20140531


Aqui há uns tempos disse a uma amiga que poderia morrer porque tinha a sensação que tinha cumprido a minha vida. Não é que me apeteça morrer, ou que ache que nada mais tenho a fazer. Nada disso. É que já fiz um filho, já plantei uma árvore e, se não escrevi livros, farto-me de o fazer por essa blogosfera fora.
Sinto muitas vezes que a minha vida tem enredo suficiente para poder ter sido muitas vidas. E tem-no, efetivamente. Frequentemente, questiono-me o que seria a minha vida se, em vez de ter virado à esquerda o tivesse feito á direta; se, em vez de dizer sim, tivesse dito não; se, em vez de me atirar de cabeça, tivesse tido mais juizinho, como tantos me pediam. Por várias vezes estive próximo do abismo, por várias vezes estive os píncaros, por várias vezes habitei a lua, nos lugares mais improváveis para um puto de Contumil. Ainda esta semana, enquanto me deliciava na Casa da Música, pensei nisso: quem diria que um miúdo meio amedontrado, meio abismado, estaria, naquela altura, numa sala daquelas, num concerto daqueles, e a sentir o gozo que sentia.
Noutro dia desta semana, em conversa com uma amiga (as vezes que eu converso com amigas!) falava do que me impediu de continuar na Carrinha Amarela. Naquela noite, dar o pão e o leite quente a quem comigo brincou em miúdo, a quem comigo partilhou risos e sonhos e estava agora do outro lado da contenda, foi demasiado para mim. Apesar de me custar vê-lo ali naquela situação, aquilo com que não consegui lidar foi com o facto de ter a plena consciência que os nossos papéis poderiam, facilmente, estar invertidos: mais uma vez, bastar-me-ia ter dito sim quando disse não, ou qualquer coisa desse tipo.
Também por esta consciência sempre presente, guardo com muito carinho muitos momentos que vão definindo o que a minha vida vai sendo: uma viagem memorável a Taizé, um terraço com uma enorme lua, uma noite em claro a discutir... e a reconciliar... um retiro, um convívio... a todos esses momentos está ligada uma redescoberta da vontade e da alegria de viver e de amar; a todos esses momentos está ligada uma enorme nostalgia; a todos esses momentos fica para sempre ligada a incerteza do que seria a minha vida hoje se os meus passos tivessem sido outros.
Quaisquer que eles fossem!

20140529


Quem de nós, hoje, ao acordar, pensou: "hoje vou ser pequeno."?
Quem de nós, hoje, ao escolher a roupa, escolheu: "hoje vou ser pequeno."?
Quem de nós, hoje, ao conduzir na azáfama matinal, decidiu: "hoje vou ser pequeno".?

Quem de nós, hoje, podendo,
tendo a força, tendo a forma, tendo a capacidade de o fazer,
optou ser o  pequeno,
aquele que faz o que mais ninguém se dispõe a fazer,
aquele que diz o que mais ninguém se dispõe a dizer,
aquele que vê o que mais ninguém se dispõe a ver
e deixa que todos, absolutamente todos, usem e abusem
possam ser o que quiserem ser
como quiserem ser
quando quiserem ser.

Quem de nós, hoje, se deixa utilizar
e se deixa manipular, servindo-se,
e aceita depois ficar de lado
ignorado
completamente ignorado,
ostensivamente ignorado
como se nunca sequer tivesse existido?

Quem de nós, hoje,
ao acordar
pensou:
"hoje quero ser pequeno...
...como o meu Deus!"?

20140528


Nem de propósito! Queixava-me eu que precisava do belo e ontem tive a rara oportunidade não só de o ver como de o sentir a envolver todos os meus sentidos. Fomos à Casa da Música assistir ao espetáculo com o Rodrigo Leão e o Olafur Arnalds. Se já conhecia e sou profundo admirador do primeiro - daí este presente de Natal da minha mais-que-tudo - o segundo foi uma extraordinariamente agradável surpresa.

Ás tantas, enquanto escutava aquela gestão do silêncio, perguntava-me porque não fazíamos estas coisas mais vezes: um bom jantar, um bom namoro, um bom espetáculo, e saímos renovados na nossa humanidade. Por vezes deixamo-nos enredar no quotidiano, numa emaranhado de compromissos connosco e com os outros que esquecemos que estas coisas também .nos trazem humanidade. Não chegam, é certo, mas contribuem para que demos Graças pelo que somos.

