20180625


Mais a sério, mais a fundo, faço dois balanços por ano: um no final e outro a meio, por altura do meu aniversário. Eu gosto muito de balanços, de os fazer, de os avaliar, de analisar a minha situação, o caminho percorrido, o caminho perdido, o caminho escolhido percorrer, o que fui perdendo e ganhando, o que foi ficando para trás, para segundas núpcias, para uma outra vida!
Este é, inegavelmente, um exercício de memória. Não tanto do que foi feito, exatamente, mas do que fica do que foi feito, do que fica do que foi dito, do que fica daqueles com quem foi feito. E este foi um ano de muitas coisas, muitos acontecimentos completamente novos e renovados, de erros e recomeços, de renascimentos, de novas maneiras de fazer o que antes tinha sido feito de uma outra maneira. Este foi também ano de projetos, novos e renovados projetos, novos e renovados sonhos, novas e renovadas maneiras de sonhar o que sempre foi sonhado.
Chego à meia idade com essa sensação: que esta é, mesmo, uma meia idade. Já não sou novo e ainda não sou velho, tenho menos gente em casa e ainda não tenho mais gente em casa, já não tenho o pedal que tinha mas ainda não reduzi a azáfama. Esta é a altura do já mas ainda não. Por isso este refazer tão presente, tão constante.
No entanto, fazer o balanço não pode ser um exercício frívolo. Tem que servir para redefinir objetivos e sonhos e desejos e projetos. Por muito boas que as memórias sejam, são apenas isso, memórias, e vivi já o suficiente para perceber - por vezes a tremendo custo - que há caminhos que não voltarão a ser percorridos. Pelo menos, não da mesma maneira. Por isso, é arriscar avançar, passar a ponte, por muito que esta se nos afigure frágil, por muito que não consigamos descortinar o que estará do outro lado.
Viver é arriscar. Sempre foi arriscar. Um risco calculado. Que se transforma miraculosamente em meio risco quando sabemos, sobretudo, com quem vivemos. Sobretudo quando sabemos com quem caminhamos. Sobretudo quando nos apercebemos que quem nos acompanha, apesar de tudo, permanece, está, fica, não vai a lado nenhum, não quer ir a lado nenhum. O que torna a viagem uma outra viagem. Sempre sonhada. O que torna o sonho um outro sonho. Feito de recomeços. Constantes recomeços.  Feito de projetos. Novos e redesenhados projetos. Feito de futuros. Novos e apostados futuros. Porque tudo o que está para vir é futuro. Porque tudo o que está para vir é muito desejado e sonhado e amado. Antes ainda de ser.

20180621


Eu mesmo, por mim mesmo, para mim mesmo. Esta foi a conclusão do estudo de hoje. Simples. Eu, quando começo, continuo e acabo em mim. Só. Eu e Eu & Cª Lda. como se dizia antes.

Penso muitas vezes em mim, não como o diabo - não acredito no diabo mas na existência do mal - mas como alguém em quem o mal está sempre à espreita.

Eu vivo num limbo. Permanente. Provavelmente é o que acontecerá com a maioria das pessoas, eu não sou especial de corrida em coisa nenhuma e por isso não serei nesta, mas o que é facto é que eu vivo num limbo. Permanente. por isso deveria pensar cada passo, cuidadosamente, laboriosamente, dando tempo e espaço ao juízo que, embora vaga e preguiçosamente, ainda vou tendo. Não acontece. As decisões mais importantes, porventura mais decisivas, são sempre as menos fundamentadas. Tipo Lucky Luke: disparo primeiro e depois vê-se. Vivo, deixo-me viver, sigo um impulso, e depois, por vezes, muitas vezes, deito as mãos à cabeça. É, por isso, frequente, ver o diabo quando olho ao espelho. E o anjo, na verdade. Não só quando olho ao espelho, na verdade. Quando olho os outros também. Por vezes até no mesmo dia. Ora me parecem o diabo, ora me comovem até à medula com gestos de bondade que desmentem tudo o que lhes vira até então.

