20150528
Olhava-a e continuava a ver aquela expressão traquina que sempre a acompanhou e que o tempo não conseguiu ainda desfazer. Olhos vivaços, sorriso fácil - quando não está num dos seus terríveis acessos de mau génio - sempre a medir-nos enquanto nos fala, sempre a pesar o que lhe dizemos, como lhe dizemos, como a acolhemos, sempre à procura de alguma acusação implícita. Apenas baixa a guarda quando se certifica que continuamos a gostar dela, apesar do tempo, apesar das asneiras, apesar do seu encolher de ombros. Fala-nos da sua última experiência, a dançar em bares, como a mãe dela fazia, como nós sabíamos, desde pequenina, que viria a fazer, porque aquela miúda nasceu para dançar, revela-se a dançar, e fazê-lo em bares é um caminho demasiado fácil e evidente para que possa ter sequer considerado outra alternativa. Fala-nos com um sorriso nos lábios e dor no olhar. Inteligente, como sempre foi, sabe que corre o risco de chumbar o ano, fruto das noites mal dormidas, do dinheirinho no bolso, das companhias que - sabe-o bem - a usam. Às tantas remete-nos para o muito que vivemos juntos "aquelas colónias... eu fazia-vos a vida negra... portava-me tão mal... era tão bom!"
Olho para a Isabel e percebo que falta pouco para rebentar. Se há algo que a move é uma vida que corre o risco de se ver desperdiçada. Ainda por cima, esta pede, sem pedir, para ser salva. Mal a miúda sai para conversar com outros de nós, a Isabel começa a contactar com quem a poderá ajudar, começa a delinear um plano de ação, uma saída, para que este ano letivo não seja ainda um ano perdido, para que possa completar ainda este ano o 9º e enveredar por um ensino profissionalizante na área da dança, ou do teatro, ou de qualquer outra coisa que leve aquele miúda a ser novamente uma miúda, que a ajude a não desperdiçar o enorme talento que tem. Passada meia hora, já tinha aulas de apoio marcadas com professores da especialidade, já tinha conversado com a professora de dança para a integrar no nosso seio, já tinha conversado com as restantes miúdas do grupo para a acolherem devidamente, e quando se voltou a sentar com ela, deu-lhe já outras possibilidades de futuro.
Quando veio ao nosso encontro sabia bem ao que vinha. Sabia que a escutaríamos, que tudo faríamos para a ajudar, sem criticar, sem apontar o dedo, preocupados apenas com o seu presente, concentrados apenas no seu futuro. Disse-me a Isabel que, quando saí de junto delas para tratar de outras coisas, ela lhe disse que gostava muito de nós, porque desde pequenina que tinha visto que gostávamos mesmo um do outro, e que tinha sido também isso que a levara a procurar-nos. Temos muitas maneiras de ser para os outros. Acredito que as melhores e as mais importantes nos são invisíveis, inconscientes até, mas que transpiram de nós com a mesma naturalidade do suor do nosso corpo. E fiquei feliz. Pela miúda, claro. E porque aquela casa tem vindo, lentamente, paulatinamente, de forma segura, a cumprir o motivo pelo qual nasceu: dar vida a quem já não confiava nela.
20150525
Parei de repente. A escutar. Abismado pelo silêncio, apenas entrecortado pelo suave bater das ondas, inundado pela súbita e inusitada tranquilidade. Na minha cabeça, apenas o salmo "Eu Vos louvo, Senhor. Vós Sois a minha força". Prossegui caminho. Procurava motivos para esta sensação tão contrastante com aquela que sentira, no mesmo lugar, praticamente à mesma hora, na semana anterior. Enquanto hoje tudo era harmonia, na semana passada tudo era turbilhão. Seria do que me rodeava ou de mim? Só podia ser de mim, claro. Afinal, era o mesmo sol, a mesma manhã, as mesmas ondas, o mesmo silêncio fora de mim. E era o silêncio dentro de mim, e isso sim, fazia toda a diferença.
