20200331

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Uma das boas novidades deste tempo de reclusão é o que posso fazer com o tempo. Tento dedicar os primeiros momentos da manhã à informação, depois algumas horas ao trabalho, que, inevitavelmente, não me ocupa todo o dia. Então leio, vejo filmes, e, retomando um velho hábito que tinha desde miúdo mas que entretanto larguei, vou apontando aquelas  frases e pensamentos - dessas leituras e desses filmes - que me inquietam e escrevo a partir delas. Nos momentos em que o faço o tempo comprime-se, como se vivesse dentro de um parêntesis: por um lado retorno à infância e adolescência; por outro lado é como se antecipasse a reforma. Há quem precise de jardinar, há quem necessite de passear, há quem sinta o nervoso miudinho de não ver o mar. Eu preciso  de pouco: que os meus estejam bem, de uma boa net que me permita ler e ver, de um papel e caneta que me permita escrever, de fazer as minhas caminhadas em regime de namoro ou em regime de podcast solitário. Tendo isso, podendo ter e fazer isso, dificilmente darei os meus dias por desperdiçados.

20200330

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Estivemos ontem, mais uma vez, a assistir à eucaristia da minha paróquia pela internet. E, mais uma vez, assistir foi o termo correcto. No final da eucaristia fomos conversando acerca dela. A minha sogra, que assistiu connosco porque ligo o computador à televisão e ela pode ver e ouvir melhor, é pró nesta coisa de telemissas e levanta-se e senta-se e responde exactamente como se estivesse lá presente. Dissemos até na brincadeira - que ela não gosta, porque "Graças a Deus muitas; graças com Deus poucas" - que se houvesse maneira de distribuir a comunhão pela televisão ela colocaria a língua de fora para comungar. Nós temos outro tipo de atitude: sentados no sofá, meios a assistir, meios a participar, particularmente atentos apenas à homilia do nosso pároco, que nos ensina sempre imenso.
Enquanto a missa decorria eu pensei imensas vezes em como a "Querida Amazónia", a Exortação Apostólica do Papa Francisco, ficou tão aquém do que se pretendia. Agora que experimentamos as missas sem sacerdote, e à distância, agora que experimentamos a ausência da comunidade, agora que experimentamos a frieza da ilusória proximidade das telemissas, talvez consigas perceber um bocadinho melhor como as coisas podiam ser diferentes. Tal como discutíamos em casa no final da eucaristia, se no início da Igreja o que "fazia" a Igreja, o que era presença activa de Deus, o que era Sacramento, era a comunidade reunida para celebrar a Palavra de Deus, há qualquer coisa de muito estranho quando a comunidade está reunida, presente, a querer celebrar, e depois assiste, sem poder participar, à comunhão quase exclusiva do sacerdote. Há algo de inversão no meio de tudo isto, numa sensação de estranheza que eu apenas sinto porque estamos a viver uma situação inimaginável há poucas semanas atrás. Imagino, só posso imaginar, o que sentirá uma comunidade de fé num qualquer lugar recôndito do mundo, que se reúne para viver e celebrar e partilhar a fé, que é orientada por alguém com uma fé reconhecidamente madura, mas a quem é vedada a comunhão do Corpo e Sangue de Cristo porque esse alguém é casado ou mulher.
Creio que estes tempos, diferentes, nos fazem experimentar o diferente, e que bom seria se nos levassem a um caminhar diferente. Mais próximos das origens. E de Deus!