Recordo-me de um extraordinário filme sobre a Segunda Guerra que começa justamente por um quarteto de cordas a tocar numa vila destroçada. Sempre me inquietou o facto de o povo mais culto da Europa ter dado início às duas guerras mundiais. Mais: ter permitido a tremenda barbárie do Holocausto. Muitos deles escolhiam não saber, olhavam para o outro lado, esforçando-se por ignorar a desgraça que acontecia às suas portas. Foram cedendo, deixando-se envolver, deixando-se cozinhar em lume brando como a rã. E quando foram acordados, quando foram forçados a encarar a realidade, a própria realidade encarregou-se de os esmagar sob o peso da culpa.

Sempre que ponho os meus óculos novos, penso que estou a por os óculos de ver, por contraposição dos antigos, mais fracos, que são apenas de olhar. Temo muito ser cozinhado em lume brando pela vida necessariamente passageira e fugaz do quotidiano. Temo desperdiçar o dom que me foi dado, de correria em correria, de sofreguidão em sofreguidão, deixando de saber apreciar o belo, de tão envolvido no imediato. Por outro lado, acredito ser fundamental o envolvimento na vida, nos problemas e nas questões dos outros, que exigem uma ação contínua e imediata e não se compadece com desvios ou artificialismos.

Algures, entre uma margem e outra, encontrarei a sabedoria de viver.
Algures, entre uma margem e outra, encontrar-me-ão.
Espero que feliz.

20140527


Confesso que já o esperava há muito tempo! E finalmente chegou! O "ele agora não nos liga nenhuma, já não escreve nada nem quer saber de nós" estava-me destinado. Merecidamente, claro, que a boca que o proferiu não é de deitar palavras à rua. Eu sorri, tentei uma justificação trapalhona, como todas as minhas justificações, mas sabíamos todos que tinha sido certeiro. E merecido.
A questão é que eu preciso de muito para publicar o que escrevo. Não aqui, onde nada me obriga nem me impele a não ser esta necessidade de botar carateres, muitas vezes à toa. Mas num qualquer outro sítio, num qualquer outro blogue, numa qualquer outra plataforma que, de certa forma, vincule outros que não eu, aí a coisa pia mais fino. E a verdade é que não tenho conseguido ter disponibilidade mental nem para ver nem para escrever coisas que valham a pena serem lidas.
Logo após ter escutado a boca, deu-me uma enorme saudade do belo. Não era nada normal em mim isto acontecer. Se calhar porque se limitava a acontecer, naturalmente, sem que me desse conta. Agora é que, entre relatórios e reuniões e ensaios, e avaliações de desempenho, não me tem sobrado muita cabeça para o belo. E às tantas sento-me a escrever e o que sai é nada. E o que está para sair é "hoje tenho isto, depois tenho que fazer aquilo, ah, não me posso esquecer do email, e quando é que tenho ensaio, mesmo?" e aponto isso tudo no caderninho e depois descubro que o tempo passou e tem que ficar para a próxima.
Estou outra vez a precisar do belo. E tenho de arranjar forma de o reencontrar na minha rotina.

20140523


Tento sempre não cristalizar. Ficar atento ao que me rodeia, ver com olhos de descobrir, ponderar e voltar a ponderar, soltar-me as amarras. O vício do novo acompanha-me desde que sou gente: as notícias, a informação, as últimas tendências, exercem sobre mim um fascínio que não consigo explicar. Ao mesmo tempo, no entanto, e contraditoriamente, um enorme respeito pelo velho, pelo sábio, pela história, da vida e das pessoas, constitui uma âncora absolutamente imprescindível que me impede de navegar ao sabor das marés. Tentar conciliar estas minhas duas vertentes torna-me contraditório e difícil de ler aos olhos alheios.
Tenho um lado inato para ser advogado do diabo. Numa discussão, se muita gente puxa para um lado, a minha tendência natural é ver o outro lado da questão. Têm-me acontecido alguns olhares surpreendidos à custa disso. Como eu os compreendo!