Creio que a questão é todos nós somos anjos e demónios. Todos nós, em determinada altura, sob determinadas condições, escolhemos, umas vezes bem, outras nem tanto, com consequências para nós e para os outros. Parece-me que isto é evidente e normal, ainda que fosse bem melhor se assim não fosse.

Por vezes posso dar a sensação que endeuso pessoas. Noutras, não que as desprezo, mas que me são indiferentes. Esta é, aliás, uma acusação que me é regularmente feita. Nenhuma delas corresponde à verdade. Ou talvez ambas correspondam à verdade. Porque a verdade é que dificilmente me agarro à imagem de alguém. Porque a verdade é que, sobretudo, acontece que essa imagem perdure no tempo. O tempo que, em mim, suaviza sempre o diabo dentro de nós e deixa que o anjo lhe tome o lugar. Eu, que muito dificilmente esqueço palavras, gestos e atitudes, tenho como que uma memória seletiva: de fora para dentro prevalecem os anjos; de dentro para fora, os demónios. Recordo sempre o bom que me foi feito e o mal que fiz. Sempre.
Talvez seja esta uma das raízes de eu viver a vida com permanente espanto. E maior gratidão.

20180619


Gosto muito de elefantes. Do seu porte, do seu olhar doce apesar do porte, da forma como se mexem, como escolhem morrer, da memória, que tradicionalmente se diz que têm. Se eu fosse apenas animal, gostaria de ser elefante. Já estaria a meio caminho. Talvez goste tanto deles porque gostaria de ser um deles.
Não sou de esquecer. Nunca fui. Muito menos de querer esquecer - quando caio nessa asneira mais não consigo que recordar constantemente o que tão forçosamente quero esquecer. Recordo gestos e atitudes e conversas que tive ou escutei desde que era menino. Quase de colo. Por vezes dizem-me que nós só conseguimos reter coisas na memória a partir de determinada idade, mas naquelas idas ao baú com os com os meus pais e irmãos eu recordo discussões ou acontecimentos que tiveram lugar quando eu era mesmo pequenito e eles ficam a olhar para mim. Recordo muito, e com muito quero dizer muitas coisas, muito presentes, muito vivas, como se tivessem sido ontem. Recordo coisas que não servem para nada, não têm utilidade nenhuma... a não ser serem um parte importante do que eu sou.
Então pessoas!
Há não muito tempo pensei no que gostaria de fazer se soubesse que iria morrer dentro de um prazo curto. Uma das coisas que faria, com toda a certeza, seria retomar conversas inacabadas ou mal entendidas ou pouco esclarecidas, conversas que ficaram a meio e deixando algum nível de ressentimento. Porque nestas coisas o tempo tem a mania de limar as arestas, fica como lastro o que eu disse que não deveria ter dito, o que eu fiz que não deveria ter feito, o que eu deixei por resolver e deveria ter ficado bem resolvido, independentemente das circunstâncias. Eu deveria ter visto, deveria ter pressentido, deveria ter sido mais comedido, deveria ter sido mais sábio. Sempre!
Naturalmente, muita gente me passou pela vida. Muitas conversas, muitas partilhas, muitos caminhos. Algumas dessa gente permanece, outra nem tanto. Vou vendo pelas redes sociais, vou sabendo por interpostas pessoas, vou-me alegrando e sofrendo em segunda mão. Nenhuma delas está esquecida. Nenhuma delas está nos escombros da memória. Todas elas, volta e meia, a pretexto de tudo e de coisa nenhuma, regressam.
Claro que nem todas são iguais, nem todas têm o mesmo peso, há graus diferentes de profundidade, há níveis diversos de intimidade, quase sempre ligados à densidade da alma, à intensidade de uma boa conversa aliada às circunstâncias em que aconteceu. Há céus especiais e paisagens especiais e momentos especiais e caminhos especiais e lugares especiais que me povoam ininterruptamente de forma silenciosa e silenciada. Céus e paisagens e caminhos e momentos que são o que são porque têm dentro deles a doce memória da vida bem vivida.
Ainda nestes dias conversávamos que, excetuando com os meus - e os meus são muito poucos - sou de fogachos com os outros. Como a minha alma não é um disco de computador, que posso varrer e arrumar tudo encastradinho, há espaços nunca preenchidos, há saltos na continuidade, feitos das tais conversas incabadas. O que nem é mau, na verdade. Mau seria se eu desse as pessoas por terminadas na minha vida. E isso nunca aconteceu. E espero que nunca aconteça! Porque se acontecer, terei deixado, com toda a certeza, de ser eu.