20200328

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Nunca conheci um Papa que vivesse tão dentro do nosso tempo como o Papa Francisco. Ao longo dos anos os Papas fizeram milhares de orações, publicaram milhares de documentos, fizeram milhares de homilias... às quais ninguém ligou patavina. Nem mesmo nós, católicos, que andávamos legitimamente entretidos nas nossas vidas e remetíamos essa parte para o "quando tiver tempo". Desde o século passado que todos eles tiveram a revolução da comunicação social à sua mercê mas preferiram sempre demonizá-la, ou ostracizá-la, ou remetê-la para as coisas supérfluas da sociedade. Todos os Papas do "meu tempo", isto é, do Papa Paulo VI ao actual Papa Francisco - com a óbvia excepção do Papa João Paulo I - foram visionários e operaram verdadeiras revoluções para que eu e os meus filhos possamos viver numa Igreja que, sem retirar a Trindade do centro, recolocou a Humanidade no lugar que Deus tinha escolhido para cada um de nós: perto de Si, ao alcance da Sua intimidade. No entanto, de todos eles, o Papa Francisco é quem usa com maior mestria não apenas a globalização das redes sociais, mas também - eu diria especialmente - a força da imagem. Ao vê-lo, ontem, em oração, pensei que nunca um homem sozinho esteve tão acompanhado. Cada uma das fotos divulgadas une, sem ser necessária qualquer palavra, a figura sozinha mas não solitária do Papa à nossa sensação actual que estamos sozinhos, nas nossas casas, mas não solitários. Arrisco afirmar que, naquela granítica e cinzenta caminhada do Papa, cada um de nós caminhava com ele, imersos nesta Humanidade inteira e atarantada, que ele carregava na sua e nossa fragilidade! Não havia melhor imagem para dar vida as suas palavras: Estamos todos no mesmo barco.... ninguém se salva sozinho.

20200327

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Hoje vi na televisão um homem curdo a dizer que rezava para que todos ficassem bem. E eu? Como rezo tudo isto? Como tenho rezado tudo isto? Tenho rezado? Quando rezo faço-o mais no sentido dos homens, isto é, pedindo a Deus que ajude os médicos e os enfermeiros e todos os outros a aplicar todos os seus conhecimentos, toda a sua humanidade, no tratamento das pessoas. Peço a Deus que ajude todos os infectados a confiar, a serenar, a ver que há Vida para além desta vida. Peço a Deus para que ajude os seus familiares para estarem presentes na confiança do infinito de amor. Mas toda esta medida do que peço é da ordem da humanidade: acreditar, aplicar, esperar, confiar... a um Deus que move montanhas não consegui ainda pedir para acabar com este vírus. Porque será? Será porque acredito que Deus não quer interferir na nossa liberdade? Será porque acredito que as coisas do mundo são separadas das coisas de Deus? Será porque não acredito que, afinal, Deus move montanhas? Será que as circunstâncias alteram a minha ligação com Deus? Será que a minha fé está a ser confrontada com a realidade?

20200326

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Organizo-me de maneira muito diferente da habitual. Não é já a obrigatoriedade que dita as suas regras, mas a vontade. O "ter que fazer" dá o seu lugar ao "dever fazer" e até ao "querer fazer", o que seria impensável há apenas 15 dias. E isto, para mim, que sou um barco com motor fora de bordo, exige um outro tipo de regras pessoais, de exigência interior, inusitada e porventura inaudita. Em circunstâncias normais prefiro ser arrastado a arrastar. Mesmo quando tomo a dianteira faço-o sob um esquema mental que começou na negação e terminou no "tem que ser". Mas essa dianteira responde sempre a estímulos exteriores, sobretudo quando esses estímulos adquirem a forma de confiança em mim e encontram eco no meu omnipresente medo de desiludir. Nada me desafia e desinstala mais que essa expectativa!
Agora é diferente! É como quando fico em casa com gripe. Nas primeiras horas, a felicidade da justificação da doença para pôr o sono em dia supera largamente as dores do corpo e o incómodo da própria gripe. Mais tarde, satisfeito o sono, passada a dor do corpo, o tédio toma o seu lugar ao meu lado, na cama. Ainda por cima há uma verdade insofismável que se repete nestas alturas: a televisão só dá coisas de jeito quando não temos tempo para as ver. E com ele o não saber o que fazer com o tempo.
Cumpre-se amanhã a segunda semana de reclusão. Já arrumei o que tinha que arrumar, já substituí o que tinha que substituir, já limpei, arranjei, fiz, li o que tinha sido adiado para as férias. Agora já não tenho que fazer nada. Agora apenas quero fazer algo. Que ninguém espera, que ninguém pressiona, que o tempo não exige, que a hora não programa.
Vamos a isso!

