E genuínas. E isso, sim, é mau.

Numa destas noites mal dormidas senti necessidade de fazer um glossário. De convicções. Das minhas convicções. Algo a que pudesse recorrer rapidamente quando leio alguma coisa, quando penso alguma coisa, quando digo alguma coisa. Sim. Por vezes é esse o meu nível de perdido. Lembrei-me disso ontem quando estava a observar o meu neto entretido com os seus dedos e lhe trouxeram meia dúzia de brinquedos. Ele ficou mais agitado. Pegava em dois ao mesmo tempo e chorava pelos que não conseguia pegar. Eu estou mais ou menos assim. Tenho que voltar a olhar para os meus dedos. Que serenar interiormente. E fazer o meu glossário. De vida.


20231110

 “Um transexual – mesmo quem se submeteu a um tratamento hormonal e a uma cirurgia de mudança de sexo – pode receber o batismo, nas mesmas condições dos outros fiéis, se não houver situações em que haja o risco de gerar escândalo público ou desorientação entre os fiéis”, indica o documento, divulgado online e aprovado pelo Papa, informa o Vaticano.

Não consigo entender. Quer dizer: entendo as dúvidas acerca da transexualidade. Mais as minhas, que tenho que fazer um esforço para as passar do coração à cabeça, ou seja, da aceitação natural que cada um  possa escolher quem é (sendo que, nestes casos de transexualidade ou homossexualidade, nem sequer se pode falar de escolha), para a naturalidade do tratamento (refiro-me ao nome escolhido, ao pronome pessoal a utilizar...) que as da Igreja, que deve acolher de braços abertos todos, todos, todos. 

O que não consigo, de todo, entender, é a condicionalidade da aceitação ao risco de escândalo público ou desorientação. Não aprendemos nada com os abusos? Porque temos tanto medo do escândalo público nalguns casos e tão pouco noutros? Porque escolhemos esconder quem prevarica nos abusos, ignorando o imenso sofrimento provocado e escancaramos despudoradamente, recorrendo a artifícios, opiniões sobre as mulheres na Igreja? Como é que o acolhimento, por amor, de alguém, na Igreja, pode estar sujeito ao escândalo que isso pode provocar?. É bom que provoque escândalo. É bom que acorde as pessoas. É bom que nos coloque a todos, enquanto comunidade cristã, atarantados quando estamos longe de Jesus. Ou entendemos nós que Jesus não nos falaria como aos fariseus? Ou estamos tão enfarinhados que não percebemos que, em muitas coisas, é justamente para nós que Jesus fala quando se dirige aos fariseus perguntando se não vemos a trave no nosso olho quando apontamos o argueiro no olho dos transexuais? Mas que moral temos nós, sobretudo nesta altura, para apontarmos o dedo a quem escolhe, muitas vezes contra tudo e contra todos, à custa de enorme sofrimento, corajosamente, viver a sua verdade?

Não entendo!

20231023

Ultimamente tenho andado a pensar que as questões da moral, na Igreja ou fora dela, deveriam ser exclusivamente auto impostas. Que tudo o que não seja aplicar em mim e não nos outros, tem forte tendência para a asneira. 

Já estou cansado de saber como a vida me finta. Em mim aplicam-se na perfeição os telhados de vidro ou o cuspo para o ar que inevitavelmente me cai no meio da testa. têm sido imensas as situações que, em alguma altura da vida me arroguei a dar postas de pescada e agora apanho com elas nos queixos. Sempre que isso acontece, encolho-me todo de vergonha e rezo duas coisas: que eu não volte a repetir; que as pessoas visadas por essa minha arrogância já a tenham esquecido. 

Gostaria de pensar que esta é uma coisa que vai passando com a idade, mas não é verdade. Basta-me estar um pouco mais cheio de mim e lá caio na esparrela de mi próprio. Ontem, na eucaristia, rezava isso: vou esforçar-me mesmo por aplicar apenas a moral a mim próprio, porque apenas eu e Deus conhecemos as minhas idiossincrasias, as minhas dificuldades, os meus percursos interiores, as motivações das minhas manifestações exteriores do que sou. No que me diz respeito: exigência; no que aos outros diz respeito: acolhimento. 


20231019

Dizia eu ontem a um miúdo - estou na idade em que todos abaixo dos 30 são miúdos - que o "Para Sempre" me assusta. E desde sempre que assustou. Porque este sempre nem sequer é exatamente verdadeiro quanto ao passado - provavelmente houve alturas em que o para sempre não me assustava assim tanto - quanto mais quando perspetivamos ou nos comprometemos com o futuro. O Para Sempre é a manifestação de um desejo e, nas melhores hipóteses, um compromisso. Mas na verdade não faz grande sentido. Porque nos aprisiona, porque nos rouba a liberdade de, a cada dia, podermos escolher, porque nos obriga a cumprir algo que foi decidido ao passado independentemente das circunstâncias do presente. E eu, se aprecio imenso o compromisso, não gosto da obrigatoriedade. Há uns anos pediram-me para fazer um breve discurso para dois amigos que tinham casa há pouco tempo. E eu, de improviso, disse-lhes que não acreditava em casamentos para sempre, mas em casamentos de todos os dias. Porque é todos os dias que vivemos, é todos os dias que fazemos escolhas, é todos os dias que nos comprometemos ou não, é todos os dias que fazemos o balanço do que tem sido a nossa vida até ali e projetamos o amanhã. Claro que não renascemos a cada dia nem apagamos a nossa história assim que adormecemos. Seria terrível se isso acontecesse. Claro que há pessoas que estão e estarão na nossa vida para sempre, por pouco que as consigamos ver no quotidiano. Claro que há corações e almas e interiores que habitamos e temos o privilégio de sermos habitados por outros. E que isso acontece, dias a fio, semanas a fio, anos a fio, com cada um dos que nos habitam a montarem tenda cá por dentro. Mas nenhuma dessas pessoas que me habitam decorre do Para Sempre mas das boas e más memórias, das longas ou curtas conversas, dos gestos, dos olhares, da caminhadas que a vida nos permitiu.