20180615






A saudade dói. Sempre. Com dores diferentes, umas despertam sorrisos, outras provocam esgares de dor, silenciosa ou manifestada, mas dói sempre. Saudade do que já fiz, daqueles com quem já fiz, das circunstâncias em que foi feito. Mesmo que na altura disséssemos mal dessas circunstâncias, releio-as e recordo-as agora com um outro peso, uma outra essencialidade, que o tempo se encarrega de limar arestas: se não tivesse sido exatamente assim, não seriam estas as memórias, mas outras, completamente diferentes, e certamente menos saborosas.

Conversávamos um dia destes daquilo que já não farei. Do imenso que já não farei. Da enorme quantidade de projetos e sonhos para os quais já não tenho idade... ou a idade me tira a vontade. De alguns deles eu poderia descrever com enorme exatidão cada passo, cada momento, cada sensação, tantas foram as vezes que os sonhei. É como se os tivesse realizado, efetivamente, de tal forma que as memórias que permanecem desses apenas sonhados e projetados episódios da minha vida se revestem de uma realidade tão real que se confundem com aqueles que efetivamente vivi. Não me espantaria se, daqui por trinta anos, contasse aos meus netos as minhas aventuras num Defender por terras de África, ou de viagens de balão nos céus alentejanos, enquanto os meus filhos, nas minhas costas, fazem carinhosos gestos circulares com o indicador a volta da fronte direita. Nada que não aconteça já, na verdade!
Não são das que doem menos, estas saudades do apenas sonhado. Alicerçadas na realidade, amarram-me às minhas circunstâncias e impedem-me o voo. E como o sonho do voo é fundamental, sobretudo para quem se alimentou tantas vezes do sonho para fugir à realidade circundante! É extraordinário como hoje consigo ver, in loco, a necessidade que as pessoas do bairro têm de jogar nas raspadinhas, euromilhões e apostas desportivas. Que outra forma terão de escapar ao seu quotidiano?
A parte boa é quando redescubro, todos os dias, de forma renovada, que a minha realidade é, justamente, precisamente, o sonho mais vezes sonhado, mais intensamente desejado, e ainda assim, superiormente ultrapassado. E que a saudade, aquela que dói sempre, do vivido e do apenas sonhado, não deixa de doer sempre, mas é ultrapassada pela realidade. E que essa saudade, feita de pessoas e conversas e experiências e vidas sonhadas mas nunca concretizadas, é motivo para agradecer, todos os dias, o dom da minha vida.
E louvar a Deus pelo imenso que alcançamos.
Juntos.

20180614


Tenho o meu dia ganho quando me emociono. Com a bondade natural, com o belo (para o qual me encontro cada vez mais desperto), com o mimo e o cuidado, com o desconhecimento da mão esquerda daquilo que faz a direita.
Ontem emocionei-me. Várias vezes. Com uma conversa, com uma disponibilidade para acolher quem tanto precisa de acolhimento, com uma entrega, com uma belíssima dança numa eucaristia cheia de vida, com a serenidade de uma outra eucaristia, com uma conversa matinal, com um encontro depois de um desencontro. Ontem foi um dia cheio. De trabalho, de sol, de vida, de partilha, de momentos que me fazem sentir que a vida vale a pena.
Há dias assim. Em que apenas tenho motivo para dar Graças pelos que me rodeiam!

