20130327
Um dos principais sintomas de que qualquer coisa cá por dentro não anda bem é a minha necessidade de preencher o silêncio. Quando isso acontece porque tenho aquilo que eu chamo "o peito cheio" não é mau. Acontece quase sempre depois de uma experiência forte de encontro, como foi Taizé este ano, por exemplo, ou Moçambique, ou Santiago. Nessas alturas parece que a vida vivida não cabe na minha vida e transbordo de qualquer maneira e tudo vale: escrever, rezar, falar, cantar, um piscar de olhos no corredor...
No entanto, tenho outras alturas, muito mais frequentes, em que tudo o que escrevo ou digo não passa de um rol de disparates. Também tenho um nome para isso, que espelha a desagradabilidade da situação: "diarreia verbal". Invariavelemente, arrependo-me do que digo ou escrevo, invariavelmente ultrapasso as marcas, invariavelmente exponho-me em demasia porque revelo o que deveria ficar reservado: a minha estupidez natural. No entanto, esta necessidade não é em nada inferior à primeira. Nem menos minha. Por isso, resisti sempre à tentação de esconder esse meu lado mais nefasto.
Se há coisa na vida que temo verdadeiramente é a responsabilidade pelas expectativas criadas. Por mais que avise que não deve ser dada muita importância ao que digo - eu próprio, como me conheço de ginjeira, já não o faço há muitos anos - normalmente isso é tomado como um ato de modéstia - que eu não tenho - e depois vejo-me catapultado para sítios aos quais sei que não pertenço, nem quero a responsabilidade de pertencer.
É nessas alturas e apenas nessas, quando as pessoas me levam demasiado a sério, que me lembro do que o meu sogro me dizia (ele que, entre muitas outras coisas pouco abonatórias acerca de mim, achou sempre que eu falava demais) "o Calado é um grande jogador!"
20130321
Detesto estar assim. Hoje acordei com a telha. Estupidamente, sem qualquer motivo, tudo me incomoda. A música, o tempo, os pensamentos, as recordações, tudo é motivo de estorvo. Tudo o que leio é mal escrito - eu próprio escrevo como se estivesse a descarregar o autoclismo - sem sentido, sem utilidade, típico de "se as pessoas tivessem mais que fazer..." Prevejo aquilo que será o meu dia e não consigo ver nada em condições, nada que valha a pena. Hoje estou detestável!!!!
Tenho dias assim, em que preciso de encontrar o meu botão e fazer um reset antes de fazer estragos. Por mais que tente descobrir, não encontro um motivo palpável para estar assim, De ontem para hoje nada mudou, o que tinha ontem é o que tenho hoje, mas o que ontem me fazia feliz hoje incomoda-me, perturba-me. O que provoca isto não pode vir de fora de mim, portanto. Continuo a ter quem me ama, quem me espera e quem espera de mim, quem conta comigo e com quem posso contar. Check. O mais importante está cá.
Ok. Vamos à segunda fase, então. Fecho os olhos, respiro, e redescubro que preciso de me encontrar. Preciso de ir à capela.
Fui.
20130319
Na semana passada participei numa eucaristia que um bom padre conseguiu tornar especial. Eu sei que no papel todas o são, que é onde acontece o encontro connosco próprios, com os outros e com Deus, e blá blá, mas mesmo para mim, que normalmente gosto das eucaristias, umas são melhores que as outras.
Na homilia, o sacerdote, com uma enorme capacidade de correr riscos com miúdos que nem sequer conhecia - o que revela uma enorme segurança (ou inconsciência, o que por vezes também acontece) - pega na Parábola do Filho Pródigo e trata de encetar um diálogo com os miúdos colocando uma série de questões e provocando as suas respostas.
Confesso que a certa altura desliguei.
Porque o que me interpelou foi outra coisa.
Durante a minha vida fui, muitas vezes, o filho pródigo e voltei aos que me amam para lamber as feridas, profundamente arrependido e desolado pelas camelices que fiz. Durante a minha vida fui, muitas vezes, o filho mais velho e olhei de soslaio o acolhimento que foi feito aos que, na minha opinião (e do alto do meu ciúme), se tinham baldado grandemente enquanto eu, inocentemente, desinteressadamente, apenas por ser completamente bom (pois!) me esfalfara a fazer o que os outros esperavam que eu fizesse.