20231016

Eu digo, muitas vezes, mais ou menos em tom de brincadeira, que me orgulho do meu lado feminino. E sempre que o faço em tom de brincadeira é com o intuito de me colocar em bicos de pés, é porque reconheço uma qualquer característica ou dom que eu não tenho e que, não sendo exclusivo dos homens - assim de repente não me recordo de alguma coisa do foro psicológico que seja exclusiva de homens ou mulheres - consigo perceber que é mais numerosa nas mulheres. Eu não acho nada que homens e mulheres sejam a mesma coisa. Mas também não acho que o Joaquim e o Manel sejam a mesma coisa. Mesmo numa relação, qualquer que seja a forma com que se reveste, há diversos papéis que são desempenhados alternada ou simultaneamente, porque ninguém é igual a ninguém, Graças a Deus! Daqui decorre a minha tremenda dificuldade em entender todas as questiúnculas que, de ambos os lados da barricada, ocorrem frequentemente. Irrita-me solenemente - porque acentua a diferença - o portugueses e portuguesas dos discursos políticos, por exemplo, ou dizer que Deus veio para os homens e as mulheres... Claro que, sendo eu homem, nunca me senti afetado por esta linguagem, mas aprendi - com mulheres, claro - que ela pode ser importante. A questão é que nós tomemos consciência que as mulheres toma parte, são parte, fazem parte, e uma parte tão importante quanto qualquer outra. Para mim, no entanto, esta ainda é uma não questão. 

Tenho acompanhado o sínodo com as dificuldades de quem não tem acesso direto aos discursos e documentos  - desconfio sempre! - e também, naturalmente, a temática das mulheres dentro da Igreja. E como percebo a sua luta! Graças a Deus, trabalho num Instituto feminino e não entendo como podem as mulheres com quem lido todos os dias ser vistas mais ou menos de esguelha seja por quem for e por que motivo for. Nada justifica. E quando leio que será mais fácil termos homens casados que acedam ao sacerdócio que mulheres, sei que vou ter grandes dificuldades ao jantar para tentar explicar isto às minhas filhas. E que será mais um motivo para elas não se sentirem inteiras na Igreja. Sim, estamos num abençoado e há muito desejado processo de limitarmos o clericalismo e não convém meter pedras na engrenagem, mas ser sacerdote é servir e não entendo como as mulheres têm mais dificuldade em servir que os homens. Ou o motivo é outro? (pergunta retórica). No meu quotidiano eu sirvo e sou servido por pessoas e profissionalmente coordeno e sou coordenado por pessoas, e a minha preocupação não é, de todo, se uns e outros são mulheres ou homens ou altos ou baixos ou o que quer que queiram ser na sua liberdade de Filhos do mesmo Pai, mas se o seu olhar brilha. Quaisquer que sejam as suas circunstâncias. E as suas escolhas.

20231013

Por estes dias, sigo o Sínodo com muita atenção. É muita a expectativa, embora não demasiada, porque destas coisas vou percebendo o suficiente que os passos pequenos são importantes mas exasperantes. Sobretudo para a muita malta nova com quem tenho conversado - a começar pelos meus, lá em casa - que aspiram a muito maior firmeza e rapidez. O que é curioso, porque o que sair destes dias - sobretudo o que sair depois da segunda parte do sínodo, que irá ser discernida em outubro do próximo ano - será mais vivido por eles que por mim, que já não estarei a tempo de saborear as mudanças que, espero e desejo, daí virão. E o facto de eu e outros como eu estarmos já numa outra fase da vida não é despiciente em todo este processo de evolução da Igreja. O Concílio Vaticano II terminou por volta do ano em que nasci e, sobretudo depois de ter sido metido na gaveta com João Paulo II, só agora começa a ser intencional e abertamente recuperado. Tivessem as coisas corrido de outra maneira e provavelmente já veria homens e mulheres casados chamados ao sacerdócio. Aquilo que, considerando o processo evolutivo da História da Igreja, levaria talvez duas gerações a ser alterado, levará assim pelo menos mais uma, o que me deixará a assistir de cadeirinha, lá por cima (espero eu!). Mas, como tenho dito aos meus filhos, tem sido bom perceber como aquilo que eu intuía e defendia, praticamente só e reduzido à minha insignificância, hoje seja escrito e dito em voz alta e nos mais diversos lugares eclesiais. Acredito, cada vez mais, que tenho combatido o bom combate, - mais uma vez, insisto, no espaço consciente da minha insignificância - por uma Igreja mais próxima do Evangelho de Jesus.

20230918

Ontem, em Mafra, foi coroada, pelo D. Tolentino Mendonça, a Senhora da Soledade. Na verdade, confesso que não faço ideia se é assim que as coisas se dizem, porque não conheço nem tenho particular interesse em conhecer o protocolo destas coisas. Não é que considere que elas não sejam importantes - sê-lo-ão certamente para muita gente boa - apenas que não me dizem grande coisa. Provavelmente ditado e condicionado pela vida que vou vivendo, percebo que atribuo muito mais significado a um cristianismo de pés no chão e cabeça no alto que o seu contrário. Pelo menos nesta fase da minha vida, que é feita de leituras e estudo mas tendo sempre como objetivo último a operacionalização do que leio e estudo. Sem, no entanto, desvalorizar minimamente tudo o resto porque ambas as coisas são necessárias e até fundamentais na Igreja. É preciso quem faça e é preciso quem estude e é preciso quem reze e é preciso quem cuide e é preciso quem mastigue e entregue o que outros estudam e leem. E isso é bom. Mas é esta uma das nossas dificuldades em Igreja: atribuímos cadeirões em função daquilo que pensamos ser o nível de importância de cada um ignorando ostensivamente que os dons do Espírito são entregues com o mesmo amor e com o mesmo propósito: servir o melhor que sabemos e conseguimos. O resto é coisa dos homens, não de Deus.

Há duas semanas estava numa belíssima formação na qual estava presente um dos bispos da minha cidade. Tudo normal, até ele se levantar e sair, continuando nós o trabalho. Na altura em que o bispo se levantou, levantaram-se quase todos os presentes, o que me surpreendeu - não sou nada dado a protocolos. Teria sido, provavelmente, uma questão de respeito. E teria entendido se, a cada pessoa que se levantasse ou chegasse nós nos levantássemos por respeito. De outra maneira, não faz sentido para mim. E poderia ser apenas um pormenor, se na realidade não tivesse reflexo na qualidade do trabalho que, nós leigos, desempenhamos. Mas tem. Efetivamente tem. Porque muitas vezes esse respeito especial pelos nossos bispos e nossos sacerdotes e nossos religiosos e religiosas se traduz em respeitinho, e isso muitas vezes impede a troca de ideias de forma clara e aberta. E isso, claro está, faz com que se diga à boca pequena o que não se tem - por respeito, claro - a coragem de dizer olhos nos olhos, de forma aberta e honesta. E nem considero que a responsabilidade esteja sempre nos outros, mas em nós, que entendemos que discordar de uma decisão ou de uma visão é uma questão de respeito. Não é. É uma questão de vida. Que será tão mais rica quanto melhor e mais abertamente partilhada.