O próximo numero do Poço é sobre a santidade. Artigo de fundo: Zé. Ri-me logo: só pode ser ironia!. Desde que me lembro que contesto os processo de santidade do Vaticano. Tive a sorte de conhecer algumas pessoas que, aos olhos do Deus que eu amo e me ama, não duvido que sejam santas e estejam, nesta altura, sentadas junto do Pai. Não precisaram nunca de processos de canonização, de estudos teológicos caríssimos, de descobertas de milagres que a ciência não consiga explicar. Aliás, todas elas, se alguma vez, em vida, lhes tivesse sido proposto algo desse género, tinham caído para o lado de susto. Em primeiro lugar porque não era essa. de todo, a imagem que tinham delas próprias, mas a oposta, a de simples e pecadores que precisavam mais do perdão do Pai que dos altares. Depois, porque todos eles se sentiam, invariavelmente, pequenos. Aos olhos de Deus mas também aos olhos dos homens. eram formiguinhas, trabalhadoras, preocupadas, sempre atentas, para que nada do que pudessem fazer ou dizer deixasse de ser feito ou dito. Não tinham nem a vontade, nem o feitio para os grandes gestos, daqueles que espantam o mundo. Mas estavam sempre lá, presentes, discretos, como quem não quer a coisa, sempre que eu precisava deles. Ainda que eu próprio não soubesse que precisava deles.
Meti-me então numa camisa de sete varas. Como hei de eu escrever sobre dois papas que foram santificados, ainda por cima quando nunca morri de amores por um deles? como hei de eu colocar no papel aquilo que os distingue enquanto cristãos e que justifique que eles possam estar em cima de um altar (raio de sítio para s estar, convenhamos!). Como sempre, irei ler, pesquisar, estudar, tentar descortinar nas suas vidas não as maravilhas que publicamente maravilharam o mundo, mas as minudências que me encantam. Tentarei, no fundo, descobrir neles as pessoas que existiam, tentando desnudá-los de toda a ostentação, encontrando a sua humanidade.
Aliás, é isso, justamente isso, o que tento fazer com todos aqueles com quem me cruzo.

20140520


Eu escrevi um poema triste
E belo, apenas da sua tristeza.
Não vem de ti essa tristeza
Mas das mudanças do tempo,
Que ora nos traz esperanças
Ora nos dá incerteza...
Nem importa, ao velho Tempo,
Que sejas fiel ou infiel...
Eu fico, junto à correnteza,
Olhando as horas tão breves...
E das cartas que me escreves
Faço barcos de papel!


Mário Quintana




Acontece-me por vezes ficar triste comigo mesmo. Que é diferente de ficar zangado. E mais grave! Fico zangado quando falho com alguma coisa. Fico triste quando falho com alguém. É muito diferente!

Quando falho com alguma coisa, não me é muito complicado encaixar essa falha. Não sou uma máquina, tenho sempre mil e uma coisas para fazer, ando sempre a correr de um lado para o outro e, cá por dentro, não espero ter o grau máximo de eficácia. Esforço-me ao máximo, empenho-me ao máximo, mas sei que tenho limites e que chego até eles muitas vezes. Zango-me comigo quando as falhas são evidentes e deveriam ter sido por mim previstas. Mas respiro fundo, revejo o percurso e sei que da próxima tentarei fazer melhor. Sem me martirizar.

Com as pessoas não é nada assim. Tudo se passa em cima de uma ténue linha que separa muita coisa. Importante! Com as pessoas é sempre importante. E quando me apercebo que meti água, que não soube parar para estar, que pus às coisas à frente das pessoas, sinto uma enorme desilusão. E tristeza. Porque, pelo menos comigo, as coisas passam, no final do dia. Quando encosto a cabeça ao travesseiro e faço a análise do que passou sei que raramente alguma coisa é tão importante que não tenha remédio. E mesmo que não tenha remédio, não há nada a fazer. As pessoas não passam. Ficam. Acampam. Permanecem sempre no meu mais meu, revisitando-me, particularmente quando deito a cabeça no travesseiro.

Ontem não foi um bom dia. Resta-me, mais que o consolo, a alegria de saber que, ainda assim, há quem me conheça.
Melhor que eu próprio.
E permaneça junto à correnteza.
À minha espera!

20140519


Ao jantar, em Santiago, conversava com o Padre Almiro sobre as diferenças entre o Caminho e a Peregrinação a Fátima. Antes que eu formulasse a minha recém descoberta constatação, ele confirmou-a: "a peregrinação a Fátima é espiritual, nasce da dor e complementa-se na oração; o caminho de Santiago tem outro tipo de espiritualidade, nasce do próprio caminho. Mas não é devoção."
Este ano, em que no espaço de 15 dias tive a oportunidade de caminhar para ambos os destinos, não mudou o que sinto. Se me convidassem para fazer ambas as peregrinações, optaria sempre por Santiago. Tem muito mais a ver comigo. O caminho mais como descoberta e menos como cumprimento de promessa; o caminho mais como partilha e menos como sofrimento silencioso, e silenciado; o caminho mais como alegria de sentido e menos como sentimento de dor.
Isso não quer dizer, no entanto, que não tenha um profundo respeito pelos peregrinos de Fátima. Num recente programa de televisão, entrevistaram uma série de peregrinos, questionando as suas motivações. Todas elas eram cumprimento de promessas, e nove em dez promessas tinham sido feitas não para benefício próprio mas de um filho, de um neto, de um pai... Questiono muitas vezes a bondade da lógica dessas promessas, que andam mais perto do filho mais velho que do filho pródigo. Torço sempre ao nariz à logica mais ou menos mercantilista do "eu dou se me deres, ou porque me deste" que anda longe da lógica de um Pai cujo amor resulta da mais pura gratuidade. Penso sempre que são coisas dos homens, não coisas de Deus. Mas somos homens e é como homens que sofremos e desesperamos e não conseguimos ter a cabeça em cima dos ombros. É como homens que não conseguimos ver para além dos nossos limites. Mas também é como homens que amamos para além dos nossos limites. E parece-me que peregrinar para Fátima é sempre um ato de amor. Despoletado pelo desespero. Mas ainda assim, um ato de amor.

