20140929
Volta e meia, quando nada o faz suspeitar, vem o já habitual banho de água fria. Normalmente reajo bem, consigo olhar para além de, sacudo a água e preparo-me para o que aí vem. É nas alturas em que estou mais descontraído, mais confiante, menos atento, que estes baldes mais me custam a encaixar.
E o baque tem custos.
Refugio-me em mim, fecho-me, não partilho, até descobrir como hei de encarar o futuro com aquela alteração das circunstâncias. Calculo que serão estes os momentos mais difíceis para quem vive comigo. Não é uma questão de falta de confiança, ou falta de amor, ou qualquer coisa deste género. É mesmo uma tremenda dificuldade em dividir o que é menos bom, ver nos olhos que me são importantes qualquer tipo de dor infligida por mim, e ter a terrível sensação que sou um peso.
Partilho com muita facilidade a alegria e os momentos bons. Não sei, aliás, vivê-los sem os gritar em plenos pulmões, sem tentar contagiar os que me rodeiam. É algo que encontra o seu paralelo no que gosto de dizer às pessoas. Adoro dizer bem delas, se possível olhos nos olhos, e nunca o faço sem o sentir profundamente. Em sentido contrário, tenho muita dificuldade em criticar alguém e frequentemente remeto-me ao silêncio, dou tempo a que a vida e as circunstâncias me desmintam, ainda que, por vezes, com custos pessoais.
Não é justo, eu sei. Mas quem me conhece bem sabe que dificilmente pode esperar de mim que eu seja justo. Sempre preferi amar.
20140927
Não há muito que eu possa dar aos meus filhos. Mas também, em abono da verdade, não há muito mais que eu queira dar aos meus filhos. Dinheiro não pode ser, que esta coisa de ter cinco filhos e uma aposta fortíssima na educação suga-nos quase tudo. O que sobra vai para a alimentação, que nunca faltou. Depois, pouco fica, e é gerido com pinças. Ter despesas não programadas é um luxo que não temos há muitos, muitos anos. E não é grave. Houve um período, curto, durante o qual tive mais dinheiro que disponibilidade e fui uma péssima pessoa e, pior, um péssimo pai. Uma experiência a não repetir. Por isso o que eu posso dar aos meus filhos é o que tenho: a atenção, a disponibilidade, a brincadeira e a chamada de atenção sempre que o justificam. O estar é muito importante. Estar presente, estar disponível, estar atento, conhecê-los profundamente e não tomar nada como certo ou definitivo. Nem são sempre tão bons como quando se portam bem nem são sempre tão maus como quando se portam mal. Ah. E uma coisa fundamental: nunca fechar portas. Nunca! Quando é tempo de discutir, discute-se. Se tiver que ser, forte e feio, dizer o que se tem a dizer, limpar a alma. Quando acaba a discussão, a discussão acabou. Nada fica por dizer mas também não se prolonga no tempo. Passada meia hora, respira-se fundo, sacode-se o pó, e a vida continua como se nada tivesse acontecido. É muito importante que eles saibam que estou aqui e nunca digo "eu avisei-te". Eles sabem-no. A vida avisou-os. Para quê realçá-lo? Cada um é como cada qual. Não há fórmulas por atacado, não há educar por atacado. A mesma ação implica um ralhete a um e um afagar de cabeça a outro. Não estou nem aí para a justiça de tratamento ou para a equidade. Estou aqui pata tentar dar a cada um o que cada um necessita a determinada altura. Isto não é uma democracia nem uma ditadura. Não é um estado, é uma família. Gosto de que pedir para que alguma coisa seja feita mas se não o for não me importo de mandar, de puxar os galões, que eles são filhos e eu sou pai. E não me custa nada ter que lhes pedir desculpa sempre que se justifica. E já se justificou muitas vezes. E eu fi-lo em todas. Especialmente quando eles não mo pediram. Não há muito que eu possa dar aos meus filhos. Mas dou-lhes a certeza de não ter certezas nenhumas acerca destas coisas e de muitas outras. De não ligar puto aos conselhos dos imensos psis que sabem muito de psi mas não sabem nada dos meus filhos e, sobretudo, não imaginam o que é amar os meus filhos muito para além do que eu alguma vez sonhei ser possível amar alguém.