Todos os dias faço dois percursos que, apesar de distanciarem entre si escasso metros, são completamente diferentes. Vou mesmo junto ao mar, regresso pela avenida. O meu estado de espírito em cada um deles é completamente diferente. O primeiro, feito na companhia das ondas e das gaivotas, remete-me para a oração e reflexão interiores. Não há qualquer outra paisagem que não seja a do mar. Louvo a Deus, por vezes rezo o terço, penso nos meus dias, nos meus amigos, nas pessoas que amo. É a minha fase Zen. Depois, para regressar, subo 4 metros e estou num outro mundo, completamente diferente. Cheio de pessoas, umas a caminhar, como eu, outras a correr, cheio de carros - belos carros! - e de casas - belas casas! - é a minha fase euromilhões. Olho as pessoas e as máquinas e os apartamentos à venda e imagino-me a viver ali, com aquele dinheiro, com aqueles carros, com aquele tempo todo para fazer o que bem me apetecia. Mas passa-me dpressa porque aquele é também o tempo de regressar mentalmente ao trabalho, de me preparar para o dia que me espera, de conceptualizar reuniões e esquemas e processos.
Interiormente, o que vai é muito diferente daquele que regressa. Sou o mesmo, no entanto. Hoje, quando ia, estava tão feliz que me apetecia desejar os bons dias a quem por mim passava. Como não tinha lata para isso, enviei alguns sms a pessoas que, apesar de não estarem lá, caminham muitas vezes comigo. Ia com aquilo que eu chamo o "peito cheio", a usufruir intensamente do que me rodeava, saboreando plenamente o que me preenchia. Quando voltava, preparava o meu dia, recordava o que tinha que fazer, os compromissos que me esperavam. Não vinha menos feliz, porque adoro o que faço, mas era um outro registo: mais sério, mais concentrado, mais responsável.
Todos nós temos as nossas próprias danças. Todos nós temos as nossas vidas interiores que, uns mais outros menos, tentamos descodificar. Todos nós temos percursos, mais ou menos sinuosos, que nos levam a ser quem verdadeiramente somos. Mas bom mesmo, é sentirmos que temos com com quem os podemos partilhar. Termos quem nos ame o suficiente, quem se interesse o suficiente, para nos ajudar a descobri-los, para nos ajudar a percorrê-los, estando fisicamente presentes ou não. Isso sim, é o que faz a diferença nos meus dias.
20150523
"Os Alquimistas fazem isso. Mostram que, quando procuramos ser melhores do que somos, tudo à nossa volta se torna melhor também."
O Alquimista, Paulo Coelho
O "hoje e apenas hoje", o "aqui e agora", sempre me foi extremamente sedutor. Perigosamente sedutor, diria. Poder ser, fazer, dizer o que se quer e como se quer, como se não existisse amanhã, como se não tivesse existido ontem, na mais pura das inconsciências, afigura-se-me quase como um paraíso de liberdade. No entanto, um olhar mais atento (normalmente vindo de fora) permite-me sempre concluir que não é isso que me torna mais humano.
No último encontro do ComTigo andamos à volta do PermaneSer. Seguíamos, como temos feito ao longo de todo o ano, as escolhas do Bom Samaritano, incidindo desta vez no que ele fez que eu nunca faria. Num dia bom, até poderia não passar ao lado, até poderia não fazer de conta que não via, até poderia ir até ao caído e ver o que tinha. Mas, mesmo nesse dia bom - e tinha que ser mesmo bom! - o provável é que me limitasse a chamar o 112 e a ficar lá enquanto ele não chegasse. E depois, naturalmente, afastar-me-ia, com as mãos limpas e a consciência lavada. Provavelmente chegaria a casa e, ao jantar, contaria o que acontecera, provavelmente com uma ponta de orgulho mal disfarçado, por ter feito algo de relevante por alguém. Mas muito dificilmente, muito provavelmente nunca, em caso algum, pegaria nele, o meteria no meu carro, o levaria a uma clínica privada, pagaria as suas despesas do meu bolso, e prometeria ainda voltar no dia seguinte. Eu sei lá quem era o homenzinho, se ele tinha merecido ou não, se ele tinha sido descuidado ou não, se ele estava bêbado, ou drogado, se ele me iria pedir o que quer que fosse... Como poderia deixar alguém entrar assim, sem bater, na minha vida?