20230813

Depois de uma Jornada que, por todos os motivos e mais um, me encheu a medida, estou, finalmente! de férias. Como sempre acontece, ontem fui à missa. Uma igreja pequenina, fora dos grandes centros, predominantemente com avós e alguns netos. No altar, um sacerdote que poderia ser avô, a debitar, solene e profusamente, sobre o que aconteceu na JMJ: a maravilha que é ter tanta juventude reunida, a enorme importância do silêncio - que, segundo ele, os jovens não conseguem fazer (e ele não se calou um segundo!) - a organização da Igreja, capaz de congregar gente de todo o mundo, e sobretudo a centralidade da eucaristia dominical pois sem a paróquia nada se consegue. E termina a homilia assim: vamos rezar pelos nossos jovens, para que eles descubram que é possível a alegria na Igreja. Como se a alegria em que vivi mergulhado na semana passada acontecesse por causa deles e não apesar deles!

Confesso que me torci todo com aquela homilia autoreferencial. Como é possível, depois do que vivi, depois do que vivemos todos, depois do que vibramos e cantamos e mergulharmos em louvor numa multidão nunca antes vista, deitarmos da boca para fora que nós é que temos que ensinar e nada temos a aprender? Só por muito medo da eventual irrelevância!

Eu acredito muito na Igreja. É uma parte importante do que sou, de como vivo, com quem quero viver, e estou em total sintonia com o Papa Francisco quando ele diz que todos têm lugar na Igreja. Todos. Os novos, os velhos, os modernos, os conservadores… todos. Mas temos que mudar. Rapidamente. Temos que regressar a Jesus, ao Evangelho, ao simples e pequeno. Temos de regressar à alegria genuína da pertença, nas circunstâncias concretas de cada um porque é aí, nessas circunstâncias, que se dá o Encontro. Temos que regressar ao silêncio, revelador, rico, próprio e partilhado, sem o encher com palavras, que são importantes mas demasiadas vezes castradoras. Sobretudo, temos que regressar ao olhar de Jesus. Que ver como Ele nos ensinou a ver, a amar como Ele nos ensinou a amar, a colocar-nos perante os outros como Ele se colocou: sob e não sobre. 

Estamos, todos, tão longe!

20230613

fagilidades

Tenho a sorte de trabalhar num sítio de fragilidades. De e com pessoas com uma carência de tudo: amor próprio, perspetiva de vida, sentido, objetivos, motivações, não falta nada no cardápio da miséria humana. Pessoas que nem sequer andam já à procura, tal é o desânimo e a perda. Nem sabem sequer que perderam porque já não têm há tanto tempo que esqueceram que alguma vez tiveram. Dos miúdos que chegam às nossas mãos, por volta dos seis anos, quando entram para a escola, perdemos sempre demasiados. Quando chegam aos pós 15, perdemos com certeza muitos mais que aqueles que conseguimos agarrar, com ambas as mãos, com muita força, muitas vezes sendo apenas nossa a única vontade de os retirar dos escombros da vida. É, por isso, muitas vezes, uma batalha inglória, em que temos que lidar com a perda e a frustração e o nosso próprio desânimo. Que se agudiza quando, numa das alturas como esta em que, chegando já cansado ao trabalho, me deparo com o olhar sempre doce e meigo - e completamente perdido - de um dos nossos miúdos, agora adulto e pai de filhos, que se arrasta na venda e consumo de droga. Andará, agora, na casa dos trinta, mas o que vejo sempre que o vejo - e fico sempre feliz quando o vejo - são aqueles olhos doces, meigos e completamente perdidos de menino traquina com quem tive grandes conversas. e que baixam agora quando me vê e o interpelo, a sorrir, e sorri de volta apenas quando lhe pergunto pelo filho e responde perguntando pelos meus. "Já sou avô, vê lá tu" "que bom, stor, grande abraço!" 

Sou todo cheio de faladuras, de teorias, de leituras, de aprendizagens, e todas as faladuras se calam quando estou diante daquele olhar. Tudo o que leio, tudo o que aprendo, tudo o que julgo que sei se desmorona diante daquele e dos outros olhares que rodeiam o Espaço e que são nossos, são ainda nossos, apesar de estarem colocados em caras gastas e chupadas de miúdos de vintes e trintas e pais de filhos mas que nunca deixam de ser nossos. Os olhos, os miúdos, as suas vidas, as suas fragilidades.

É. Tenho a sorte de trabalhar num sítio de fragilidades. Que é pródiga em me dar chapadas na cara e em me dizer que somos, que eu sou, fragilidade. Tudo o resto é conversa para entreter meninos.

20230603

Recentemente, acusaram-me de, teimosamente, pedir o impossível. Sem pensar, respondi que, se não sonho o impossível valerá a pena sonhar? Tinha respondido imediatamente, naquela, em mim, demasiado frequente via que vai do coração à boca sem dar a volta ao circuito cá por cima, como deveria ser. E ficou a pairar, como invariavelmente fica o surpreendente, cá por dentro, à espera da luz que lhe dê sentido - é curioso como eu, muitas vezes, procuro o sentido do que digo apenas depois de ter sido dito e não o contrário, que é o que faz o sensato. 

Quando digo uma coisa destas - e sobretudo desta maneira - faço-o instintivamente, e a sua origem normalmente reflete o que me acontecia antes de saber que deveria pensar o que me acontecia. Na verdade, sonhei sempre o impossível, desejei e batalhei sempre pelo impossível, enquanto me entretinha a viver a realidade que a vida me tinha destinado. Sim, porque há uma realidade que é inalterável: não alteramos o lugar onde nascemos e crescemos, não alteramos a família, não alteramos as nossas circunstâncias sociais, as pessoas que, até determinada altura nos rodeiam. Algum desse entorno em que estamos mergulhados podemos alterar mais tarde, quando fazemos as primeiras escolhas - no meu caso muitas vezes mais ou menos inconscientes, aprendidas e absorvidas nos imensos livros que ia lendo - mas as pessoas que deram e fizeram a nossa vida, a não ser que estejamos dispostos à rutura definitiva - e eu nunca estive - são-nos tão constitutivas quanto nós próprios. São âncoras, desempenhando o duplo papel das âncoras que, se nos prendem ao seguro, também nos impedem de levantar voo rumo ao sonho de futuro. Nestas circunstâncias, que foram e são as minhas, o futuro que sonhamos ganha um lugar absolutamente fundamental para que consigamos ver para além do que se nos apresenta diante do olhar. 