O que é verdade é que naquela eucaristia me apercebi que fui muitas vezes filho mas nunca fui um pai que simplesmente acolhe.
Se um dos meus filhos chegasse a casa depois de um período de ausência em que não tivesse dado notícias, em que tivesse estoirado tudo, em que fosse um estroina que não queria saber da família para nada, muito dificilmente eu o acolheria sem, primeiro, lhe ter dado dois bananos mal chegasse à minha beira ou, no mínimo, lhe ter enchido a cabeça de tal forma que ele teria vontade de me virar costas e preferido voltar a comer com os porcos.
Esta capacidade de acolher sem recriminar é das coisas que mais me desinquietam no Evangelho. A forma como Jesus acolheu a Samaritana, a Pecadora, Zaqueu, que, ao contrário do que acontece com o Filho Pródigo, não são parábolas mas relatos de acontecimentos presenciados, testemunhados por muitas pessoas, tornou-se, em determinadas alturas da minha vida, numa das maiores fontes de segurança e de confiança. Saber que o meu Deus, o Pai que me ama, me acolhe com um sorriso sem me perguntar onde estive, por onde andei, porque me afastei, tornou-se um imenso porto seguro. E, principalmente, ajudou-me a conseguir voltar a encarar os que, porque me amam, saíram profundamente magoados pela minha ainda mais profunda estupidez.
A partir de determinada altura comecei a tentar fazer algo parecido com os meus filhos. A faze-los sentir que, independentemente das suas camelices teriam sempre quem os cobrisse de beijos no regresso, que os esperaria de braços abertos e sorriso nos lábios. Estou ainda longe, muito longe de o conseguir. Porque o meu amor tem um lado egoísta: o que seria de mim se os perdesse? O que seria de mim se, por qualquer motivo, a sua vida não fosse a minha vida? Não aprendi, ainda, a amar completamente, sem deixar que o "eu" e o "me" interfiram nesta equação.
E, para ser sincero, é daquelas coisas que duvido que alguma vez conseguirei.
20130318
"Cada um de nós é chamado para ser um especialista em dar a volta. Quando somos confrontados com situações difíceis devíamos exultar-nos porque é para isso que cá estamos."
"Todos temos o poder dentro de nós para dar a volta às coisas. Se Jesus é o nosso treinador, isso devia ser a nossa especialidade."
Jesus, CEO
Trabalhei num Gabinete de Contabilidade durante doze anos. Fui para lá com dezasseis anos e, quando saí, era já casado e pai de filhos. Lá cresci muito como pessoa, como trabalhador e como homem, graças, como sempre, às pessoas com quem tive a sorte de aprender a viver. O Sr. Marques e o Dr. Nuno foram as minhas grandes figuras paternas daquela altura - e sabe Deus como eu ando sempre à procura de uma! - e eu bebia as suas palavras, os seus gestos e atitudes com a sofreguidão de um bebé porque sabia que estava a aprender a ser gente.
O Dr. Nuno, patrão típico mas muito humano e senhor de uma profunda sabedoria, aceitava muitos trabalhos que ninguém queria, porque eram muito difíceis e exigiam que passássemos horas à cata de pontas soltas. E ele dizia-me sempre: "Rapaz, o que é fácil qualquer um faz. Se te escolho para isto é porque confio em ti. Fica feliz por isso, porque é assim que se aprende." Uma verdadeira escola de vida!
Penso muitas vezes nele e na sua imensa sabedoria feita de vida vivida. Invariavelmente, quando me pedem para fazer alguma coisa, para assumir algum projecto, as palavras do Dr. Nuno revisitam-me. A minha primeira tendência é ficar muito próximo do pânico. "E se falhar? E se descobrirem que eu não percebo nada disto? E se deixar ficar mal quem confia em mim?" A segunda, no entanto, é partir para a solução. "Ok, O que faço eu com isto? Como posso dar a volta à situação? Onde posso ir buscar informação, onde posso ler, com quem posso conversar para me dotar de armas e bagagens para fazer algo de jeito?" E, finalmente, todo eu acampo no que tenho que fazer. Se não gosto à partida, descubro um meio de aprender a gostar. Leio e estudo muito, bebo tudo o que posso, e descubro sempre algo que me fascina na tarefa que me espera. Depois é só aproveitar, usufruir da situação, desfrutar ao máximo o que tem de bom - e qualquer situação tem sempre algo de bom, basta procurar e ficar atento - e não me agarrar em demasia ao que não corre bem. E pensar sempre, no final de cada dia, que amanhã é um novo dia. Que não há mal que sempre dure nem bem que nunca acabe.