Há uns meses, estava a sair para dar a minha volta do costume, quando me apercebi que algo tinha acontecido a poucos metros. À medida que ia ao encontro do sucedido, rezava para que não tivesse acontecido nada de grave, ou a ter acontecido, que pelo menos não fosse alguém conhecido, e, em último caso, a ter mesmo que acontecer, que pelo menos estivesse lá já quem apoiasse, quem me permitisse seguir o meu caminho sem qualquer problemas de consciência. Como sempre aconteceu no melhor da minha vida, não era o que eu deseja que acontecia: era o que me chamava. Era grave, era uma amiga, e eu fui o primeiro a chegar junto dela. E junto dela permaneci enquanto a ambulância não vinha, acompanhei-a ao hospital, e com ela fiquei até ter que a deixar. Durante todo o tempo em que estivemos juntos via a gratidão no seu olhar - até porque ela a repetia imensas vezes! - e pedi-lhe várias vezes que ela se deixasse disso. Não por falsa modéstia - mal de que não sofro - mas porque era imerecido. Porque tinha a sensação que, tivesse eu tido escolha, e provavelmente teria seguido o meu caminho.
Sempre tive a noção clara que gostaria de ser o que não sou. Gostaria de ser intrinsecamente bom, como algumas pessoas que conheço, que nunca sentem necessidade de se questionarem acerca do caminho a seguir, que nunca colocaram outra possibilidade que não fosse a de cuidar do caído. Gostaria de ter raízes fortes e seguras, de ter uma âncora ou outra que me mantivesse feliz no meu lugar sem querer saber se há mais mundos neste mundo. Gostaria de não ter que importar tudo o que verdadeiramente importa mas de o encontrar cá dentro, sempre cá dento, permanentemente cá dentro, sem ter que ser alvo de uma procura constante. Gostaria de ser mais João e menos Pedro, mais Paulo e menos cireneu, mais serenidade e menos busca, e menos, muito menos, acaso.
20150520
"... o deserto é tão grande, os horizontes ficam tão longe, que fazem a gente sentir-se pequeno e permanecer em silêncio. (...) Todas as vezes que olhava para o mar ou o fogo, era capaz de ficar horas em silêncio, sem pensar em nada, mergulhado na imensidão e na força dos elementos."
Regressei, brevemente, ao Paulo Coelho. Os meus filhos gozam-me, claro. Talvez um dia entendam como por vezes é importante colocar de lado os calhamaços das coisas importantes e voltar às coisas simples. Eu faço-o algumas vezes. Quando me sinto mais perdido na azáfama quotidiana, quando preciso de voltar a pensar e a sentir o belo, quando me apercebo demasiado mergulhado na agenda, sem tempo para tudo aquilo que não é trabalho, sem disponibilidade interior para o que me faz crescer. Imponho-me fazê-lo, forço-me esquecer, ainda que por breves momentos, o que é imperativo para me ligar ao que é essencial. Paulo Coelho é apenas uma etapa, um pretexto, se calhar um refúgio, assim como o são Richard Bach ou Saint-Exupery. Nunca pego neles por muito tempo, apenas o suficiente para me recordar do que é importante na vida, que as pessoas são pessoas, não são apenas trabalho, e que o barulho do mar e o silêncio e o frio e o vento, ou uma boa conversa, um sorriso, uma partilha de coisa nenhuma, são tão importantes quanto um trabalho bem feito para que me possa deitar e sentir que o meu dia valeu a pena.
É-me muito importante regressar às coisas simples e pequenas. Quando levo as coisas demasiado a sério acabo sempre por me levar demasiado a sério, e isso é meio caminho andado para a asneira. Se estiver numa fase boa fico demasiado cheio de coisa nenhuma, se estiver numa fase má, fico cheio de nada. É puro desperdício. No fundo, trata-se de não inventar, de me confrontar com o imenso que me rodeia, de me recordar o que verdadeiramente quero na minha vida, o que verdadeiramente me faz feliz, sacudindo o pó dos dias e assentando os pés no chão. No fundo, trata-se de reencontrar. Pessoas. Fundamentalmente, pessoas. Que valem a pena, que me fazem feliz, que me deixam saudades e me despertam uma vontade imensa de regressar ao onde e ao como sempre fomos felizes. Juntos.