20140513


Perguntam-me algumas vezes se o facto de trabalharmos juntos não é um entrave para o nosso casamento. Particularmente por causa do Centro onde, desde há um ano para cá, a minha-mais.que-tudo é a minha coordenadora, a minha chefe, e isso faz confusão a muita gente. Respondo que não, claro. Para começar, eu fui um dos que a indicou para chefe: reconheço nela capacidades evidentíssimas de desempenhar essa função, bem melhores que aquelas que eu próprio tenho. Depois, eu sempre fui muito melhor como número dois que como número um. Adoro a fase de discussão das ideias, de apresentação de projetos, de procura de alternativas, a confusão ordenada do brainstorming que está na origem do que fazemos. Mas depois, passada fase da discussão, sou muito melhor a fazer que a coordenar. Como disse alguém que também tem a função de me coordenar num outro lugar, eu confio em demasia nas pessoas, sou demasiado otimista em relação àqueles que comigo fazem coisas e tenho dificuldade em avalia-los com justiça. O que eu subscrevo inteiramente. E trabalharmos juntos, na nossa situação atual, é uma bênção. O que fazemos é tão absorvente, tão exigente, ocupa tanto de nós, que o facto de o fazermos juntos, de irmos e virmos juntos todos os dias, de, sempre que podemos, almoçarmos juntos, é uma oportunidade de namorarmos, de conversarmos, de nos reinventarmos constantemente, e, com isso, fortalecermos o nosso casamento.
Ontem, no nosso jantar a dois, num fim de tarde maravilhoso, naquela foz do douro que é, para mim, um dos lugares mais belos do mundo, falávamos justamente de como gostamos de conversar um com o outro. De como é para nós evidente que todos os problemas que tivemos ao longo do nosso casamento aconteceram justamente quando não conseguimos conversar, quando nos surpreendemos afastados pela vida, pelo trabalho, pelos filhos até, e de como esses problemas foram invariavelmente resolvidos com uma longa conversa que nos permitiu redescobrir o quanto nos amamos, o quanto nos admiramos, o quanto desejamos continuar a partilhar a nossa vida. Uma redescoberta que o tempo, ao invés de atenuar, tem fortalecido de uma maneira incrível.


20140512


Quando chegamos a casa, a pergunta impunha-se: "já imaginaste o que é viver sem futuro?" Poucos minutos antes tínhamos estado com um casal amigo, com quem fizemos um CPM há uns anos. Gente boa, simples, despretensiosa, da que dá o devido valor à vida vivida. Sabíamos que ela andava com problemas por causa de um cancro, mas não tínhamos voltado a estar juntos desde então. Eles lá andavam satisfeitos, às compras no Modelo, tal como nós, como se nada se passasse. Não fosse a máscara na cara e o cabelo ralo e, como de costume em mim, nunca me teria lembrado da história do cancro. Cumprimentamo-nos, rimos juntos, conversamos, perguntamos pelos filhos uns dos outros, com a cumplicidade natural dos casais que, fruto da preparação do CPM, já partilharam muita coisa da vida pessoal de cada um, e continuamos o nosso caminho. Do cancro, nada. Não falamos, não perguntamos, não desejamos as melhores, nem força ou coragem.

Acontece-me por vezes desvalorizar o testemunho sem palavras. Por acaso não sou muito de encher o silêncio à toa. Nas situações mais apertadas, mas comoventes, sou muito mais de abraçar ou beijar na testa, olhar nos olhos, que de falar. Se há alturas em que as palavras sobram é justamente estas. Procuro estar disponível, procuro estar em sintonia, procuro que saibam que estou disponível. Para escutar, para acompanhar, para abraçar ou chorar, para conversar até. Mas gosto de pensar que sou aquele que estou.