20200325

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Uma das manifestações de solidariedade nacional mais marcantes para mim foi por altura da questão de Timor Leste. Num determinado dia, creio que ao meio dia, combinou-se um minuto de silêncio nacional. Recordo-me que nessa altura eu ia na VCI e parou tudo, absolutamente tudo. Desligamos os carros, alguns de nós saímos deles, os camiões pararam, alguns deles buzinaram durante todo aquele minuto, que me pareceu, na altura, longuíssimo e extremamente emocionante.
Hoje, às 11:00, fomos para a cozinha da Vó. E rezamos o Pai-Nosso. Na Renascença, rezava também o Papa Francisco e, connosco, acredito que alguns milhares de pessoas.
Durante esta quarentena o extremo tem encontrado o seu lugar. As mortes são tantas e tão quotidianas que quase me anestesiam, pelo menos enquanto os meus não forem atingidos. Todos os noticiários, de todas as horas, de todos os canais de informação, tratam o COVID-19 até à exaustão. É tudo muito esquisito, inacreditável, de tão mau. às vezes penso que estamos ainda entorpecidos à espera que o filme acabe. Ao mesmo tempo, todos os dias, a todas as horas, as melhores manifestações de solidariedade, de empenho, de viver em função dos outros. Hoje um padre italiano prescindiu do ventilador que a paróquia lhe tinha dado para lhe salvar a vida, em favor de um jovem que estava ao lado dele. Exemplos como este há imensos, e significativos.
Acredito que tudo isto mudará alguma coisa em nós e na forma como vivemos a vida. E, otimista como sou, acredito que será para melhor.

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A vida já me ensinou que uma das sensações mais desagradáveis que tenho é quando me vejo na compulsão que defender alguém de quem gosto muito enquanto detesto algo que tenha feito. Isso acontece-me apenas com aquilo ou alguém que me é mesmo muito importante, que amo apesar de tudo, que apesar da imensidão de disparates que comete é para mim uma centelha de Deus. Infelizmente acontece-me muitas vezes relativamente à Igreja. Numa altura como esta é-me completamente incompreensível que se sobrevoe dioceses com o Santíssimo numa mão e a Nossa Senhora de Fátima noutra para se prevenir a doença. Não consigo entender as manifestações de fé que me parecem mais próximas da bruxaria que da fé. Até não consigo entender a preocupação do Papa Francisco com a absolvição global dos cristãos numa altura em que me faria amis sentido falar de esperança que de pecado.
Amar alguém, amar a Igreja, também implica algo deste tipo: amar aquela parte que não compreendo e que preferia que não existisse. Aliás, não faz sentido amar apenas aquilo que corresponde exatamente aos meus desejos, à minha compreensão, ao que cabe dentro dos meus esquemas mentais e emocionais. Porque, por um lado, eu, com a minha percepção, com os meus sentidos e sentimentos, sou a medida de coisa nenhuma. Depois, por outro lado, se amar fosse permitir apenas aquilo que cabe em mim, como poderia ser mais?

20200323

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Neste tempo de imensas novidades, ontem mais uma novidade. Familiar. Comunitária. Assistimos à eucaristia da nossa paróquia pelo youtube. Gostaria de dizer que, como de costume, tínhamos participado na eucaristia, mas na verdade não foi isso que senti. Apesar de estarmos em família, na sala, ao mesmo tempo. Faltou no entanto, imensa coisa. Diria até que faltou tudo o que normalmente fazemos ao domingo de manhã. Faltou o levantar cedo e ir buscar as rocas ao padeiro; faltou o sempre longo pequeno almoço dominical, que apesar de durar mais de uma hora acaba sempre em correria porque temos horas para a catequese e para o ensaio; faltou o cheiro, o som, o contacto com as pessoas dos domingos de sempre; faltou o ensaio, a vivência da eucaristia, os cânticos de cada momento, as orações uníssonas e as orações silenciosas; faltou o regresso a casa... manteve-se apenas a sempre extraordinária homilia do nosso pároco, mas desta vez com uma distância que me impedia o olhar e o contaminar da alma. Desta vez, terminou a eucaristia e encerrei o computador. Está muito longe de, sequer, me permitir imaginar que é a mesma coisa.
Muito dificilmente chamaria eucaristia a algo onde falta tudo. Creio que nestas alturas a palavra comunhão adquire uma outra importância, um outro sabor. Que, confesso que esqueço muitas vezes, é fundamental na minha vida.