20150519
Na semana passada não consegui caminhar, Nenhuma manhã. Fosse por causa do tempo, fosse por causa do trabalho, fosse porque fosse, não consegui começar nenhuma manhã como gosto. Hoje, finalmente, consegui-o. E tinha feito já mais de metade do percurso quando a cabeça começou, lentamente, a serenar. No turbilhão que têm sido estes últimos dias, tenho sentido a falta desta rotina matinal, que me permite o reencontro no silêncio. Silêncio é apenas uma forma de expressão, porque há algum tempo que não caminho sozinho. Expressões como muros e equilíbrios, desafios e centros, têm caminhado comigo, devidamente acompanhadas por outras caminhadas feitas de olhos e sorrisos e tons de voz. Típico de quando sinto que os meus fundamentos são abalados e precisam de uma recauchutagem. Que leva tempo. E que, em boa verdade, gosto de saborear devidamente.
No fim da semana passada fomos para o Magoito com o ER. No programa estava a primeira abordagem à oração, com aqueles miúdos, para quem Jesus é pouco mais que o treinador do Benfica. Para começo de conversa, mostrei-lhes a Bíblia e disse, simplificando, que para nós, cristãos, aquele é o nosso relógio, é com ela que tentamos acertar a nossa vida. Que na Palavra conseguimos saber como devemos ser e sabemos que, apesar de nunca o conseguirmos, temos sempre alguém que nos ama, quanto mais não seja pelos nossos esforços em tentá-lo.
Hoje caminhei à volta disto. Afetivamente, no quotidiano, descubro-me muito nos outros, no que vejo, no que aprendo, no que tento copiar, no que não quero copiar, os outros são muito a minha medida. Como tenho tido a sorte de viver rodeado de vida, de gente muito comprometida apesar das suas origens e destinos completamente díspares, essa tem sido uma boa e confiável medida. No entanto, racionalmente, no silêncio, quando paro para me encontrar, a minha medida é outra, e é com ela que eu tento pautar a minha vida. Quando tenho alguma dúvida mais profunda, quando sinto - me fazem sentir, na verdade! - que os meus alicerces precisam de uma reformulação, é à Palavra que recorro, é em Zaqueu e nos samaritanos, é em Madalena, e no meu recente Isaías 58, 9-12, que me encontro, e me revejo, e tento ganhar forças e sabedoria para conseguir mudar sem medo.
20150514
Lia hoje, algures, qualquer coisa acerca da arte de fechar portas. Que terminava com qualquer coisa do género de não se dever deixar portas entreabertas. Ou entrefechadas. Não consigo perceber o que isso seja.
Nunca soube gerir relações. Provavelmente porque não me preocupo minimamente em ser racional quando me sinto ligado a alguém.
Há pouco tempo disseram-me que deveria cuidar melhor daqueles de quem eu gosto e eu tenho andado muito à volta disso O que significa cuidar melhor daqueles de quem gosto? Significa preservar-me nas minhas amizades? Significa escolher o que digo, o que faço, a forma como digo e faço? Significa não olhar quando quero olhar, não dizer quando quero dizer, fazer de conta quando não encontro qualquer motivo para fazer de conta? Significa gerir momentos e palavras e gestos e atitudes para que não possam ser mal interpretados, para que não possam criar expectativas que depois serão inevitavelmente defraudadas?
Mas, e se eu nunca tiver querido criar expectativas? E se eu me tiver limitado a aproveitar o momento, a viver a partilha, a saborear a conversa, sem com isso pretender nada mais que justamente aquilo que acabou de acontecer?
E se eu, ao longo da minha vida tiver finalmente percebido que é a sucessão das partilhas, das conversas, dos momentos bons que solidificam a amizade, e que a gestão das expectativas fazem parte de um outro campeonato, de um outro tipo de relação, que pressupõe um qualquer tipo de amarras, de compromisso, de permanência?
E seu eu estiver convencido que o que vale na amizade é justamente essa ausência de ter que ser, é o ser apenas pelo mútuo gozo de sermos, é o estar apenas pelo mútuo gozo de estarmos, naquela altura, naquele momento, naquela conversa, naquela caminhada.
E se eu tiver aprendido que é na medida em que estamos ambos, em sintonia, naquela conversa, naquela partilha, sem amarras, sem qualquer outro compromisso que não seja o da preservação do que é dito e vivido e sentido, sem qualquer outro objetivo que não seja o de estarmos, o de sermos, o de aprendermos, juntos, a dividir o que nos vai na alma, e que é na medida em que estamos ambos, uma e outra vez, numa e noutra altura, que nos construímos mutuamente no amor profundo da amizade, que nos solidificamos enquanto amigos autênticos, verdadeiros, raros, e - aí sim - permanentes?