Muitas vezes as coisas não correm bem. A minha história é também feita de grandes fracassos, de projetos falhados, de incapacidades próprias, de alturas em que fui mais problema que solução. Não quero ter, contudo, outra forma de viver. Preferi sempre a verdade das marcas das quedas à artificialidade da perfeição.
20130317
Um novo Papa, uma nova Igreja?
Vivemos tempos muito entusiasmantes, na Igreja. Aliás, temo que serão até demasiado entusiasmantes, uma vez que as expectativas
estarão demasiado altas. E não apenas para os católicos.
De certa forma, o modo como o mundo acolheu o Papa
Francisco trouxe-me à memória o entusiasmo que foi gerado em torno do Papa
João Paulo II. Um Papa que vem de longe – por incrível que pareça agora, a
Polónia em 1978 também ficava do outro lado do mundo – com um percurso de vida
inspirador, que alimenta a esperança de uma verdadeira reforma da Igreja.
Nos dias que se seguiram ao anúncio da demissão do Papa
Emérito Bento XVI foi enorme a confusão nos meios de comunicação social. A
todas as personalidades públicas, de todas as áreas, crentes ou ateus, foi
perguntado o que aconteceria à Igreja a partir de agora. Aliás, é muito curiosa
a qualidade das opiniões que a generalidade das pessoas que não têm fé faz
acerca da Igreja. É como se convidassem um designer de moda, que nada percebe
de futebol, para analisar um Porto- Benfica decisivo para o campeonato e
obtermos como resultado uma dissertação acerca dos modelos e das cores dos
equipamentos. Não sendo mentira, nada teria a ver com a importância do
acontecimento em si. Na realidade, a partir dessa altura não houve
personalidade pública que não desse o seu contributo acerca do futuro da
Igreja.
No entanto, há alguns pontos que serão transversais a todas
as pessoas de boa vontade, sejam ou não católicas. Como a opção pela pobreza.
Ansiamos todos pelo regresso a uma Igreja dos Pobres. A uma Igreja que prossiga
o seu caminho de reencontro com o Evangelho, que se curve para lavar os pés aos
mais desfavorecidos, que não tema enfrentar os poderes instalados mas que seja
refúgio de tantos que, hoje, no mundo inteiro, não conseguem encontrar um lugar
onde possam reclinar a cabeça. E para que isso aconteça contribuirá certamente
um Papa que, tal como disse o Frei Fernando ventura, tenha a coragem de calçar
as sandálias do pescador.
Da mesma forma, é um desejo global que o Papa Francisco dê
continuidade e até aprofunde os Encontros de Assis, que o Papa João Paulo II
deu início em 1986 e o Papa Emérito Bento XVI continuou em 2011. Numa cultura
que começa a assumir de forma aberta laivos de hostilidade para com todas as
Igrejas, particularmente as cristãs (não podemos esquecer os 105 mil cristãos
mortos em 2012 por motivos de perseguição religiosa), é uma ofensa a Deus que
os cristãos se encontrem ainda divididos, dando ao mundo um contra testemunho
do que deve ser a Igreja de Jesus Cristo.
Pelo que já vimos e ouvimos do Papa Francisco, acredito que
podemos, em ambos os pontos, alimentar expectativas. A própria escolha do nome
- Francisco, que o Papa deixou bem claro referir-se ao de Assis –
particularmente vinda de um Jesuíta, pressupõe uma opção clara pela
simplicidade de vida, pelo retorno ao Evangelho e por uma vontade de reunir o
que estará desavindo. Demos Graças a Deus por isso.
Mas o que o mundo pede hoje à Igreja não é apenas isto. O mundo
contemporâneo, completamente rendido ao aqui, já e agora e ao individualismo,
não consegue entender a linguagem do serviço ao outro e tudo aquilo a que está
intimamente ligada. Por isso despreza a obrigatoriedade do celibato dos padres,
que vê quase como uma violência perfeitamente anacrónica; não entende o papel
das mulheres na Igreja, que vê como subalternidade; nem entende a
indissolubilidade do casamento, que acha incompatível com o seu conceito de
felicidade de consumo imediato. Quando se aperceberem que a Igreja não se quer
render aos critérios facilitistas da cultura dominante, não demoraremos a
escutar as vozes de protesto dos defensores do progresso e da modernidade. Não
tardaremos por isso a confirmar que aquilo que uns vêm como anacronismo, como
resultante dos poderes instalados ou como medo da novidade, nós continuaremos a
ver como fidelidade a Jesus Cristo, ao Evangelho
e à Tradição.