E, fundamentalmente, tenho um enorme respeito. E ainda maior pudor. Perante estas pessoas cuja vida é um testemunho de coragem e de capacidade de ir em frente não importa o quê. Sei perfeitamente que muitas vezes estão dilaceradas por dentro, que não encontram outra solução senão caminhar, que são mais os momentos em que se vão abaixo das canetas, e que "sabe Deus" as dúvidas e os medos e as noites mal dormidas e o desespero e isso tudo. Mas que ainda assim persistem, ainda assim resistem, agarrando-se ao possível e ao impossível para se manterem em cima das canetas.
Pessoas assim fazem-me sentir pequenino.
Deus seja louvado!

Não se pode afirmar que tenha sido uma conversa inócua. Não tinha que o ser. Não convém nunca sê-lo, quando essa conversa acontece entre duas pessoas que fazem questão de partilhar como vivem: sem nada na manga. Perla enésima vez ouvi, nestes últimos tempos, sempre dito por quem, de alguma forma, de ama, que estou diferente. Desta vez foi acrescentado o "desde que foste para o Centro". Apesar de toda a abertura, apesar de todo o caminho, apesar do todo que nos une, a sensação com que fiquei, até pelo veio depois, foi que algo tinha escapado da boca para fora, vindo diretamente de dentro.
Ainda bem.
Como sempre acontece com o que considero verdadeiramente importante, o "estás diferente" armou tenda e acampou. Sim, eu sei. Eu próprio noto essa diferença. Não sei ainda se é coisa boa, má ou assim assim, mas eu noto essa diferença. E também noto que, como me foi dito, estou menos tolerante com coisas que antes aceitava na maior, e encaixo outras com maior facilidade. Nada disto é por mim negado. Nada disto é amassado e deitado ao lixo.
Até porque é verdade.
Como não o poderia ser?
Nunca deixai que a vida me passasse ao lado. Nunca quis passar ao lado da  vida. E nunca deixei de querer mergulhar, intensamente, no que a vida me foi apresentando. Claro que isso tem repercussões no que vou sendo, a cada dia, a cada experiência. Claro que isso vai mudando a minha forma de ver o mundo e, fundamentalmente a minha forma de viver o mundo. E claro que isso provoca sempre o desagrado de quem me vai acompanhando e se habitua ao que sou em determinada altura. E normalmente magoa. com muita pena minha.

Faz hoje mesmo 24 anos que me casei. Quem me vai conhecendo pode imaginar o quanto eu mudei ao longo desse tempo. Pode, por isso imaginar, a dificuldade que a minha mais-que-tudo sentiu para se ir adaptando a cada momento àquilo em que a vida me ia moldando. Naturalmente, até pela sua relevância na minha vida, muito desse caminho foi feito na sua direção mas, com a mesma naturalidade, algum desse caminho foi feito em direção contrária. A minha mais-que-tudo tem uma tenacidade que não encontrei ainda em mais ninguém. E essa tenacidade, essa capacidade de permanecer apesar de tudo, tem sido absolutamente fundamental ao longo destes 29 anos que levamos de pertença um ao outro.
E como eu a amo (também) por isso!

20140502


«Está aqui um rapazito q ue tem cinco pães de cevada e dois peixes. Mas que é isso para tanta gente?» Jesus respondeu: «Mandai-os sentar». Havia muita erva naquele lugar e os homens sentaram-se em número de uns cinco mil. Então, Jesus tomou os pães, deu graças e distribuiu-os aos que estavam sentados, fazendo o mesmo com os peixes; e comeram quanto quiseram.

Sempre me fascinou esta passagem do Evangelho, que é a de hoje. Fazer muito do quase nada que se tem é, no fundo, o destino de todos nós. Conheço muita gente boa que desconhecia os seus dons, as suas capacidades. Que toda a vida lhe fora dito que era pequena, e que se devia manter pequena, deixar o importante para quem sabe e pode. E que depois desabrochou, explodiu, e se tem multiplicado e feito outra gente boa com a sua partilha.

Há uns anos conheci um grupo paroquial que desta passagem fazia vida concreta, de todos os dias. cinco famílias organizavam-se e ajudavam outras duas em dificuldades. Apoiavam-na em tudo o que fosse preciso. Os pais ajudavam no aconselhamento e até na supressão de carências materiais; os filhos ajudavam nos estudos, todos ajudavam na restituição da dignidade. Fazermos da palavra vida é, porventura, o maior dos desafios que nos é pedido todos os dias.

Não consigo deixar de pensar que o nosso principal papel é semear. E que todos acabamos por semear. Resta saber o quê.

Bambora

  Não é estranho que nos digam que «ser homem é muitas vezes uma experiência de frustração». Mas não é essa toda a verdade. Apesar de todos ...