O curioso é que a vida que, em termos profissionais, me caiu no colo, veio possibilitar este encontro do sentido naquilo que eu, intuitivamente, sempre fui sendo. Agora, quase todos os dias, encontro - e se não encontro, instalo - nos miúdos do bairro esse sonho de futuro que as suas circunstâncias teimam coartar. E confirmo, todos os dias, como o sonho desempenha um papel absolutamente fundamental no despertar do seu desejo de ir mais além.

Sim. Eu sonho. Ainda sonho. E reafirmo o que, sem pensar, me saiu: se não sonho o impossível, valerá a pena sonhar?

20230401

202304 Artigo para O Poço

Mt 17 1Seis dias depois, Jesus tomou consigo Pedro, Tiago e o seu irmão João, e fê-los subir, a sós, a um alto monte. 2Transfigurou-se então diante deles: o seu rosto ficou brilhante como o sol, e as suas vestes tornaram-se brancas como a luz. 3E eis que lhes apareceram Moisés e Elias a conversar com Ele. 4Em resposta, Pedro disse a Jesus: «Senhor, que bom é nós estarmos aqui! Se quiseres, farei aqui três tendas: uma para ti, uma para Moisés e uma para Elias».

Nós somos muito Pedro!

 

Façamos a contextualização desta passagem bíblica, que escutamos na eucaristia há pouco tempo. No capítulo anterior (Mt 16) podemos ler o que se passara seis dias antes deste grandioso acontecimento:  Jesus perguntara quem os apóstolos dizem que Ele é. Pedro, sempre com o coração perto da boca, facilmente diz que Jesus é o Messias. No entanto, assim que Jesus explica qual o verdadeiro sentido de ser o Cristo, a dor, o sacrifício, o serviço, a necessidade e a vontade de estar entre os últimos, Pedro protesta. E recebe uma reprimenda do próprio Jesus: «Vai para trás de mim, Satanás! És para mim motivo de escândalo, porque não tens em mente as coisas de Deus, mas as dos homens» (Mt 16, 23). Não espanta, por isso, que passados seis dias deste episódio Pedro, perante a maravilha da Luz, tenha sugerido a Jesus ficar no conforto dos seus e a não assumir a cruz. Para quê ir para o mundo, se o mundo o recusaria?

 

Nós, Igreja, somos tão Pedro! Adoramos o Jesus, mas custa-nos o Cristo. Adoramos o brilho, a festa, a grandiosidade que nos coloca a cara no chão, tecemos loas à sabedoria profunda de Jesus, à forma como fala para as pessoas e restaura a sua dignidade, e facilmente nos deixamos contagiar por essa alegria profunda e transformadora que nos faz sentir que somos tão amados, cuidados e restaurados quanto a mulher pecadora e tão dignos como Zaqueu. E bradamos ao mundo, felizes, entusiasmados, e ensinamos na catequese como Jesus é bom e como é o modelo que teremos de adotar se quisermos um mundo melhor ao som de aleluias e cânticos de alegria. Quando ao Cristo, ao sofrimento, à dor, ao caminho da cruz que é fundamental para que haja aleluias que possam ser cantados, esse quase que destinamos à clandestinidade, quase que escondemos, porque a dor não cativa ninguém e os sinais dos tempos vão no sentido oposto.

 

Sabemos que esse é, sobretudo agora, o pulsar do mundo. Basta estarmos minimamente atentos ao que diz o Papa Francisco para o confirmarmos: o mundo foge da dor. E nós com ele. Refiro-me, por exemplo, ao esforço hercúleo – e vão - de pouparmos os nossos filhos às agruras da vida. Se, quando comparada com a dos nossos pais, a vida nos foi favorável, desunhamo-nos para que a dos nossos filhos seja muito melhor que a nossa. Apresentamos-lhes as luzes e escondemos as sombras. E, reverso da medalha, eles têm menor capacidade de lidar com as adversidades que a vida, inevitavelmente, nos e lhes coloca. Habituados a ter tudo aqui e agora,  vivem mergulhados na cultura do imediato que o Papa Francisco tantas vezes refere e cuja responsabilidade apenas pode ser nossa. Quisemos aliviar tanto a carga negativa que às tantas falseamos a verdade da vida. E a verdade da vida encarrega-se, inevitavelmente, de vir ter connosco.

 

Era essa a verdade que, para Pedro, se afigurava intolerável! Como é que o seu Mestre, aquele homem bom e sábio, o Messias, poderia humilhar-se a esse ponto? (Sim, podemos imaginar aquela nossa voz egocêntrica por nós silenciada, mas sempre presente: se Ele vai ser humilhado, eu serei com Ele. Foi por isto que deixei a minha família?). Na verdade, Pedro, como nós demasiadas vezes, preferia a meia verdade. E não era difícil: bastava ignorar os que tinham ficado no sopé do monte, desviar um pouco o olhar focando-o apenas em Elias e Moisés e na luz grandiosa que vinha de Jesus, que Pedro tanto amava. Não havia qualquer maldade nisto: apenas o desejo de poupar o seu amigo e Mestre à dor. Que mal tinha? A resposta estava implícita na recomendação seguinte de Jesus: “Não faleis a ninguém desta visão, até que o Filho do Homem ressuscite dos mortos”.

 

A Páscoa de Jesus ensina-nos a imperatividade do todo. Jesus não se entregou um bocadinho, Jesus não amou um bocadinho, Jesus não sofreu um bocadinho nem disse um bocadinho da verdade diante do Sinédrio e de Pilatos. Jesus não perdoou um bocadinho do bom ladrão. Jesus não ressuscitou um bocadinho. O que a Páscoa de Jesus nos ensina é que ou nos entregamos todos, inteiros, com as nossas particularidades boas e más, com as nossas qualidades e defeitos, com os nossos dons e pecados, ou não seremos restaurados. E que é fundamental que este seja um movimento absolutamente constante na nossa participação na Igreja de Cristo. O que nos pode perdoar Cristo no Sacramento da Reconciliação se escondemos o nosso pecado mais profundo e doloroso? E a quem o confiamos, se não o fizermos a Cristo? Não ficamos nós com esse peso, na solidão da nossa consciência, no mais profundo da nossa interioridade, se não o entregamos a Cristo? Não é na nossa enorme fragilidade, na nossa maior vergonha, na nossa dor mais imensa, que damos lugar ao Amor do Pai? Ou teremos nós a ilusão que o Pai não nos conhece e que, à imagem do Éden, nos podemos esconder quando o Pai vem ao nosso encontro?