E se eu estiver convencido que a exigência, o compromisso, a amarra, são nomes diferentes da imposição, que entre nós não deve encontrar lugar, não deve ter lugar, porque, por si só, contradizem a liberdade imprescindível a quem ama?
E se eu...
Pois. E aqui paro. E se a questão está justamente no "e se eu..."? E se tu tens razão e eu começo todas as frases, ditas e não ditas, ditas e silenciadas, por "e se eu"? E se tu tens razão e eu teimo em me colocar no centro? E se tu tens razão e vejo tudo à minha medida, vejo todos à minha medida, ajo sempre à minha medida, sem me preocupar minimamente com o impacto que o que vejo, digo ou faço tem nos outros, particularmente "naqueles que amas"?, como me disseste? E se eu não protejo, efetivamente, aqueles que eu amo?
20150513
Vinte e cinco anos! Se mo tivessem dito antes, teria dito que seria impossível! Eu morria de medo. Tenho ainda bem presente a nossa decisiva conversa, motivada pelo meu medo do compromisso, pelo meu medo de falhar, e da sua decisiva resposta. Tenho ainda bem presente aquilo que pensei, na altura, quando me apercebi que tinha diante de mim, pela primeira vez, alguém que me amava mesmo, e que estava disposta a tudo por mim. Tenho ainda bem presente aquela sensação de quem tudo pode e da enorme responsabilidade que senti logo a seguir, de quem descobre que agora é a sério, tenho uma vida entre mãos que não apenas a minha, e quero muito cuidar dela para sempre. Para sempre! Sempre senti que para sempre é muito tempo, demasiado tempo, por isso preferi substituí-lo por todos os dias. Dá a ilusão de custar menos, dá a ilusão do recomeço permanente, da reconstrução permanente, da novidade permanente, sem contudo retirar tudo o que fica, o imenso que vai ficando, momento após momento, dia após dia, ano após ano.
Ontem, a determinada altura, diziam-me que certamente teria sido mito difícil. Já mo tinham dito outras pessoas, há bem pouco tempo, à medida que caminhávamos rumo a Fátima. Desminto sempre essa dificuldade. Porque nunca a senti, verdadeiramente. Claro que se falamos em termos financeiros, ter cinco filhos é muito. Mas é quase o único aspeto em que é muito. O outro é o da falta de sossego. Mas fora isso, o segredo está em manter a vida aberta à vida, não fazer mais planos que aqueles estritamente necessários, e mesmo assim, relativizar esses, e estarmos sempre disponíveis para acolher de braços abertos o que a vida nos for dando.Tivemos momentos difíceis, como toda a gente, mas nessas alturas nunca nos faltou quem estivesse ao nosso lado e nos ajudasse, nos escutasse, nos aconselhasse, e nos desse forças para irmos seguindo em frente. Tivemos também, em determinadas alturas, a capacidade de esperarmos um pelo outro. Esperarmos que o juízo finalmente voltasse, que as doses de loucura fossem ficando mais pequenas, que a telha passasse, que o amuo desse lugar à conversa, que a nossa surdez seletiva funcionasse e nos permitisse esquecer o que nos foi dito com os ânimos mais exaltados. Sei lá, há tanta coisa e tanta vez que se espera um do outro ao longo de todos estes anos que seria impossível enumerá-las a todas.