20140926
Contrariamente ao que é comum pensar-se, a esmagadora maioria das pessoas deste país não sente o ano novo no primeiro dia de Janeiro de cada ano. Festejámo-lo todos, nessa meia noite, com mais ou menos sono, com mais ou menos champanhe, com mais ou menos amigos, desejamo-nos mutualmente coisas boas para o tempo que aí vem, mas nas verdade, dois dias depois, tudo passou e voltamos à rotina habitual como se nada de especial tivesse acontecido.
Mas em Setembro não é bem assim. E nem sequer precisamos de ter filhos ou netos ou crianças na família. A não ser que vivamos barricados nas nossas casas sem qualquer comunicação com o exterior, sentimos que por volta de meados de Setembro a vida efetivamente muda. Radicalmente! Muito mais trânsito, transportes públicos mais cheios, enorme barulho e confusão junto às escolas, minis, súperes e hipermercados a abarrotar de pais e filhos com listas de pastas e cadernos e canetas e tudo o que os meninos precisam e não precisam para o novo ano (este sim, o verdadeiro novo ano, o que conta) que aí vem. Quem tem filhos ou netos em idade escolar, então, vê a sua rotina matinal completamente alterada. Roupas e lanches, livros e mochilas, trabalhos de casa e vistorias aos cadernos aliam-se à preocupação de ir levar e buscar os filhos à escola e deixar uma parte do coração junto com eles, de saber quem são os seus amigos e falar com os professores. Não há como escapar!
As pessoas de antigamente não devem entender muito bem o motivo de tal azáfama. No seu tempo as coisas eram mais simples: uma ardósia, um pedaço de giz; ou então um ou dois cadernos, um lápis e uma caneta eram instrumentos mais que suficientes para queimarem as pestaninhas com o que aprendiam na escola. Os professores, esses sim, encarregavam-se de fornecer o que importava verdadeiramente: a geografia, a história, os números e a língua portuguesa.
Não são esses, contudo, os tempos que hoje vivemos. Por um lado temos o endeusamento da criança, a quem tudo é permitido e concedido. Por outro lado, permite-se que a cultura do sucesso exerça uma tremenda pressão e dite as suas leis aos fragilizados pais, que apenas querem que aos seus rebentos não falte nada, e muito menos um futuro radioso. Pelo meio, muito se perde e pouco se transforma!
Para nós, cristãos, é muito importante sermos pessoas do nosso tempo. É essencial que saibamos interpretar o que está a acontecer à nossa volta, que consigamos ler o mundo que nos rodeia porque é neste mundo que vivemos, hoje, aqui e agora, e não num qualquer saudosismo que tem tanto de bacoco como de inútil. E é nesta realidade, e não em qualquer outra, que temos que descobrir os meios para levar Jesus Cristo aos outros. No entanto, justamente por isso, também é importante termos a capacidade de não nos deixarmos enredar acriticamente nas modernidades, esquecendo o que faz parte da essência do que somos. E se entendemos que é fundamental para um jovem – ou menos jovem - manter a comunicação e a partilha com os seus amigos nas redes sociais, é já bastante difícil perceber quando vemos pais e filhos pequenos, no carro ou numa mesa de restaurante, constantemente encatrafiados cada qual no seu aparelho.
Hoje em dia as crianças entram no carro e já têm os seus filmes preferidos a passar nos encostos de cabeça. Chegam a casa e têm os canais que lhes são dedicados ou então os tablets com os seus programas e jogos. Para comerem a sopa, nada como uma história com uns bonecos a mexer e uma música a condizer, que se descarrega através de uma qualquer aplicação informática. No final do jantar, cama, que amanhã é preciso levantar cedo.