 

Não poderia esta passagem bíblica ser mais atual: é quando a nossa vergonha e a nossa dor é maior que mais precisamos de a assumir na sua totalidade para que a possamos confiar toda ao Amor do Pai. Em Igreja não pode haver meias verdades.

 

Para a Igreja que somos, é imperioso fazermos, todos, batizados, qualquer que seja a nossa circunstância de serviço, esta reflexão conjunta. Sem desviarmos o olhar dos que estão no sopé do monte. Sem desviarmos o olhar de todos aqueles que sofreram os horrores dos abusos por parte daqueles que tinham a mais nobre missão de apresentarem um Deus que é Amor. Sem varrermos para debaixo do tapete, sem atitudes titubeantes, sem desvalorizações ou tentativas de menorização daqueles a quem devíamos ter protegido. A Igreja de Jesus Cristo ou se alicerça na verdade - sobretudo quando, como é o caso, a verdade implica uma dor profunda e imensa acompanhada de imensa e profunda vergonha – ou estará a ser infiel ao próprio Cristo.

 

E é imperioso que nós, leigos, sejamos escutados. Somos também nós – juntamente com imensos presbíteros e homens e mulheres consagrados - quem está a fazer a preparação da JMJ junto dos mais novos, somos nós quem dormirá com eles no chão durante essa semana, somos nós quem com eles lida todos os dias, é connosco que eles conversam, com quem partilham as suas dúvidas e, sobretudo as suas dificuldades em se afirmarem católicos diante dos amigos e colegas e uma sociedade global a quem demos o pretexto ideal para nos apontar o dedo. Somos nós quem defendemos, todos os dias, a Igreja que amamos e de que fazemos parte e batalhamos para que eles sintam que, apesar de tudo, vale a pena ser Igreja. Não nos colocamos de fora na assunção das responsabilidades que, porque somos Igreja, são também nossas, mas não nos coloque a hierarquia de fora, atribuindo-nos um atestado de menoridade que é desatualizado, inadequado e profundamente injusto. Precisamos de confiar nos nossos bispos. Por isso, precisamos que os nossos bispos nos apresentem a verdade, toda a verdade, nos ajudem a  enfrentá-la, para a podermos confiar na totalidade a Cristo. Se não o fizermos, mais que estarmos a dar um sinal errado à sociedade, estaremos a trair tudo aquilo que Jesus nos ensinou e fez por nós. Também a Sua cruz foi motivo de escândalo, mas isso não O impediu de se entregar todo até ao fim do princípio.

 

Façamo-lo nós também. O Senhor é o nosso Pastor, que haveremos nós de temer? Mesmo que andemos por vales tenebrosos não temeremos mal algum porque Tu, Senhor, estás connosco!

 

20230330

20230330

Hoje, no GEP3M - Grupo que Escuta a Palavra e a Põe em Prática como Maria - que tem sido uma excelente forma de refletir e rezar o evangelho de cada domingo próximo, dizia que Jesus amou sem limites, que ninguém lhe tirou nada porque, antes, Ele já o tinha oferecido. Embalado, como fico sempre que falo do que verdadeiramente me apaixona, dizia ainda que Amar até ao limite é essa dispensa do compromisso, do que tem que ser, em favor da pura gratuidade do amor, do dar absolutamente de borla, sem exigir nada em troca. 

Acontece-me muitas vezes encher a boca com coisas destas, que são tão bonitas de dizer quanto difíceis de realizar. Na prática, até o podemos dizer, olhos nos olhos, convictos que essa é, na realidade, a mais bela maneira de amar: querendo apenas o bem da pessoa amada, em total liberdade, fazendo vida do velho ditado do pássaro libertado que, se voltar, será nosso para sempre. A questão é o que fica a corroer a alma assim que largamos a mão de quem amamos, e lhe sentimos a falta. É a desolação que acontece quando a esperança dá lugar à dúvida e nos abre a possibilidade de, afinal, estando a gaiola aberta, nunca mais escutarmos a doce melodia do pássaro. No fundo, no fundo, duvidamos, questionamos se apenas nós amávamos, se tudo o mais era mero compromisso.

No entanto, acredito que é justamente neste momento limite, em que a vida nos obriga a escolher entre a dúvida e a esperança, que o amor se prova. A verdade é que, se o pássaro realmente não voltar, é porque não era de amor recíproco que se tratava, mas de qualquer outra coisa. Posse, comiseração, obrigação, pena ou comodismo, até o direito natural de empreender novos voos, conhecer novos horizontes, o que quer que seja, que é certamente altamente justificável mas é sempre, sempre, infinitamente menos que amar. O paradoxo é que a dor da ausência, a improbabilidade do regresso, apenas confirma que aquela foi, afinal, a decisão mais acertada. Porque nenhum amor pode sobreviver sem a liberdade inteira, plena, absoluta, de amar. E a maravilha divina de se sentir amado.

20230327

20230327

Ainda que não o desejemos, ainda que o recusemos, ainda que não tenhamos disso consciência, a nossa vida configura-se com a vida de Jesus. Ou melhor, é a Sua vida que se configura com a nossa própria vida. Talvez por isso, o período da Quaresma me seja tão significativo e a Via Sacra seja, provavelmente, o meu ritual preferido. Sendo sempre doloroso, não me é nada difícil reconhecer-me naquele caminho. Também eu caí bem mais que uma vez, também eu tive (mais que) um cireneu, também eu tive quem, recorrentemente, me limpasse o rosto, e também eu, depois de chorar baba e ranho e ter duvidado de tudo e de todos na maior das solidões (sempre auto-infligida e auto-imposta), acabei por ressuscitar. Por isso, nada na Via Sacra me é estranho. E nada em Jesus me é estranho. A não ser a responsabilidade, que é sempre minha, exclusivamente minha, feita à custa de escassa racionalidade e de um certo embarcar na fantasia ignorando a realidade do chão que piso. Não me recordo de alguma vez ter podido sacudir o pó da responsabilidade de cada vez que mergulhei nos meus infernos. Estivesse eu mais atento, estivesse eu menos convencido da minha razão, estivesse eu mais aberto à escuta dos que me amam, e ter-me-ia apercebido, primeiro, que era amado, e, depois, que nos momentos escuros nada há de melhor, mais sensato e mais corajoso que abandonar-me aos que me amam. Tivesse eu a capacidade de fazer isso e teria evitado muita dor, sobretudo aos que, como Maria e João, nunca arredaram pé de junto da minha cruz.