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Olho para a programação da minha agenda. Esta seria uma semana repleta: reuniões, orações, eucaristias, Uma Noite ComTigo, Festa do Pai Nosso... como tudo é volátil!

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Uma das minhas esquisitices é que não sou muito dado a orgulhos nacionalistas. Mesmo no futebol, vibro muitíssimo mais com o meu FCP que com a seleção. Da mesma forma, muito dificilmente adiro às coisas das bandeiras nas janelas, particularmente se tiverem sido feitas na china e tiverem a esfera armilar mal feita.
No entanto, hoje de manhã, tive orgulho em nós, no nossos modo de ser português. A verdade é que ao longo desta semana o nosso quotidiano se transfigurou de uma maneira que eu não julgava possível acontecer em tão pouco tempo. Ficamos efetivamente em casa, abstemo-nos de participar em acontecimentos grupais, e acatamos as diretivas que nos são indicadas por aqueles de quem normalmente desconfiamos mas a quem concedemos essa autoridade moral. Mobilizamo-nos e aos nossos recursos pessoais e materiais, disponibilizamo-nos a ajudar, sem que seja ficando em casa. Passamos horas nas filas das farmácias e supermercados e rezamos todos, no silêncio, para que todos sejamos pouco afetados.
Ser parte de um país assim enche-me de orgulho. Não acontece muitas vezes.

20200319

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Fui muitas vezes contestado a propósito do uso das redes sociais. Particularmente na minha área de evangelização, junto dos mais novos, nunca consegui entender o temor que esta forma de comunicação levantava. Na verdade, sempre que discutia isso com alguém, cheirava-me mais a medo e preguiça que a qualquer outra coisa. Medo de um mundo transfronteiriço, inteiramente novo, e preguiça de aprender como se vive nesse mundo, onde a novidade é permanente e onde nós, os mais velhos, andamos sempre a correr atrás do prejuízo. Este mundo das tecnologias, que nós apenas visitamos, é na verdade o mundo que os mais jovens habitam, é lá que eles vivem, e é lá que os encontramos.
No entanto, apesar desta realidade, não é nesse mundo que os devemos deixar viver. É um pouco como se eles, os mais jovens, habitassem as margens e nós os fôssemos lá buscar para habitar a realidade. Porque - é isto é algo que muita gente não entendeu em mim - conhecer e frequentar as redes sociais não implica necessariamente que nos deixemos ficar por lá. Significa apenas que é lá que os encontramos. Mas que o encontro físico, o toque, barroca de olhares, o calor humano presencial, o abraço forte e o tom de voz - mesmo quando se gagueja- é absolutamente insubstituível para todos nós.
No domingo estive pela primeira vez numa eucaristia online. E esta semana numa oração de Taizé online. Face às circunstâncias que vivemos nesta altura, são alternativas razoáveis, mas são sempre, sempre, escolhas menores. Porque bom mesmo, seria ter estado na minha assembleia, na minha comunidade, com os meus, em oração.

20200318

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Mais uma manhã, mais um acordar com esta nova perspetiva de posse. É uma sensação enganadora, claro, porque nem o dia nem a vida se compadecem com posses, mas em mim é inevitável esta sensação mista de liberdade e procura.
Na verdade, todos temos andado ocupados. Eu não tenho - como a Isabel - aulas para dar nem trabalhos para corrigir a partir de casa, mas tenho mantido o contacto com os miúdos e com as minhas equipas. Um “bom dia” através das redes sociais, uma resposta bem disposta, uma brincadeira online que nos ligue a todos, são refrescantes, não tanto porque eventualmente cortam e dividem a solidão, mas sobretudo porque me traz à memória o sorriso de cada um. E isso é muito bom. Para todos nós.