Não se vivem vinte e cinco anos intensos, como nós vivemos, sem termos que lidar com algumas ruturas, algumas mudanças profundas, que exigem alguns ajustamentos, uns mais violentos outros nem tanto, mas quase todos com algum nível de dor implicada. Não se vivem vinte e cinco anos intensos a acreditar em contos de fadas, sem pés bem assentes no chão, sem nos questionarmos algumas vezes se vale a pena, se é mesmo isto o que queremos, sem nos perguntarmos se não estaremos a abdicar em demasia de nós próprios, sem duvidarmos do seu amor e redescobrirmos esse amor logo depois, e fazermos as pazes, mais uma vez, e outra. Não se vivem vinte e cinco anos intensos sem deixarmos algo pelo caminho, sem ganharmos algo pelo caminho, sem construirmos algo pelo caminho e nos identificarmos com isso, e deixarmo-nos de nos identificarmos com isso, sem discutirmos uma e outra vez o que vamos deixando e ganhando e construindo, uma e outra vez, uma e outra vez. Não se vivem vinte e cinco anos intensos sem adormecermos no cinema, sem avaliarmos mal o que é tão importante para o outro, sem ouvirmos, pela enésima vez, que não fizemos qualquer coisa bem, sem nos apercebermos que afinal estávamos enganados e aquilo não é assim tão importante, sem termos que fazer os ajustamentos necessários, uma e outra vez, uma e outra vez. Não se vivem vinte e cinco anos intensos sem amar, amar muito, amar muitíssimo, sem nos emocionarmos com o seu sorriso, com as suas lágrimas, sem sentir a sua dor exponencialmente multiplicada pelo imenso amor, sem desejar muitas vezes que antes fosse eu, antes fosse comigo, sem nos embevecermos em silêncio a olhar enquanto dorme, sem redescobrir o mundo no seu olhar, no seu sorriso, no seu sei lá o quê, sem o prazer de uma boa conversa, de uma boa caminhada, sem o deslumbramento de nos sentirmos tão intensamente amados, sem aprofunda admiração enquanto pessoa, enquanto ser humano, enquanto tudo aquilo que se deseja na pessoa com quem partilhamos o sonho do futuro.
Não se vivem vinte e cinco anos sem muita vida, com tudo aquilo que a vida implica, porque se assim não for, esses vinte e cinco anos não se vivem... passam por nós. E isso é puro desperdício!
20150512
Li apenas o título, é certo, mas ainda assim não quis acreditar. Parece que vai haver uma vacina para crianças com comportamentos problemáticos. Que vai começar a ser testada em Coimbra. Em crianças entre os três e os seis anos. Com desvantagem social e económica. Leio e não acredito.
Trabalho num lugar onde abundam as crianças com comportamentos problemáticos. Que herdam todos os dias dos pais, dos avós, dos tios, dos vizinhos e, a partir de determinada altura, dos professores, dos funcionários, dos educadores. Não admira. Não têm quem copiar, os exemplos vão todos no mesmo sentido, e não conseguem quebrar o ciclo.
Quando ele era pequeno eu dizia aos meus filhos, meio na brincadeira, que provavelmente ele viria a ser serial killer. Hoje, é meu colega de trabalho. É meu amigo. É nosso professor. Trabalhamos na mesma sala o ano passado e às tantas apercebi-me que o único que levantava a voz e se zangava era eu. E que o único que impunha respeito e levava a água ao nosso moinho era ele. E propus-me observar mais, copiar mais, aprender mais. Com ele. E aprendi. Hoje, é quase raro levantar a minha voz. É quase raro sentir necessidade de o fazer. Prefiro fazer como ele faz: baixar-me, colocar os meus olhos ao nível dos seus e falar o mais calmamente possível, firme, mas docemente. Sem ameaçar. E, lá pelo meio, dizer-lhes que gosto deles. E fazê-los sentir isso. É remédio santo. Acalmam, justificam-se e tentam não nos desiludir.
Educar é provavelmente a tarefa mais difícil. Porque, por muitos cursos que se tenha, por muito que se estude, por muitas teorias que encontremos, é olhos nos olhos que temos que o fazer. As teorias são importantes, os especialistas são importantes, mas nada substitui o olhos nos olhos, o mão na mão, a sintonia entre duas pessoas que aprendem e ensinam juntas. Nada substitui isso.
Sei que há casos e casos. Também nós temos algumas - poucas - crianças que precisam ser medicadas para se defenderem delas próprias. Sei também que para muitos pais, que vivem situações aflitivas, que nunca tiveram formação, que não sabem como hão de fazer, e o que hão de fazer, a medicação é a única possibilidade de uma vida minimamente razoável. E que se assim não fosse quem perderia mais seria a criança que, como antigamente, seria corrigida à força de pancada. Mas temo sempre muito estas medidas de normalização comportamental. Cheiram-e sempre a outros tempos, a outras ideologias, a outros perigos, imensos, que não quero, de forma alguma, ver repetidos. Qualquer que seja o pretexto.
Dêem-se as condições para amar e as coisas serão diferentes. Eu aposto muito nisso. Nós apostamos muito nisso. E temos tido bons resultados.