Hoje, porque o conversamos no caminho, rezei pelo sr Mário. Na verdade não o conhecia bem. Vira-o meia dúzia de vezes, sem lhe prestar grande atenção, enquanto tratava do jardim lá de casa.  Eu tenho impregnada na vida esta coisa dos outros serem apenas outros e, enquanto não faço o esforço consciente de passarem a ser meus, são sempre outros. E a verdade é que o Sr Mário nunca foi dos meus. Por isso não posso dizer que tenha sentido grande comoção quando soube que se tinha suicidado. Mas hoje falamos disso e rezei por ele. Sobretudo pela família dele. Há muitos anos, um bom amigo morreu. Num determinado período tinha sido fundamental na minha vida. Foi com ele que aprendi a cantar e a tocar em eucaristias e partilhamos deliciosas memórias de retiros e encontros e brincadeiras parvas que se têm apenas com aqueles com quem nos sentimos nós próprios, sem qualquer receio. Uma amizade que se estendeu com facilidade aos seus pais e irmãos, que têm, ainda, hoje, um lugar especial cá por dentro. Quando morreu, correu à boca fechada que se teria suicidado. Recordo-me do tremendo sentimento de culpa que se abateu sobre mim. Na altura, a vida já nos tinha enviado por caminhos diferentes e só nos víamos ocasionalmente e sempre de corrida. Já não sentávamos e já não conversávamos. E eu já não sentia essa disponibilidade interior para o fazer. Recordo-me que, quando soube da sua morte, senti pela primeira vez uma enorme necessidade de estar num velório e num funeral, de o acompanhar e à sua família. E, mais tarde, senti necessidade de pedir perdão aos seus pais e irmãos por não ter estado lá quando teria sido necessário.

Não haverá maior profundeza do inferno que o desespero que leva ao suicídio. É necessária uma solidão, uma desesperança, uma escuridão, que apenas conseguimos imaginar. E uma total ausência de sentido. Não creio que seja um ato de egoísmo, mas de libertação, enraizado no erro de pensar que os que nos amam ficarão melhor sem nós. Nunca ficam. Sobretudo se nos amam verdadeiramente.

20230316

20230316

Por vezes, a tentação de ser de novo é enorme!. Fazer reset, como se de um computador eu me tratasse, limpando o histórico sem deixar rasto, podendo-me apresentar ao mundo de cara nova. Por vezes há a ilusão que o perdão é isso mesmo, um recomeçar total e absoluto, a partir da raiz, deitando fora tudo o que já provocamos. Não é isso que somos. Não é assim que somos. Muito menos é a isso que somos chamados a ser. Se se tratasse apenas de nós, se nos focássemos apenas em nós, se apenas nós contássemos, isso até seria possível. Mas nunca somos apenas nós. As consequências nunca são apenas nossas. Por isso, nunca somos de novo, carregamos a nossa vida e a imperiosidade de viver a partir da nossa vida. O que não seja isto é ilusão. E alienação. Quando magoo e me arrependo, quando não sou digno e me arrependo, quando estou errado e me arrependo, não posso fingir que não magoei, falhei ou errei. Não o posso apagar nem de mim nem dos outros, mas tenho que tentar refazer, reconstruir a partir dessa realidade, que é sempre dolorosa, mas é sempre realidade. Tenho que incluir essa dor, essa vergonha, naquilo que há a ser perdoado e aprender a viver com essa mágoa até que, um dia, consiga sentir-me restaurado pela bondade e no alívio do perdão. Até lá, até que me sinta perdoado, olhos baixos e consciência que, por muito que o deseje, não posso alterar o curso da água que já passou. E tentar aprender. E entregar-me. A Deus. Ao Seu Amor. Que me chega sempre pelo amor dos outros. Também quando me perdoam.

20230209

202302091029

O maior desafio da minha vida são os meus filhos. Já o eram muito antes de terem sido concebidos, muito antes até de eu sequer pensar em namorar. Não que eu racionalizasse muito o facto - aquilo que é verdadeiramente importante na minha vida é muito mais intuído que pensado (mais abandonado que controlado) - mas justamente porque sabia que havia uma série de princípios que sentia que seria da minha responsabilidade transmitir-lhes. A fé, o respeito, o compromisso, a educação do olhar, a liberdade e cuidado de descobrir o seu lugar no mundo sempre foram o caldo cultural onde foram cozinhados. Nunca fui muito de exigir resultados porque eu próprio valorizo muito mais o processo, o caminho, que as conquistas. O meu olhar dirigiu-se sempre muito mais para o empenho que para as notas, para o equilíbrio que para o sucesso, para o sentido que para a glória. Ao longo do seu percurso tive alguns amargos de boca, claro - foram bem maiores os que eu lhes provoquei - mas hoje, que são já todos adultos e já não pago mesadas a ninguém, são, sem dúvida, o meu maior orgulho e a certeza que, afinal, talvez tenha contribuído para que o mundo seja bem melhor. Por eles e com eles é-o com toda a certeza.

Sempre que estudo algo sobre a Bíblia, a fé ou a cultura em que estamos mergulhados - que, misturados com a psicologia e a filosofia, são os temas que me interessam verdadeiramente - tenho sempre os meus filhos como pano de fundo. Como lhes hei de transmitir isto? Como irei encaixar isto nas nossas conversas? Como conseguirei passar-lhes este lado da visão das coisas? Naturalmente, sendo eu pai deles, conto que eles desliguem ao fim de 15 segundos - isto se tiver oportunidade de dizer qualquer coisa, por entre discussões de política e saúde e leis e o que quer que seja - pelo que vou arranjando, meio inconscientemente, estratagemas para captar a sua atenção. E quando isso acontece - e como fico feliz quando isso acontece! (sem o deixar transparecer, claro) - sei que o verdadeiro desafio é o que virá a seguir: que, sendo eles livres, cultos, interessados e comprometidos com o mundo à sua volta, me vão colocar precisamente o seu lado da questão e que, não raras vezes me vejo na necessidade de voltar ao estudo do tema para lhes conseguir ir respondendo.