20200317

covidisses

Dois dos nossos cinco filhos são médicos. Não são super-heróis. São profissionais. De corpo inteiro, dedicados, com um orgulho e entrega à sua profissão apenas equiparável à frustração que sentiam pela escassez de meios e pela desorganização com que todos os dias se deparavam. Sim, este é o tempo verbal correto. Porque agora não se queixam e não se sentem frustrados. Ao vê-los lembro-me dos soldados, ansiosos por chegarem à frente da batalha.

Outro dos filhos - filha - "mora" noutro campo de batalha. Para ela, jurista de formação e política de vocação - no que a política tem do dever de acautelar e cuidar a causa comum - a saúde é muitíssimo importante e em tempo de guerra não se limpam armas, mas... pensa sobretudo nos sobreviventes, no que ficará desta batalha, nas marcas quotidianas que transportaremos anos a fio, provavelmente décadas a fio. A sua preocupação maior é o efeito na democracia, se aproveitamos para nos voltarmos a fechar ou se reforçamos os sentido de comunidade; se as liberdades, tão duramente conquistadas, estão asseguradas, ou se retrocedemos ao início do século passado; se a economia nos permitirá viver, ou se a tudo será feito um reset, game over, wellcome to a new game, a new life. 

Manhã do segundo dia de covid.

20200316

covid

Hoje é, apenas, o primeiro dia. E parece já uma eternidade! Basta a ideia de ter que ficar confinado a um espaço - que é o Meu espaço, o Nosso espaço - para que o tempo corra mais devagar. Pela primeira vez, de há imensos anos, não sinto a obrigatoriedade do ter que fazer. Normalmente, mesmo em tempo de férias, tenho imensas coisas a cumprir: aproveita-se o tempo para fazer o que foi adiado, arquiva-se a imensidão de papéis acumulados em cima da secretária, mudam-se lâmpadas, fazem-se limpezas. No restante tempo cumpre-se a obrigatoriedade de descanso e diversão. Todo o tempo é, assim, tempo útil, que sinto a responsabilidade de rentabilizar, onde mesmo o “não fazer nada” cumpre o seu papel de nada fazer, faz parte. Agora, hoje, deparo-me com “ o que irei fazer com todo este tempo?”.
Se isso é assim no Meu espaço, no Nosso espaço, como se sentirá um presidiário?

20200312

de corpo e alma


Estávamos ambos em silêncio e eu apercebi-me que esse mesmo silêncio nos era confortável. E de como era incomum isso acontecer. E como é importante isso voltar a acontecer.

O silêncio é um excelente barómetro, porque é um amplificador, não de sons, mas de sentimentos. Quando estamos bem connosco próprios, quando sentimos que usamos a pele certa em cima do corpo, quando os outros nos são desejados e queridos, quando a harmonia acontece, o silêncio acentua essa mesma harmonia. Dispensam-se as palavras, a conversa de circunstância, e o diálogo acontece de dentro para fora, transbordando nos sentires, escasseando nos pareceres. 

Adoro quando essa é a sensação prevalecente. Quando a intimidade nos é tão transbordante que não precisa de ser artificialmente enchida, quando nos basta o pulsar do coração do outro, quando se consultam os olhos e os toques e tudo é carinho. Íntimo e profundo carinho.

Acredito que é este o ecossistema da intimidade. Quando eu sou eu, de corpo e alma, em ti.

20200310

silêncio



Ontem, na catequese, desafiei-os a ver o que tínhamos todos diante do olhar: uma tenda, uma fonte, um cântaro, uma cruz, uma ramo de videira. Lentamente, juntos, partimos à descoberta da quaresma e da páscoa, da dinâmica do provisório, do que somos e fazemos por cá. Acabamos na capela, por entre silêncios e conversas, a falar da vida, dos sacramentos, da morte, da santa unção, mais particularmente.

Por vezes provoco-nos esta espécie de abandono ao silêncio. Que, quando estamos juntos, desemboca inevitavelmente na procura e na descoberta intencional de Deus. Calculo o que se passará naquelas cabeças pensantes quando estamos em silêncio. No início devem fervilhar de testes e matérias, quando não são brincadeiras e parvas partidas pregadas. Mas se der algum tempo, se esperar, se resistir à tentação de abrir a boca, eles acabam por se sintonizar e por querer saber o que de verdade importa saber. E por perguntar. Então aí sim, é quando a catequese acontece, nuns escassos 10 minutos depois de terminar o nosso tempo, que eles roubam ao seu tempo porque querem saber. 