20180613

Há partes de nós que não são de ninguém. Nem sequer nossas. Partes feitas de pedaços mal contados e ainda pior resolvidos, palavras que não dissemos por falta de coragem, sentimentos afogados, que escondemos e dos quais nos escondemos, por medo ou vergonha, porventura à espera de uma outra vida que possa ser vivida de forma diferente. São partes de nós que não são nossas porque não as queremos nossas, porque teimamos que não são nossas, e teimamos tanto que as temos por indesejada e permanente companhia. São partes tão não nossas que se nos entranham na alma e no peito e na vida. São partes tão não nossas que, somadas às partes orgulhosamente nossas, constituem a amálgama do nós que nos habita.

20180609


Ontem, naquele final de tarde delicioso junto ao mar, notava-se que, a poucos metros, se iniciava um concerto. Era ainda maior o número de estrangeiros(?) na casa dos trintas que aproveitavam a beleza, o sol e o cheiro do mar, que metiam os pés na água ainda gelada da foz, devidamente acompanhados daquela coisa a que chamam jantar: fruta e vinho verde. Há de sempre fazer-me alguma confusão a sua dificuldade em sentar á mesa nas horas em que o deviam fazer! Quando vinha para cima, vi junto a tabela de basquete dois espanhóis a fazerem umas jogadas, despreocupadamente. Passados alguns minutos chegaram dois rapazes britânicos e ficaram a olhar. Juntou-se-lhes pouco depois um casal que devia ser oriundo de um dos países nórdicos. Alguns minutos mais tarde, estavam todos a jogar juntos, entendendo-se naquele inglês macarrónico que é agora a primeira língua de muitos jovens europeus.
Olhava-os, admirando-os e ao mundo que habito. Esta é daquelas raras alturas em que eu gostaria de ter menos duas décadas. A facilidade com que viajam, a forma como sentem a europa como sendo a sua casa, a normalidade com que comunicam, tudo isso é, para mim, motivo para encarar o século XXI com um sorriso, como diz um sábio amigo. Nada - a não ser o pudor que o bom senso ainda me fornece - me impediria de participar naquela improvisada partida de basquete. O pudor e a consciência que, no entanto, é um outro mundo, a kms do meu, aquele que eles protagonizam. Um mundo que respira uma outra forma e facilidade de comunicar, de viajar, de conhecer, de interpretar o mundo à volta, uma outra cultura de vida. Um mundo porventura com menores raízes e maiores aberturas, menos bafiento, maior permeabilidade. Não necessariamente melhor, mas indiscutivelmente diferente, ao ponto de nos ser tremendamente difícil avaliar. O seu paradigma é outro, o que nos levanta muitas questões, enquanto pais, por exemplo, quando queremos perceber algumas das escolhas dos nossos filhos. Vemos essas escolhas com os olhos do séc. XX quando eles têm que as viver numa era completamente diferente da nossa!
Orgulho-me que tenha sido precisamente a minha geração, com todas as contradições, erros e hesitações, a possibilitar que eles vivam nesse mundo. Que é o mundo dos meus filhos, dos miúdos cujo crescimento acompanhamos atentamente ao longo dos últimos anos.
É um mundo fabuloso, este, que eu tenho o verdadeiro privilégio de ver sedimentar.

20180608


Lembrei-me logo de alguns amigos meus, a quem o mesmo acabou por acontecer.

Enquanto novos, tudo gira. E tudo é muito giro. De noite em noite, de borga em borga, de experiência em experiência, vivem numa rede de amigos flutuantes, de acordo com as mútuas conveniências. Na superficialidade dos encontros e fins de semana radicais, são de todos e de ninguém. Vivem, mais que uma felicidade, um gozo permanente, ajudado pelos rendimentos que vão esbanjando alegremente, sobretudo quando o investimento é feito no hoje, aqui e agora. O que importa é viver!

Com os entas chegam algumas dificuldades até então desconhecidas. As articulações, as noites mal dormidas, o estômago, o peso, mesmo o próprio gozo com o que se fazia e com quem se fazia, tudo isso se começa a ressentir das escolhas que se fizeram antes, noutros tempos. Chega-se a casa mais cedo, apetece sair cada vez menos, demora-se mais a recuperar, e às tantas começa-se a apensar - e a sentir - que uma noite bem dormida é um requisito fundamental para uma boa semana. Olha-se para o lado com maior profundidade, em busca dessa mesma profundidade, de uma maior sintonia. As coisas ganham um outro sentido. Uma outra leitura. Anseia-se um outro presente que prepare um futuro. Já não é tanto o hoje, aqui e agora, mas também o amanhã, que adquire uma outra importância.