Esta pode parecer, naturalmente, uma rotina extremada, satirizante, que as coisas nem sempre se passam desta maneira. No entanto, particularmente nos jovens casais com maior poder de compra, a realidade não andará muito longe desta ficção. Basta estarmos atentos num batizado ou num casamento onde estejam presentes alguns destes jovens casais com os seus filhos e contarmos os aparelhos eletrónicos que estão ativos nas suas mesas. E o tempo que uns e outros gastam a utilizá-los.
São sempre tempos novos, aqueles que vivemos. Que trazem consigo novos paradigmas, novas formas de fazer, novas formas de saber e de fazer acontecer. Mas não trazem novas formas de ser. Por muita e muito boa que seja a tecnologia que todos os dias nos invade os sentidos, há aspetos essenciais que constituem o nosso património. Que sempre foram e sempre serão nossos. A busca da interioridade e o silêncio que a permite; a presença real e não virtual daqueles que nos amam e nos ajudam a ser quem somos; o olhar e a voz que nos limam as arestas e nos fazem crescer; a experiência da partilha olhos nos olhos, mão na mão, que nos faz sentir parte de algo maior que nós; o encontro, o verdadeiro e decisivo encontro com Aquele que nos ama sem limite… a experiência do amor. Nada disto é substituível. Nada disto é coisa do passado nem perde sentido com a modernidade. Nada disto se consegue compensar com nenhuma aplicação informática.
Iniciamos recentemente um novo ano. De certa forma, muitos de nós andamos ainda à procura da melhor forma de encaixar todas as novidades. As nossas rotinas vão-se adaptando a estes novos tempos, que nos trazem novos desafios, novas incertezas, novos receios. Seria bom que soubéssemos sempre ser bons pais e bons filhos. Sabemos que nem sempre é assim. Seria bom que soubéssemos sempre ser bons educadores, qualquer que seja a nossa circunstância familiar, profissional, pastoral ou comunitária. Sabemos que nem sempre é assim. Mas seria muito importante que não perdêssemos nunca de vista que sermos pais e filhos e educadores fazem parte do melhor da vida. E o melhor da vida exige tempo mas não tem um tempo, não se esgota, é eterno. Porque o melhor da vida vem do amor de Deus. E esse é para sempre!
Artigo para O Poço
Mas em Setembro não é bem assim. E nem sequer precisamos de ter filhos ou netos ou crianças na família. A não ser que vivamos barricados nas nossas casas sem qualquer comunicação com o exterior, sentimos que por volta de meados de Setembro a vida efetivamente muda. Radicalmente! Muito mais trânsito, transportes públicos mais cheios, enorme barulho e confusão junto às escolas, minis, súperes e hipermercados a abarrotar de pais e filhos com listas de pastas e cadernos e canetas e tudo o que os meninos precisam e não precisam para o novo ano (este sim, o verdadeiro novo ano, o que conta) que aí vem. Quem tem filhos ou netos em idade escolar, então, vê a sua rotina matinal completamente alterada. Roupas e lanches, livros e mochilas, trabalhos de casa e vistorias aos cadernos aliam-se à preocupação de ir levar e buscar os filhos à escola e deixar uma parte do coração junto com eles, de saber quem são os seus amigos e falar com os professores. Não há como escapar!
As pessoas de antigamente não devem entender muito bem o motivo de tal azáfama. No seu tempo as coisas eram mais simples: uma ardósia, um pedaço de giz; ou então um ou dois cadernos, um lápis e uma caneta eram instrumentos mais que suficientes para queimarem as pestaninhas com o que aprendiam na escola. Os professores, esses sim, encarregavam-se de fornecer o que importava verdadeiramente: a geografia, a história, os números e a língua portuguesa.