20150511
Não é verdade. Não aprendi isso ontem. Aprendi isso há muitos anos, no meu primeiro emprego numa oficina de pneus, quando me puseram de castigo a varrer, durante dias, uma garagem enorme, de um condomínio, cheia de terra. Deixavam-me lá de manhãzinha, apenas com a maramita, e iam-me buscar era já noite. Foram quatro dias assim, fechado numa imensa garagem de São Mamede de Infesta, sozinho, para varrer algo que me parecia impossível ser varrido. Lembro-me que só pensava num cartoon do pateta que tinha lido pouco tempo antes, que, castigado como eu, tinha sido incumbido de varrer todos os ladrilhos da estrada que ligava Jerusalém a Roma. Quando o Mickey lhe perguntou como conseguia, ele respondeu "é fácil: varres um ladrilho, respiras fundo, varres o seguinte, respiras fundo, varres o seguinte..." e varria aquele metro quadrado, respirava (não muito fundo por causa do pó) e passava para o metro quadrado seguinte. E repetia-me muitas vezes que aquele dia haveria de terminar, e que no final do dia, acontecesse o que acontecesse, voltaria para casa. E amanhã seria um outro dia.
Este "amanhã é outro dia" visita-me sempre que alguma situação me é insuportável. Foi assim quando a minha filha mais velha foi para o hospital, foi assim quando o meu sogro morreu, foi assim quando a minha vida ficou de cabeça para baixo, e será assim, com toda a certeza, quando algo de grave me voltar a confrontar com a minha impotência. Porque em determinadas alturas eu só me consigo agarrar à inevitabilidade da tempo e da vida para não claudicar. É uma esperança desesperante, porque nela não sou tido nem achado, que não depende de mim, nem das minhas forças, nem da minha vontade, e faz-me sentir, sempre, invariavelmente, tremendamente insignificante.
Quando passo no Hospital de Santo António, olho instintivamente para duas janelas, afastadas uma da outra apenas por alguns metros. Por trás de uma delas, a que fica mais perto da esquina que dá para o jardim, já fui imensamente feliz. Aí, nesse quarto, senti-me várias vezes verdadeiramente abençoado por Deus, quando via, pegava, acariciava, um novo filho. Uma verdadeira explosão de sentimentos, de alegria incontrolável, que me prometia rebentar com o peito tal era a intensidade, que me aparvalhava sempre, mas também me atemorizava sempre, ao ponto de, a custo, me dizer: "tem calma, amanhã é outro dia" e com isso nos confiar a Deus, sabendo que podia contar com Ele para me ajudar a lidar com o que viria. Por trás da outra janela, a que fica por cima da entrada, vivi o meu medo mais profundo. Aí, nesse quarto, senti-me quase abandonado por Deus, quando via a minha filha, doente, sem saber o que tinha. Uma verdadeira explosão de sentimentos, de dor incontrolável, que prometia rebentar com o peito tal era a intensidade, que me aparvalhava tal era o medo, ao ponto de, a custo, quase me forçar a dizer: "tem calma, amanhã é outro dia" e com isso nos confiar a Deus, sabendo que podia contar com Ele para me ajudar a lidar com o que viria.
Ontem quis muito poder dizer isso. "Tem calma, amanhã é outro dia". Não podia. Há situações em que as palavras, quaisquer que elas sejam, apenas atrapalham a inevitabilidade do futuro. Preferi o silêncio. Da oração. Preferi pedir que confiasse em Deus. Para que saiba que pode contar com Ele para lidar com o que virá. E comigo. Mas isso já o sabia.