A Igreja é uma mãe atenta e cuidadosa dos seus filhos e, como
qualquer mãe, sabe que por vezes aquilo que os filhos desejam resulta da pulsão
de satisfazer um desejo imediato mas nem sempre corresponde ao melhor para
eles. Como mãe atenta e cuidadosa, a Igreja sabe que deve permanecer fiel ao
Amor, e que apenas o amor constitui uma base sólida para o crescimento dos seus
filhos.
O Papa
Francisco, na sua homilia da Eucaristia de conclusão do conclave, terminou
desta forma:
“Eu
queria que, depois destes dias de graça, todos nós tivéssemos a coragem, sim a
coragem, de caminhar na presença do Senhor, com a Cruz do Senhor; de edificar a
Igreja sobre o sangue do Senhor, que é derramado na Cruz; e de confessar como
nossa única glória Cristo Crucificado. E assim a Igreja vai para
diante. Faço votos de que, pela intercessão de Maria, nossa Mãe, o
Espírito Santo conceda a todos nós esta graça: caminhar, edificar, confessar
Jesus Cristo Crucificado. Assim seja."
A escolha de
Francisco como nome, a humildade de pedir que rezem por ele antes de dar a
Benção Urbi et Orbi, a simplicidade que manifesta, tudo isso são sinais que
agradam à generalidade das pessoas e particularmente a nós, fiéis do seu
rebanho. No entanto, a presença significativa da Cruz do Senhor naquela que foi
a sua primeira homilia enquanto Papa, é também um sinal. Na Cruz do Senhor há
tudo menos facilidade. Há dor profunda, há entrega pessoal, há dádiva total e
absoluta, há fazer a vontade do Pai, há sacrifício por amor. Acredito que,
assim como o Papa Francisco teve a humildade de pedir que rezássemos por ele,
assim como teve a sensibilidade para estabelecer pontes através dos seus
primeiros gestos e palavras, terá, da mesma forma, a coragem de manter a
fidelidade ao Evangelho e a Jesus Cristo.
E isso, como
sempre, não será do agrado de todos.
(Artigo para o jornal paroquial O Poço)
20130312
É grande a expectativa, hoje. Curiosamente, bem maior do que seria se se tratasse da eleição do Presidente da República ou do Primeiro Ministro. Sinal de um tempo de profunda descrença nas coisas dos homens e cada vez maior confiança nas coisas de Deus.
Vou-me apercebendo que o processo que agora se inicia é muito importante para mim. Não é apenas um dirigente que é escolhido, mas, como dizia o meu pároco na Eucaristia de Domingo, é da nossa vida que se trata, porque a Igreja é a nossa vida. Nessa altura olhei para a assembleia - porque dirijo o coral estou muitas vezes voltado para a assembleia - e vi lá sentados os que me são mais queridos. A Isabel e a Rita lá estavam com o seu grupo de catequese, a Catarina, a Ju e o Ica comigo, a cantar e a tocar, o João dois lugares acima, junto do seu próprio grupo de catequese. Estávamos todos lá, naquela altura, assim como noutra igreja estiveram os meus pais e os meus irmãos, assim como a minha sogra e os tios estiveram naquela mesma no dia anterior, bem como os meus cunhados e os filhos deles estiveram na sua, neste ou noutro dia do fim de semana, neste ou noutro país.