Não são esses, contudo, os tempos que hoje vivemos. Por um lado temos o endeusamento da criança, a quem tudo é permitido e concedido. Por outro lado, permite-se que a cultura do sucesso exerça uma tremenda pressão e dite as suas leis aos fragilizados pais, que apenas querem que aos seus rebentos não falte nada, e muito menos um futuro radioso. Pelo meio, muito se perde e pouco se transforma!
Para nós, cristãos, é muito importante sermos pessoas do nosso tempo. É essencial que saibamos interpretar o que está a acontecer à nossa volta, que consigamos ler o mundo que nos rodeia porque é neste mundo que vivemos, hoje, aqui e agora, e não num qualquer saudosismo que tem tanto de bacoco como de inútil. E é nesta realidade, e não em qualquer outra, que temos que descobrir os meios para levar Jesus Cristo aos outros. No entanto, justamente por isso, também é importante termos a capacidade de não nos deixarmos enredar acriticamente nas modernidades, esquecendo o que faz parte da essência do que somos. E se entendemos que é fundamental para um jovem – ou menos jovem - manter a comunicação e a partilha com os seus amigos nas redes sociais, é já bastante difícil perceber quando vemos pais e filhos pequenos, no carro ou numa mesa de restaurante, constantemente encatrafiados cada qual no seu aparelho.
Hoje em dia as crianças entram no carro e já têm os seus filmes preferidos a passar nos encostos de cabeça. Chegam a casa e têm os canais que lhes são dedicados ou então os tablets com os seus programas e jogos. Para comerem a sopa, nada como uma história com uns bonecos a mexer e uma música a condizer, que se descarrega através de uma qualquer aplicação informática. No final do jantar, cama, que amanhã é preciso levantar cedo.
Esta pode parecer, naturalmente, uma rotina extremada, satirizante, que as coisas nem sempre se passam desta maneira. No entanto, particularmente nos jovens casais com maior poder de compra, a realidade não andará muito longe desta ficção. Basta estarmos atentos num batizado ou num casamento onde estejam presentes alguns destes jovens casais com os seus filhos e contarmos os aparelhos eletrónicos que estão ativos nas suas mesas. E o tempo que uns e outros gastam a utilizá-los.
São sempre tempos novos, aqueles que vivemos. Que trazem consigo novos paradigmas, novas formas de fazer, novas formas de saber e de fazer acontecer. Mas não trazem novas formas de ser. Por muita e muito boa que seja a tecnologia que todos os dias nos invade os sentidos, há aspetos essenciais que constituem o nosso património. Que sempre foram e sempre serão nossos. A busca da interioridade e o silêncio que a permite; a presença real e não virtual daqueles que nos amam e nos ajudam a ser quem somos; o olhar e a voz que nos limam as arestas e nos fazem crescer; a experiência da partilha olhos nos olhos, mão na mão, que nos faz sentir parte de algo maior que nós; o encontro, o verdadeiro e decisivo encontro com Aquele que nos ama sem limite… a experiência do amor. Nada disto é substituível. Nada disto é coisa do passado nem perde sentido com a modernidade. Nada disto se consegue compensar com nenhuma aplicação informática.
Iniciamos recentemente um novo ano. De certa forma, muitos de nós andamos ainda à procura da melhor forma de encaixar todas as novidades. As nossas rotinas vão-se adaptando a estes novos tempos, que nos trazem novos desafios, novas incertezas, novos receios. Seria bom que soubéssemos sempre ser bons pais e bons filhos. Sabemos que nem sempre é assim. Seria bom que soubéssemos sempre ser bons educadores, qualquer que seja a nossa circunstância familiar, profissional, pastoral ou comunitária. Sabemos que nem sempre é assim. Mas seria muito importante que não perdêssemos nunca de vista que sermos pais e filhos e educadores fazem parte do melhor da vida. E o melhor da vida exige tempo mas não tem um tempo, não se esgota, é eterno. Porque o melhor da vida vem do amor de Deus. E esse é para sempre!