Descobre-se a solidão. Redescobre-se a solidão. Uma nova solidão. Porque agora é mais difícil adiar, porque agora o futuro é mais curto, porque agora tudo ganha um outro peso na vida. Uma solidão sempre feita de ninguém ao nosso lado. Podemos até ter a casa cheia de amigos, podemos até ter um casamento de muitos anos, podemos até ter os miúdos aos saltos pela casa toda. A solidão é sempre feita de ninguém.

À medida que os entas se vão sucedendo, vai ganhando importância a escolha criteriosa daqueles com quem partilhamos a nossa vida. Importa ter companheiros de jornada, qualquer que seja o laço que nos une. A família, o casamento, a amizade, os filhos, são ecossistemas, formas de viver o amor, de partilhar o amor, de intensificar o amor, de nos sabermos amados e amantes, de termos e sermos testemunhas de vidas vividas, de sermos e termos contadores da história pessoal de cada um. Não são garantias de coisa nenhuma, muito menos de facilidades e simplificações inócuas.

Ouvi o seu desabafo, agora que convalescia, sozinho em casa, de uma intervenção cirúrgica, e lembrei-me logo de alguns amigos meus, a quem o mesmo acabou por acontecer. Alguns deles com casamentos de anos. Mas recordei também outros que, ao longo da vida, teceram uma rede de amizades profundas, sentidas, testemunhadas e partilhadas, recheadas de cumplicidades, que nessas alturas lhes roubavam a solidão e os enchiam de vida e de esperança.

De facto,à medida que os entas se vão sucedendo, vai ganhando superior importância a escolha criteriosa daqueles com quem partilhamos a nossa vida.

20180607


Já não o fazia há muito tempo. Demasiado tempo! Não percebo as pessoas que não gostam de estar sem fazer nada. Estar só. Estar. Só. Eu sentei-me no jardim, uma manta em cima do corpo, apesar do sol, e deixei-me estar. Fechei os olhos, deixei que os sons me invadissem e fui identificando-os. Um a um. Até deixar de os ouvir. Depois os pensamentos. Em catadupa no início, fila indiana depois, de longe a longe, mais tarde. Não sei quanto tempo estive ali, no meu jardim, longe da vida. Mergulhado na vida. Creio que adormeci. Ou então, estava tudo tão entorpecido que posso ou não ter adormecido. Se calhar adormeci de olhos abertos. Sonhei de olhos abertos. repousei de olhos abertos. E alma fechada. Pelo menos para tudo aquilo que me era exterior. Só eu. Eu e a minha alma. Eu e os meus pensamentos. Eu e os meus sentimentos. Eu e os que amo. Eu e o meu Deus. Sem que uns ou outros disso saibam. Dir-se-ia que estava a perder tempo. Eu próprio, às tantas, sentia-me um tanto ou quanto culpado porque estava a perder tempo. Não estava a perder tempo. Estava. Apenas. Deixando que a vida flua. Que a alma flua. Que eu flua. No final, nada tinha mudado, Nada se tinha alterado. O que tu tinha para fazer continuava por fazer. O lugar onde eu tinha que ir continuava lá. Exatamente no mesmo lugar. e nem sequer o relógio mostrou grande preocupação e continuou a contar o tempo exatamente ao mesmo compasso. Nada perdi, afinal. Nada ganhei, também, na verdade. Apenas estive, num parêntesis de não acontecimento, de não fazer, de apenas ser, naquele bocado daquela tarde daquele sábado. 