A Igreja não é, para nós, ponto de passagem. Nunca o foi. Foi na Igreja que conheci a Isabel, foi lá que fiz os meus primeiros amigos a sério, foi a partir de lá que eu próprio comecei a ser gente. Foi lá que casei, naquele que foi o mais decisivo passo da minha vida porque me abriu a porta para a felicidade. Exceptuando aquela meia dúzia de anos em que os meus filhos eram muito pequenos e nos ocupavam todo o tempo do mundo, nunca deixamos de ter um papel activo na nossa fé: catequese, grupos de jovens, grupos corais, pastoral familiar, pastoral social, escuteiros, em tudo nos envolvemos todos, como família, como comunidade. Em tudo estamos todos envolvidos, o que transforma o nosso fim de semana numa autêntica mas plena de vida confusão. Nós até nem somos muito de rezar em família. Fazemo-lo nas nossas refeições, nas ocasiões especiais, como o Natal e a Páscoa, seguindo as orientações do nosso pároco para nos sentirmos ainda mais comunidade. Mas nunca tivemos vida - nem vontade - de rezarmos o terço todos os dias - como tantos nos aconselhavam - nem, acabado o percurso catequético, forçamos os nossos filhos a participar no que quer que seja. Mas também nunca lhes pedimos para podermos participar porque sempre entendemos que o nosso melhor testemunho seria o nosso próprio envolvimento. Na Igreja como na vida, aliás. Gosto de acreditar que é também por isso que todos os meus filhos, apesar das faculdades, apesar de lutarem pelas boas notas e de terem actividades extras, apesar de serem pessoas deste tempo e gostarem de um bom forrobodó, ainda descobrem tempo para os outros.
Acredito que ser Igreja passa muito por aqui, por sermos para os outros. É por isso que é grande a expectativa. Peço a Deus que o escolhido nos deixe ser para os outros. Só isso já seria uma enorme Graça. Até porque não tem acontecido assim tantas vezes.
20130311
Se calhar de forma errada, nunca soube muito bem esconder o jogo. Nunca tive grande dificuldade em viver sem nada na manga. Mesmo quando ainda não conheço alguém muito bem, não me ensaio nada para lhe revelar algo que para mitos seria considerado privado. E, para ser verdadeiro, também nunca percebi muito bem porque o não deveria fazer, porque nunca mal de maior me veio daí. Pelo contrário, o que tenho aprendido é que a ausência das minhas barreiras potencia o abaixamento das dos outros. Pelo menos dos bem intencionados. Se o segredo é a alma do negócio, está explicado porque tenho tanta sorte no amor.
Quando era miúdo tive uma vizinha que tinha muito orgulho na casa dela. Vivia num bairro social mais ou menos degradado, com pessoas a viver sabe Deus como, e, naturalmente, as casas não estavam em grande estado. Mas a casa dela, no entanto, estava sempre um brinquinho. Não havia dia em que ela não conseguisse um pretexto para alguém ir lá a casa - descalçando-se obrigatoriamente à entrada - para ver como era perfeita. Mais tarde descobri com que custo: eles utilizavam apenas um anexo para que a casa pudesse estar sempre impecável. Nos primeiros tempos de casado eu quis fazer algo parecido com os meus livros e os meus CDs. Pela primeira vez tinha algo de meu e a tentação de preservar as coisas era enorme. No entanto, quando tive filhos - e tive-os logo que casei - cedo percebi que, com filhos, as coisas mudam de figura. E de lugar. E de uso. Muitas vezes!
Confesso que tive sempre alguma dificuldade em perceber as pessoas que vivem nos anexos das suas vidas à espera das melhores alturas para as usarem. Esperam as condições ideais, as melhores oportunidades, tentando prever e antecipar todas as circunstâncias por forma a não correrem riscos, fechando-se nos seus casulos numa vã tentativa de se preservarem ao que pode acontecer de menos bom. Não raramente acabam como a minha vizinha, que morreu e deixou uma casa impecável... e vazia, porque os filhos e o marido não aguentaram aquilo muito tempo.
Prefiro, por isso - particularmente nos assuntos mesmo importantes - confiar, mais que pesar os pormenores. A vida - e a fé - encarrega-se de me apontar caminhos e soluções. Claro que quando as coisas não correm bem - e às vezes não correm - caio com tudo, com o estardalhaço de um elefante numa loja de loiças. Mas aí tenho tido a sorte de ser socorrido por aqueles que, justamente porque não tenho barreiras, já sabiam que me amparariam a queda.
20130308
"Deus criou a vida.
Os filósofos complicaram-na.
As mulheres tornaram-na num inferno...hmmm! Tão agradável!"
Tony
Quem me conhece minimamente sabe como admiro as mulheres e como são importantes para o meu equilíbrio emocional. Não me refiro sequer às principais protagonistas do meu enredo - a minha mais-que-tudo, as minhas filhas, a minha mãe e avó, a minha irmã, a minha sogra, a minhas cunhadas (é, estou rodeado de mulheres, Graças a Deus!) - que reservam, naturalmente, um papel especial na minha vida, no qual a sua condição feminina é absolutamente fundamental.