Enquanto olhávamos a tenda, escutávamos a fonte, ao frio, certamente se perguntaram o que faziam ali, se não poderíamos fazer a mesma coisa olhando a partir de dentro, do quentinho, do confortável. Vão sabendo, no entanto, que há coisas que apenas o desconforto físico permite perceber. E que há palavras que apenas ganham sentido quando inauditas, no silêncio do encontro.

A de Deus, por exemplo.

20200306

deserto


Creio que gostaria de fazer uma experiência de deserto. O mais próximo que estive foi um retiro de três dias de silêncio. E gostei imenso! Poder estar apenas com os meus pensamentos e as minhas orações, não ter que elaborar para partilhar, preocupar-me apenas em receber os ensinamentos de quem orienta os trabalhos, não é muito comum na minha vida pessoal e de fé, o que muitas vezes me leva a ansiar essa experiência de solidão. Claro que a solidão voluntária nada tem a ver com a solidão imposta, pelo que havia, na minha experiência de retiro, uma espécie de artifício que implicava que a solidão tenha necessariamente um peso muito menor. Até porque a solidão era apenas interior, uma vez que estava em retiro com outros.

Uma das melhores memórias que tenho do retiro nada teve a ver com o retiro em si. Como aconteceu numa altura em que estava cheio de trabalho e de noites mal dormidas por causa do trabalho, recordo o conforto que foi poder dormir sempre que quisesse. Recordo-me que apenas ao fim de dois ou três somos fora de horas consegui a concentração e a vontade necessárias para poder rezar o que me era pedido para rezar. Curiosamente, em Taizé aconteceu-me isso mesmo. Apenas ao final do terceiro dia conseguia aguentar o silêncio da oração sem sentir o esforço de me manter acordado. E apenas aí a oração começou a frutificar. Uma das descobertas que o silêncio me impõe é justamente a sua exigência física: o corpo precisa de estar bem para que a alma possa dialogar.

Talvez seja por tudo isto que gostaria de fazer uma experiência (controlada) de deserto. Poder ser eu e apenas eu a pautar os ritmos, as horas, os pensamentos e procedimentos soa a tentação quase irresistível.

Ainda que, com toda a probabilidade, ao fim de uma hora já estivesse cheio de vontade de regressar aos meus.

20200305

rezar





Há, no ver a rezar, uma experiência de comunhão que ainda me é difícil entender e explicar. 

Entramos na Capela do Silêncio, em Taizé. Agora remodelada, a Capela do Silêncio faz ainda mais jus ao seu nome. Não somos já perturbados nem pela pancada da porta a abrir e fechar, nem pela invasão da luz exterior num espaço que é permanentemente pouco iluminado. Tudo aqui privilegia o Encontro. A luz baixa, o silêncio sepulcral, a forma como todos se deslocam, fazem com que qualquer movimento, qualquer som, por ínfimo que seja, perturbe. Em conversa com um dos nossos miúdos ele dizia que se tinha sentido mal lá porque o som do fecho a abrir o seu estojo lhe era quase insuportável. Na realidade, tudo ali nos conduz ao silêncio, ao nada dizer, ao nada fazer, ao simplesmente escutar, a mais das vezes o diálogo ensurdecedor que apenas acontece dentro da nossa cabeça. 

Entramos na Capela do Silêncio, em Taizé. A um canto estava o indivíduo da foto, em silêncio, de olhos fechados, presumivelmente a rezar. Não o conheço, não o tinha visto antes, e provavelmente, ainda que nos reencontremos algures na vida, não o reconhecerei porque na verdade nada mais vi senão o seu perfil. Não sei se é católico, protestante ou ortodoxo. Não faço ideia sequer se é homem de fé ou se apenas se foi abrigar da chuva intensa que caía lá fora. Não conheço o seu percurso de vida, os valores por que se pauta, se é de esquerda ou direita, a sua orientação sexual, os seus defeitos e virtudes. Dele, nada sei e, com toda a probabilidade, nada saberei. 