Ser pai é o grande cumprimento da minha vida. Afetivamente é avassalador, e há alturas em que pouco sobra. Intelectualmente é profundamente desafiante, porque é aquela parte que não cabe na expressão "pai é pai", não é um lugar que se tenha adquirido por nascimento mas que tem que ser conquistado. E esse sempre foi uma preocupação da minha parte. Talvez porque naquela parte em que "pai é pai", nem sempre tenha sido capaz de estar à altura, e os imagine a dizer isso com um sentimento de inevitabilidade, encolher de ombros e revirar de olhos.

20230208

202302081509

No princípio desta semana morreu uma das pessoas que admirava. No princípio da minha descoberta da fé conversamos algumas vezes, mas a minha admiração vinha mais da sua postura sempre discreta e sempre de serviço, que daquilo que ele dizia. Há pessoas assim, que falam sem palavras, com a vida vivida, sem palcos ou luzes, naquela aparente pequenez que engrandece a vida dos outros.

Naturalmente, fui ao seu velório, que estava cheio de velhos amigos meus. Malta com quem partilho algumas das melhores memórias da minha vida, com quem cresci e descobri o que é rezar e aprendi a ir sendo mais eu. Já não nos víamos há algum tempo, a não ser nas redes sociais, mas nunca nos perdemos de vista. Levava comigo, por isso, alguma expectativa da alegria do reencontro. Que não se confirmou. O que foi profundamente estranho. E inquietante.

Na verdade não é nada incomum sentir-me um peixe fora de água, sobretudo quando está muita gente. A memória da minha infância reveste-se muitas vezes das brincadeiras a solo que, depois de descoberta a leitura - comecei a ler muito cedo - se passava nas histórias que lia com os heróis que lia. Só quando fui para a capela - junto daqueles que agora via no velório - é que soube o que é a camaradagem e o crescer verdadeiramente com outros. Mas mesmo nessa altura, porque vivia num lugar que ficava longe de tudo, tinha-me apenas a mim por companhia nas longas caminhadas de idas e vindas da escola. Ao longo do tempo fui tendo esses dois mundos muito bem delineados: um, o do estar com os outros em que sou guitarra e canto e alegria exteriorizada; e o outro, porventura aquele que me é mais natural - seguramente mais confortável - o das caminhadas reflexivas e leituras solitárias com o pensamento e a imaginação desamarrada. Dois polos opostos que, na verdade, correspondem a dois aspetos da minha personalidade. Uma das razões da minha perene falta de inteireza é que eu nunca fui apenas um. 

Quando vínhamos do velório comentei que estava algo assustado comigo. Cada vez mais o recolhimento e o silêncio me são mais naturais e confortáveis. Cada vez mais gosto de me esquecer do tempo imerso na viagem que uma boa leitura ou um bom podcast me proporcionam. Cada vez mais tenho menos paciência para conversas de circunstância, cuja importância reconheço, mas que cada vez me dizem menos e custam mais. Talvez seja o tempo a fazer das suas, talvez seja o cansaço, talvez seja o retorno que dizem que vai acontecendo a partir de uma certa idade. A verdade é que não sei ainda se gosto disso. Mas preocupa-me. Não por minha causa, que me dou muito bem sozinho, entretido nas minhas coisas. Mas por causa daqueles que me são importantes. E que estão a estranhar.

20230203


Tenho-me debruçado mais, ultimamente, sobre a Bíblia. Seja por causa da oração matinal, seja pelo complemente exegético que me tem encantado, seja ainda por uma outra atividade que iniciei recentemente, a verdade é que voltei ao fascínio que o estudo da Bíblia sempre exerceu sobre mim. Esta semana, na oração matinal fiquei com uma expressão que me abriu horizontes - são as que eu mais gosto: Jesus não fazia magia, mas milagres. Vinha isto a propósito das dificuldades que Jesus sentiu ao anunciar o Reino aos da sua própria terra. Creio que é algo que todos nós, de alguma maneira, sentimos. Eu próprio já deixei de valorizar quando alguém lá de casa chega todo entusiasmado com uma novidade que eu já dissera há bastante tempo sem ter sido escutado. No entanto, não foi aí que se abriram portas. Foi no que pensei a partir daquela expressão: Jesus não fazia magia, fazia milagres. Pus-me à procura, mentalmente, o que separaria assim de tão fundamental uma coisa da outras e rapidamente cheguei à resposta: a magia apenas requer um espetador, o milagre é sempre antecedido de um desejo de conversão e de um ato de fé. Por isso Jesus, perante uma assembleia que estava mais agarrada ao que julgava conhecer de Jesus que à novidade que Ele apresentava, não conseguiu fazer qualquer milagre. 

Na verdade, ontem como hoje, ninguém consegue dar o que quer que seja a quem não o quer receber. Nem mesmo Jesus!

20230119

202301190835

Volta e meia preciso de parar um pouco a meio desta subida, aliviar o peso que carrego, e sentar-me apenas o tempo suficiente para poder olhar em volta e apreciar a paisagem. Naturalmente, começo por olhar para baixo, para o caminho já percorrido, agora feito memória. Rapidamente recordo os lugares onde as pernas fraquejaram, onde os pés paralisaram e apenas avancei à custa de mãos estendidas. As minhas e as de quem mas deu. Na verdade, fui aprendendo que caminhar tem muito mais a ver com mãos que com pés, e que tem sempre a ver com dores. As minhas feitas dos outros, e as dos outros feitas minhas. Olho distraidamente em volta e surpreendo-me com a paisagem. Que descubro sempre nova, nunca antes por mim vista. Na verdade, tenho o terrível hábito de caminhar de olhos postos no chão e cabeça a vaguear lá por cima. No meu absorto peripatetismo, a paisagem desempenha um  papel completamente secundário. Os sons, os cheiros, as cores, acontecem lá fora, muito longe de mim, e acontece-me muitas vezes ficar surpreendido quando levanto a cabeça e acordo da minha letargia profunda. A paisagem à minha volta nunca me despertou grande interesse e raramente consigo fixar nela o meu olhar mais que alguns minutos. E olho para cima, para o caminho que me falta. Não vejo grande coisa, e sei que o caminho me reserva surpresas, algures. Não que adiante de muito preparar-me para elas - se o conseguisse já não seriam surpresas mas expectativas - porque sei que, depois da minha primeira expressão de desagrado - não gosto de surpresas - acabarei por lidar com elas, avançar e, eventualmente, a apreciar as suas consequências. 