Desde que me conheço que me sinto bem no meio do sexo feminino. Têm o complicómetro sempre em on, têm montes de minhocas na cabeça, encontram sempre formas inovadoras e absolutamente inesperadas de interpretar o que dizemos na mais pura das inocências - sim, porque nós, homens, somos sempre puros e inocentes com as mulheres - são um enigma total e absoluto... são isso tudo, mas são, fundamentalmente, as grandes portadoras da beleza. Interior e exterior, naturalmente.
A maioria dos meus amigos são mulheres. Talvez porque, uma vez estabelecidas as condições necessárias, não hesitam em baixar as muralhas e em se dar a conhecer. Tenho, com amigas - novas e velhas, que nestas coisas a idade não importa assim tanto - conversas que procuram uma profundidade que, para acontecerem com um amigo, necessitariam de condições muito mais específicas e difíceis de encontrar. Noto, em quase todas elas, uma sede de confiança, uma fome de segurança, uma busca de refúgio que, uma vez encontrados, assegurados e reassegurados e confirmados ainda, as desbloqueia e nos transporta a ambos para novos patamares de descoberta e de sabedoria que me tornam invariavelmente mais rico.
Foi muito revelador para mim quando soube que o Banqueiro dos Pobres, o Muhammad Yunus, financiava com muito mais facilidade as mulheres que os homens. Segundo ele, essa seria a melhor forma de assegurar que o dinheiro seria aplicado na melhoria das condições de vida, nomeadamente dos filhos, e não na taberna. Esta generosidade feminina - que, convenhamos, dificilmente acontece entre mulheres - criou em mim, há muito tempo, a convicção profunda que Deus é mulher. Aliás, se assim não fosse, nunca a mulher teria o privilégio supremo que é gerar em si novas vidas. Se Deus nos ama a todos mesmo antes da concepção, naturalmente que escolheria o melhor da sua criação para acolher o fruto do Seu e nosso Amor.
No entanto, detesto o Dia da Mulher. Porque a equipara às árvores, ou aos animais, ou à natureza... porque a menoriza aos olhos de todos. Porque nos lembra que, algures na História, cometemos tantas camelices que sentimos necessidade de nos lembrarmos que a mulher tem direitos. Detesto a necessidade (?) deste dia, como detesto esta moda recente dos discursos - "Agradecemos aos portugueses e às portuguesas..."; "Pedimos hoje pelos Homens e Mulheres..." que, estou convencido, mais não fazem que acentuar uma divisão quando se deveria realçar e agradecer a complementaridade. Num mundo ideal, as mulheres seriam sempre tratadas como princesas belas e frágeis por homens capazes de ultrapassar a sua natural e omnipresente rudimentaridade.
Machismo? Talvez. Mas creio que, no fundo, o que detesto é o receio que as mulheres queiram abdicar do que melhor têm para nos dar (a nós, homens e ao mundo): a sua absolutamente fundamental, saborosa e insubstituível feminilidade.
20130307
"Se pudesses resumir a tua mensagem, qual seria?" (Jesus, CEO)
Esta interpelação tem-me vindo a incomodar nos últimos dias. Mais que aquilo que digo - que é habitualmente muito volátil, depende dos ventos, dos humores e das companhias - qual é a mensagem que as minhas atitudes transmitem? Ou, postas as coisas de outra forma, o que pensam de mim quando se cruzam comigo?
Eu sei perfeitamente o que gostaria de transmitir. E até sei - porque é importante sabe-lo, sem falsas modéstias (e eu nem sou uma coisa nem outra) - que tenho alturas felizes em que aquilo que sou coincide com o que quero ser, como se de um reflexo se tratasse. Mas também sei que são mais as vezes em que não sou mais que uma pálida imagem daquilo que sou chamado a ser.
À medida que vou amadurecendo sinto que aquilo que possam pensar de mim vai perdendo peso. Não entendo que sou dono e senhor de todas as razões - nem sequer das minhas - ou que sou o único a marchar com o passo certo. Mas creio que fui aprendendo a encaixar-me dentro de mim. Conheço os percursos das minhas dúvidas e certezas, aprendi a descobrir e a aceitar as minhas próprias fragilidades, e consigo compreender que por vezes aquilo que transmito - consciente ou inconscientemente - não é ainda a versão final de coisa nenhuma porque estou ainda a caminho.