E, no entanto, é imenso o que nos une!

20200304

propósitos


Nunca fui muito de propósitos quaresmais. Como nunca percebi porque se faziam apenas nesta altura e não sempre - se eram assim tão importantes, porque não mantê-los? - nunca me dei ao trabalho de os fazer e muito menos de os cumprir. No entanto, na prática o que acontece é que nem os faço na quaresma nem os faço em qualquer outra altura e os propósitos acabam por me passar ao lado.

Este ano, no nosso grupo de reflexão em Taizé, estava um padre, excelente, por sinal, que nos falou do seu propósito quaresmal. Como havia entre nós quem não entendesse a sua utilidade, ele lá explicou a importância, para ele, de ter um período da vida em que se provava a si mesmo ser senhor do seu corpo não cedendo a vícios. Depois, mais tarde, retomava-os, mas com a certeza que era ainda ele quem mandava. 

Hoje veio-me parar ao olhar o texto quaresmal do papa Francisco do ano passado. A certa altura ele escrevia a importância do seguinte: "Jejuar, isto é, aprender a modificar a nossa atitude para com os outros e as criaturas: passar da tentação de «devorar» tudo para satisfazer a nossa voracidade, à capacidade de sofrer por amor, que pode preencher o vazio do nosso coração. Orar, para saber renunciar à idolatria e à autossuficiência do nosso eu, e nos declararmos necessitados do Senhor e da sua misericórdia. Dar esmola, para sair da insensatez de viver e acumular tudo para nós mesmos, com a ilusão de assegurarmos um futuro que não nos pertence. E, assim, reencontrar a alegria do projeto que Deus colocou na criação e no nosso coração: o projeto de amá-Lo a Ele, aos nossos irmãos e ao mundo inteiro, encontrando neste amor a verdadeira felicidade."

Eu leio quase todos os escritos do Papa. O que não significa que os incorpore todos. Hoje, ao ler aquilo que já tinha lido no ano passado, encontrei um eco diferente. Talvez porque conversamos acerca disso em Taizé, talvez porque a minha disposição interior seja um pouco diferente, talvez porque a minha necessidade seja outra, talvez por causa da maturidade, seja lá porque for, o que importa é que o que há um ano me passou despercebido, hoje faz sentido.

Ao ponto de, pela primeira vez, ter feito alguns propósitos para esta Quaresma.

Se os cumpro, é outra conversa.

20200303

simples e serena


Ficaram espantados quando lhes disse que gosto mais de mim em Taizé. "Não devia ser assim:" Não, não devia. Na verdade, num mundo ideal teria sempre tempo para começar o dia a meditar as leituras, teria sempre formação bíblica, teria sempre alguém muito interessante com quem aprender, teria sempre imenso tempo para me poder reencontrar, para passear, para apreciar devidamente a beleza da natureza e a vida que Deus coloca à minha disposição todos os dias. 

Creio que gosto mais de mim em Taizé porque estou mais sintonizado. Em Taizé tudo me encaminha para a vivência natural, simples, enraizada da fé porque tudo gravita à volta do encontro profundo. Não é que as minhas atitudes se alterem radicalmente, que os meus pensamentos sejam mais santos, que eu seja uma pessoa diferente. É mais porque tenho a consciência da pessoa que sou, da Palavra com que me meço e, reconhecendo-me com maior evidência, reconheço mais facilmente o amor que o Pai me tem. E recordo como é viver no amor e na simplicidade.

Refiro muitas vezes que desde pequenito armazeno livros para ler quando for reformado. Começo agora a reservar vidas para quando for reformado. Vidas simples e serenas, imerso numa natureza que e vai parecendo cada vez mais bela, alicerçado num sereno e permanecente amor que me é cada vez mais precioso. 

E a verdade é que isso de reveste a ânsia de futuro de tremendo otimismo.


Bambora

  Não é estranho que nos digam que «ser homem é muitas vezes uma experiência de frustração». Mas não é essa toda a verdade. Apesar de todos ...