20180606


Ele é daquelas pessoas que admiro profundamente. Há muitos anos. Provavelmente não devido aos motivos que ele achará, mas ele sabe que o admiro profundamente. É uma daquelas pessoas com um conhecimento que admiro, o tipo de conhecimento que, nem que eu vivesse cem anos, conseguiria alcançar. Junta fé a poesia e literatura, devidamente salpicadas com boa música, tudo envolvido numa profundidade e (às vezes) serenidade que me é tremendamente sedutora. Porque inacessível.
Hoje escutava-o, embevecido, e apetecia-me abraçá-lo. Mas, mais que isso, a vontade que tinha mesmo era de sentar e conversarmos.

Um dos meus maiores enigmas é perceber porque raio por vezes não damos o melhor de nós aos outros. É como se nos encolhêssemos, se nos apresentássemos pela metade, baixado sistematicamente a fasquia. No meu caso, andará provavelmente por aqui, uma vez que duas coisas me assustam de morte: as exacerbadas expectativas dos outros - que eu sei que algures no tempo irei defraudar; e que pensem que eu me coloco em bicos de pés - talvez porque às vezes me coloco mesmo e invariavelmente dou com os queixos no chão. Daí que, frequentemente, me sinta assoberbado pelo que os outros esperam que eu faça, querem que eu faça, e sobretudo, têm a esperança que eu faça bem feito, e nada melhor para combater isso que ir avisando. O problema é que volta e meia, a muito custo, lá vou cumprindo as expectativas e ninguém acredita nos meus avisos. Até um dia.

Pensava tudo isto enquanto o escutava. Porque por vezes também ele mostra uma faceta da qual nem ele próprio gosta. Nessas alturas penso - talvez com um pequeno grau de satisfação egocentrista - que ele, como eu, também anda à procura. Por outros caminhos, claro, muito mais adiante, mas também à procura. Talvez seja um pouco isso o que nos une: a procura.

20180604


Li recentemente, num artigo de um padre cuja opinião eu respeito, que somos habitados pelo infinito. Que a nossa sede de Deus advém justamente dessa sede de infinito, dessa insaciável e incomensurável incompletude, que por vezes apenas encontra algum repouso na confiança e entrega totais. Eu, por exemplo, apenas encontro o meu repouso autêntico quando recordo Jesus: "faça-se a Tua vontade e não a minha". É na entrega abandonada, confiante e recheada de esperança que descubro o reconfortante colo do Pai. Mas não acontece muito, confesso. Apenas nas situações de desespero total e absoluto. Fora desses momentos é o infinito que inapelavelmente me habita. É a procura constante, o fazer e refazer, o encontro e desencontro, o toca e foge permanente que me faz sentir que ora sou, inteiro, de corpo e alma, ora vou sendo, corpo e alma em permanente desavinda.

Ler de um padre que a incompletude pode ser fome de Deus é importante para mim. Porque muitas vezes caio na tentação de invejar aqueles que, pelo menos à minha vista desarmada, são um feliz bloco monolítico, onde tudo está devidamente acomodado onde devia estar, sem lugar a dúvidas existenciais. Invejo a sua serenidade, a sua clareza, as suas certezas absolutas, a tranquilidade do seu sono, a sua (para mim tão inacessível) coerência de vida. A minha coerência reside apenas na permanência da procura... e na constante insuficiência da resposta.

Há uns anos fiquei muito feliz quando, em Taizé, me possibilitaram uma outra leitura de Lucas 7, 47: "pois digo-te que lhe são perdoados os seus muitos pecados, porque muito amou; mas àquele a quem pouco se perdoa pouco ama". Sempre li o perdão como grande recompensa ao grande amor. Mas em Taizé colocaram a tónica no amor: peca muito quem ama muito. E o perdão, que nunca é recompensa, é uma dádiva ao que muito ama justamente porque quem ama  aceita viver no risco de amar. Ao que pouco se tem a perdoar é porque pouco arriscou viver, preferindo enterrar o seu tesouro à eventualidade de o perder.

Resta-me esta confiança. Que o olhar incompreensível dos homens dê lugar ao olhar amoroso do Pai.

Bambora

  Não é estranho que nos digam que «ser homem é muitas vezes uma experiência de frustração». Mas não é essa toda a verdade. Apesar de todos ...