Esta sensação de estar a caminho vai também fazendo cada vez mais sentido. Confesso que admiro muito aquelas pessoas com raízes muito profundas, cheias de sólidas convicções, que permanecem indiferentes às tempestades da vida. Admiro-as tanto que, durante muitos anos, travei batalhas imensas comigo próprio para conseguir ser assim. Em vão! As minhas convicções profundas têm apenas três raízes - a minha fé, os meus mais-que-tudo e os meus amigos - e tudo o resto é alvo de procura constante, de mudança constante, de afinação constante. Levei muito tempo até conseguir descobrir nisto algo de positivo, algo que pudesse aproveitar para, de alguma forma, conseguir chegar aos outros. A vida foi-me ensinando que não serei nunca uma rocha, como tanto gostaria, à qual os outros se agarram nos momentos de aflição, mas que talvez, se tiver sorte e sabedoria, possa ser árvore. Permeável aos humores das estações do ano, ora vai dando sombra nos dias de calor, ora aproveita o vento para semear, e encontra até utilidade quando os seus ramos secam: sempre dá para aquecer alguém.
20130304
Hoje, enquanto ouvia a última da Dido (No love without freedom, no freedom without love) pensava numa conversa que tive há pouco tempo.
Quando amor e liberdade se juntam numa frase eu não consigo pensar senão em amizade. Da pura. Daquela que respeita todos os limites, todas as diferenças, daquela que não quer conformar, modelar à própria imagem e semelhança, mas deixa espaço para que cada um possa ser o que quer ser, em determinada altura, sem amarras, sem justificações, e ainda assim continuar a sentir prazer na mútua companhia. Uma relação assim só pode ser win-win. Ganhamos com a partilha, ganhamos em podermos ser inteira e assumidamente nós, sem nada na manga, e, quando temos muita sorte, ganhamos porque temos o eco sincero, justamente pela inexistência de amarras, de quem nos ama única e simplesmente pelo que queremos ser.
Porque é de verdadeiro amor que se trata - e por isso tem ligação directa com as minhas próprias entranhas - nem sempre consegui lidar com este sentimento da melhor forma. Consigo recordar-me, com alguma facilidade, de situações em que fui vítima e algoz dessa tentativa de posse, desse desejo de exclusividade de um coração que se quer aberto e disponível. Sei, por isso, como me foi difícil aprender a soltar, a deixar ir, e a ficar simplesmente à espera de um sinal, de uma vontade para reatar, como se não tivesse existido ontem. E como me continua a ser difícil (porque por vezes magoo quem não o entende) reivindicar o meu próprio espaço, o meu próprio rumo, que não conheço outra forma de indicar o caminho a quem ainda não aprendeu a amar sem amarras.
Acredito que o meu bom amigo e Mestre Tempo é um velho sábio nestas coisas da amizade. Que me ajuda a aferir, a perceber, a valorizar, fortalecendo uns laços e aligeirando outros, proporcionando encontros e desencontros, apontando e deixando despontar novos caminhos, novos rumos, fazendo entrar novas pessoas na minha vida sem que isso implica o afastamento de outras. Tenho por isso a Graça de viver pleno de olhares e sorrisos, de conversas e partilhas, de terraços e luares, que me impedem que se instale a solidão e me permitem ir revisitando os que andam cá por dentro e fazem parte de mim.
São também eles quem faz transbordar a minha taça.
20130302
Desde sempre que conheço quem não sabe receber. Pessoas que funcionam com um código de troca e não de dádiva, que se sentem sempre, sempre, na obrigação de retribuir quando alguém faz algo por elas, ou lhes dá alguma coisa. Apesar de quase todas elas - pelos menos das que conheço - o fazerem por uma questão de educação e não por medo de ficar a dever o que quer que seja, esta é uma daquelas coisas que me irritam profundamente.
Da mesma forma, também conheço pessoas que me dão e que depois, quando contam cobrar, ficam confusos quando não vêem em mim essa necessidade de lhes retribuir. Ficam eles, e fico eu, que raramente me apercebo do que está a acontecer nessas alturas.
No entanto, tenho que admitir que também para mim é muito mais fácil dar que receber.