Já chega de descanso. Vamos a isto.


20230103

Por estes dias, é-me impossível não estabelecer o paralelismo. E (a)notar o paradoxo. As notícias passam de uma fila para outra. De comum, a fila interminável, o respeito, a vontade de despedida, a veneração, o reconhecimento da importância da vida. E, parece-me, fica por aí. Pelé e Bento XVI dificilmente poderiam ser mais diferentes. Um é o símbolo do endeusamento exacerbado do efémero, da popularidade, da elevação das artes mágicas de um homem cujos méritos são recordados bem acima dos da equipa e que encontrava a sua alegria no meio da multidão. O outro é reconhecido pelo seu recato, pela sua aversão a tudo o que era popular, preferindo o refúgio e o silêncio, longe de tudo e de todos. Paradoxalmente, se perguntássemos ao comum dos mortais quem deles desperta mais simpatia e adesão, Pelé teria mais um título na sua carreira. E isso diz imenso de nós, Igreja.

Desde muito novo - creio que desde que estudei e percebi a dinâmica do nazismo - que sinto enorme dificuldade em alinhar no exacerbamento das pessoas. E eu sou um privilegiado, trabalho todos os dias com e para pessoas que são enormes no conhecimento, na entrega, no sacrifício próprio, na busca quotidiana de soluções e condições para que os outros possam ter, efetivamente, mais vida. Pessoas cujas capacidades que me fazem sentir pequenino e junto de quem gravito tentando absorver tudo o que elas me possam e queriam dar. Pessoas dos mais variantes quadrantes, das mais variadas origens sociais, mais novas e mais velhas, que podiam ser meus filhos ou meus pais e que me dão o privilégio de me permitir labutar com eles, aprender deles, construir com eles. Pessoas que são seres humanos, que têm zonas claras e cinzentas, que caem e se levantam quando conseguem ou quando são ajudadas, que riem e choram, que nem sempre entendo, que nem sempre me entendem e por vezes se chateiam comigo e eu com elas.

Eu não acredito que Deus abençoe particularmente uns em detrimento de outros. Não acredito em pessoas providenciais nem em super poderes nem em super papéis. Acredito na abertura pessoal - cheia de altos e baixos - ao que Deus vai pedindo a cada um, acredito na escuta, acredito na descoberta, acredito no caminho, acredito que Deus nos pede que sejamos despertadores, profetas, para que outros possam acreditar também. E não acredito no anonimato. Acredito em olhos e braços e palavras e pés e silêncios que se fazem especiais na partilha, que nos tornam especiais na partilha, uns com os outros, uns para os outros, conferindo e confirmando a amorosa dedicação que o Pai tem por cada um de nós.

Que me recorde, de entre as personalidades mais ou menos públicas, apenas me comovi diante da campa do Ir. Roger, de Taizé. Talvez porque esperasse um mausoléu do género daqueles que se destacam nos nossos cemitérios e o que encontrei foi um pedaço de terra mal amanhada, com uma cruz de madeira meio tosca e meia dúzia de pequeninas flores silvestres plantadas. E foi como que uma chapada na cara.

Deus fez-se pequeno. Por nós e para nós. Mas nós insistimos tanto na mania das grandezas! 

20230102


Os Dias de Reflexão que este ano orientei tinham um verbo forte: ver. Partíamos do extraordinário filme O Circo das Borboletas, que pode ser facilmente visto no youtube, encetando depois um diálogo em que abordávamos cada uma das personagens, tendo em vista aquela que é a personagem principal: Mendez. Na condução desse diálogo, a determinada altura fazia duas perguntas decisivas. A primeira era quem seria a personagem mais diferente de todas elas. Os mais apressados respondiam que era o Will, mas imediatamente percebiam a armadilha: estavam a relevar o imediato: a aparência física. A pergunta mais difícil, no entanto, vinha a seguir, quando lhes pedia um verbo para o que tínhamos acabado de ver e discutir. E o verbo é Ver "se pudesses ver o que existe sob as cinzas de cada um..."

Este blogue apela à minha maneira diferente de ver. Não é melhor nem pior, é muitas vezes diferente. E isso tem acarretado alguns dissabores na minha vida. Porque o meu olhar dirige-se instintivamente àquilo que existe para além da evidência. Digo muitas vezes que "sou muito olhos", isto é, a característica física que mais me interessa nas pessoas é sempre a profundidade do seu olhar. Mas isto faz com que, por exemplo, não faça a mínima ideia de que cor são os olhos das pessoas. E isso confunde muito as pessoas, levando-as a pensar que sou um tretas. Com a vida acontece-me o mesmo: reparo em pormenores que não interessam nem ao Menino Jesus e outros que são mais comuns - e porventura muitíssimo mais importantes, sobretudo para os próprios  - ainda que, eventualmente, repare neles, são facilmente esquecidos. Para mim, são meras circunstâncias que, tendo o seu peso, não constituem o fundamento de cada um, que me parece sempre muito mais interessante conhecer.

Em ambos os avatares, o que mais perenemente me ficou - para além da técnica - foi justamente o "eu vejo-te". É uma forma bonita de dizer a alguém o lugar que ocupa na vida: eu vejo-te, logo, tu és para mim. E poder ser, exatamente como se é, para alguém e ainda por cima ser gostado por isso, é um privilégio nem sempre devidamente apreciado.

Educar o olhar é absolutamente fundamental. Ver, com olhos de ver, ver com efeitos transformadores, ver para além do que se vê, ver o que ainda não é senão em potência de ser, é um dom. E uma responsabilidade. O que faço com o que vejo? O que faço com aqueles que vejo? O que faço ver aos próprios e aos outros?

Não espanta que o Papa Francisco apele tanto à nossa capacidade de ver. Porque isso retira-lhes o cinzentismo que faz com que as confundamos com a paisagem, dá-lhes cor, dá-lhes existência e, passando a existirem para nós, forçam-nos a agir, a considerá-las seres humanos. 

Não foi justamente isso o que fez Jesus com os que habitavam as margens?

Bambora

  Não é estranho que nos digam que «ser homem é muitas vezes uma experiência de frustração». Mas não é essa toda a verdade. Apesar de todos ...