20150507
Por mais que o tentasse, não conseguia apagar aquela enorme nódoa da sua cabeça. Mal escutava o que lhe era dito, palavra após palavra, justificação após justificação, porque sabia que não tinha importância nenhuma. A nódoa sim, a nódoa era importante. Era tudo o que importava. Era à volta dela que tudo girava, era o alfa e o ómega, o seu alfa e ómega, o princípio e o fim de tudo, a sua razão de existir. Desde tenra idade que se habituara a ouvir da boca da sua mãe coisas como "a verdade acima de tudo" e "cesteiro que faz um cesto..." e, embora por vezes achasse que a sua mãe era injusta, até com ela, intuía que ela no fundo é que tinha razão, "A verdade acima de tudo" e a verdade é que aquela nódoa a tira do sério. Já lavou aquela alma muitas vezes, já acreditou que nunca mais a voltaria a ver manchada, já jurou a pés juntos que o que importava, afinal, era a capacidade de ver para além daquela mancha, que manchas todos temos, e que ele até, cuidadosamente umas vezes, bruscamente outras, a fizera ver que as nódoas são pertença envergonhada de todos, que o que difere é o trabalho que cada um dedica à sua procura, que há quem escolha não as ver, não lhes dar importância, que há quem se dedique a permitir que se ganhe outras cores, outras matizes, mais vivas, mais alegres. E ela, tolamente, acreditara nisso, ao ponto de ter dito à sua mãe que, afinal, ela estava errada, que se colocasse o mesmo afinco à procura das cores que colocava à procura das nódoas, a sua própria vida seria mais alegre, porque acreditaria mais, porque viveria mais, porque daria em vez de tirar. Mas aquele "és tão inocente" que obtinha como resposta, aquele libelo acusatório, aquele atestado de menoridade impedia-a de acreditar de peito aberto no que acabara de dizer. E deixava sempre aquela semente de dúvida, de inquietação "e se ela tem razão?". Uma semente que germinava sempre, invariavelmente, na mínima oportunidade, no mínimo abalo, na mínima discussão potenciando a máxima discussão, onde o que importava era aquela nódoa, à volta da qual tudo girava, e que a impedia sequer de ouvir o que ele lhe tinha para dizer, onde o que importava, a única coisa que importava, era dar cumprimento ao seu papel de descobridora de nódoas alheias porque, afinal, "a verdade acima de tudo", e recordadora de nódoas alheias porque, afinal, "cesteiro que faz um cesto..." O resto não importava nada. Era coisa de inocentes.
20150504
Enquanto peregrinávamos rumo a Fátima, dois acontecimentos antagónicos, ironicamente próximos do Dia da Mãe: um príncipe nascia e uma criança, de uma mãe criança, era impedida de nascer. Sinais de um mundo repleto de contraditório.
Sou radicalmente contra o aborto. Qualquer que seja a condição, qualquer que seja a circunstância, qualquer que seja a história, o aborto é sempre um exercício de abuso do poder sobre quem nem sequer é dada a hipótese de existir para que se possa defender. Todos os argumentos a favor são absurdos porque partem de alguém que tem um privilégio que quer roubar ao outro: viver. Confesso que é, indubitavelmente, o assunto acerca do qual nem vale a pena discutir comigo. Para mim, nem há discussão porque, a discutir, seria sempre com aquele que é impedido de nascer. E confesso ainda outra coisa: há em mim, inevitavelmente, um sentimento de culpa, sempre que sei que alguém aborta.
Dito isto, não estou nada interessado em processos inquisitórios, públicos ou privados, sobre quem, consciente ou inconscientemente, toma a decisão de abortar. Na minha opinião - e agora trata-se da minha opinião, discutível, por isso - praticado o aborto, importa recuperar a mãe - sim, é mãe - importa criar as condições para que a mãe não volte a sentir essa necessidade, qualquer que tenha sido o motivo. Importa conversar, antes de mais, e tentar fazer descobrir o valor da vida. Importa criar condições materiais, físicas, para que o bebé possa nascer, nem que seja para o entregar a uma família que o acolherá com toda a esperança, com todo o amor. Importa fazer tudo o que for necessário para que aquela criança possa conhecer o dom da vida. E importa também fazer tudo o que for possível para que aquela mãe não fique indelevelmente marcada, nem por si, nem pelos outros.
Dir-me-ão que quero sol na eira e chuva no nabal. Talvez. Mas é de vida que falamos. E quando falamos de vida - a da mãe e a do bebé - vale sonhar tudo. E lutar para que aconteça. A vida, claro!
Subscrever:
Mensagens (Atom)
Bambora
Não é estranho que nos digam que «ser homem é muitas vezes uma experiência de frustração». Mas não é essa toda a verdade. Apesar de todos ...
-
Somos bons a colocar etiquetas, a catalogar pessoas, a encaixá-las em classes e subclasses organizando-as segundo aspetos que não têm em c...
-
"Guarda: «Temos menos sacerdotes e, por isso, precisamos de valorizar, cada vez mais, os diferentes ministérios e serviços laicais nas ...
-
Sou contra o aborto. Ponto. Sou-o desde sempre. A base da minha posição é simples: acredito que a vida começa com a conceção. Logo, não é lí...