Enviaram-me, num destes dias, uma das partilhas mais profundas e bonitas que já li. Deixou-me muito feliz porque, antes de mais, espelhava a sintonia de uma conquista mútua, feita de despojamentos, plena de interioridades, de todos aqueles tesouros que acontecem lá, naquele lugar onde apenas acede quem concedemos aceder. E que me fez sentir tremendamente privilegiado! Esses momentos são normalmente partilhados numa troca de olhares, numa cumplicidade de sorrisos, num bater de corações que evita as palavras, ditas ou escritas, que, porque são ditas ou escritas, implicam directamente quem as escuta ou lê. No entanto, Graças a Deus!, estas palavras estavam lá e têm-me permitido revisitá-las com toda a calma e serenidade que uma tal partilha exige.
Cruzamo-nos pouco depois por acaso. Fico sem jeito, sem saber o que fazer, o que dizer, como me hei de comportar, quando estas coisas acontecem. O mais normal é meter água, dizer uma qualquer graça sem graça nenhuma, que mais não consegue que agravar a minha dificuldade em saber receber. Nessas alturas, a naturalidade que me imponho, justamente porque ma imponho, é tudo menos natural. O que eu gostaria mesmo era de ver em mim, nestas alturas, o que adoro ver nos outros: os olhos que sorriem, felizes, porque se sabem amados.
Tenho ainda muito que aprender!
20130301
Depois de partilhar algo com quem tive a sorte de estar em Taizé, recebi de volta uma pequena provocação: "isso é tudo saudades?". Respondi na hora: "sódade di nóis".
Não sou pessoa de grandes saudades. Nem de viajar muito ao passado, que no passado é que era bom. Talvez porque não tenha tido uma infância que valha a pena recordar, cedo aprendi a valorizar muito o momento que vivo, cada momento, quase sempre com um gozo muito maior na viagem que na antecipação do destino. E, quando tenho saudades, nunca são os momentos que me assaltam as memórias, mas o nós desses momentos.
Eu gosto muito do nós. Aposto muito no nós. Porque o nós é sempre muito melhor que a mera soma dos eu. Quando sentimos alguma abertura por parte de alguém, quando sentimos que podemos estar à vontade, que podemos confiar, que podemos baixar as defesas e soltar as amarras, aquilo que nos permitimos descobrir uns dos outros é sempre o melhor de cada um. Mesmo (especialmente?) quando partilhamos os pequenos e grandes fracassos das nossas vidas, quando pensamos que estamos a baixar as expectativas que os outros têm em relação a nós próprios porque vão ficar a conhecer os nossos terríveis segredos, percebemos que é justamente nessa partilha íntima que nos descobrem maiores que o que sentimos merecer ser. E então, quando nos propomos fazer coisas juntos, arriscar juntos, de peito aberto, ultrapassando os nossos próprios fantasmas porque sabemos que temos as costas quentes, descobrimos capacidades e dons que teimávamos em esconder debaixo do alpendre com medo de falhar.
Vi, na semana passada, o Into the Wild, que, como grande filme que é, ainda não saiu cá de dentro (por isso ainda é cedo para me agarrar em demasia a ele). É a perfeita antítese do nóis. É o desprezo dos outros, o considerar estar acima dos outros, o achar que é o único que marcha com o passo certo.
Ainda ontem à noite li mais um curtíssimo capítulo do Jesus, CEO, que me tem feito companhia nestes últimos tempos: "Ele formou uma equipa. Mesmo Jesus não quis mudar o mundo sozinho. Se, como líder, quiser realizar alguma coisa importante, o primeiro passo para atingir o seu objectivo é criar uma equipa. A verdade é que as boas ideias, as intenções nobres, as invenções brilhantes e as descobertas milagrosas não chegam a lado nenhum se não se formar uma equipa..."
Eu não subsistiria sem o nóis.
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Bambora
Não é estranho que nos digam que «ser homem é muitas vezes uma experiência de frustração». Mas não é essa toda a verdade. Apesar de todos ...
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Somos bons a colocar etiquetas, a catalogar pessoas, a encaixá-las em classes e subclasses organizando-as segundo aspetos que não têm em c...
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"Guarda: «Temos menos sacerdotes e, por isso, precisamos de valorizar, cada vez mais, os diferentes ministérios e serviços laicais nas ...
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Sou contra o aborto. Ponto. Sou-o desde sempre. A base da minha posição é simples: acredito que a vida começa com a conceção. Logo, não é lí...