Artigo para O Poço
"Expliquem-me como se tivesse cinco anos, porque ninguém sabe nada enquanto não tem que o explicar a uma criança de cinco anos."
A determinada altura, digo sempre isto em todos os meus DR. É um clássico, que alguns alunos já repetem ao mesmo tempo que eu. Não é da boca para fora. Acredito mesmo nisto. Acredito mesmo que tendemos a complicar as coisas simples e que, volta e meia, temos que regressar, temos que trocar em miúdos aquilo que julgamos que sabemos, aquilo que julgamos que sentimos, e perguntarmo-nos se será mesmo assim. Eu, então, que gosto tanto das ias (as filos e as psicos) tendo mesmo a ligar o complicómetro e a deixar-me enredar nas múltiplas questões que me vão assaltando.
Quando consigo deitar a mão a um catecismo dos primeiros anos raramente deixo a oportunidade de fazer um upgrade. Pego nele, leio-o rapidamente, e volto a centrar-me no essencial. Porque o essencial é justamente aquilo que eles descobrem nessa altura e depois nós limitamo-nos a acrescentar camada em cima de camadas.
Assim deveria ser qualquer relação. De amor ou de amizade. Simples. Básica. Sem complicações. Dar quando é altura de dar, receber quando é altura de receber. Dar asas, dar espaço, permitir a circulação do ar sem temer que o compromisso saia fragilizado, sem fantasmas, sem antecipação de catástrofes, com a confiança que tem que existir entre quem se ama. Como os miúdos, afinal.
20140924
Há muito que deixei de tentar que os outros entendessem a minha forma de amar. É daquelas coisas. De fora, por muito que olhem, por muito que tentem ver, por muito que eu tente explicar, por muito boa vontade que haja - e nem sempre há - não conseguem entender. Por vezes, nem mesmo aqueles a quem amo o entendem, quanto mais os outros! Eu percebo. A linguagem do amor apenas é entendível por dentro. E nem sempre!
Esta semana festejamos o primeiro aniversário do ER. A confusão da festa não era nada de especial para nós, habituados que estamos àquela imensa energia e excitação, até porque se conciliava a festa com o primeiro dia, com o calor, com os convidados especiais. Mas a cara assustada destes, os olhares de pena que volta e meia nos lançavam e o seu olhar geral de pânico, dizia-nos bastante. Eles não sabem como são os miúdos, não os conhecem, não estão lá senão de passagem e por isso não entendem como é possível encontrar neles outra coisa que não seja a algazarra e os gritos e as brincadeiras típicas dos miúdos traquinas de bairro. No final alguns amigos vinham ter connosco com ar de comiseração como se fosse para nós um tremendo sacrifício. E às vezes até é. Mas normalmente - ontem, por exemplo foi um desses dias - saio de lá com o peito cheio e a sensação que o meu trabalho vale mesmo a pena, faz mesmo a diferença. E só isso vale a aposta de uma vida.
Porque isto é amor, é amar, por isso é natural que apenas o perceba quem está por dentro, quem mergulha de corpo inteiro e encontra nessa forma de vida a sua própria forma de vida. Não é melhor nem pior que outras forma de amar. Não é melhor nem pior que dedicar-se aos alunos. Não é melhor nem pior que ser criador de bom ambiente entre os colegas de trabalho, qualquer que seja a atividade que se desempenha. Não somos especiais de corrida... temos é a felicidade de ter encontrado a nossa forma de amar.
Quem poderá dizer o mesmo?
Quem é feliz, certamente!
20140921
Gosto de pensar que sou atento. Que gosto de acompanhar, de ver os pormenores, de testemunhar o que a vida vai fazendo aos que comigo vão percorrendo a vida. Gosto de me colocar num canto e ir observando, atentamente, os mais pequenos gestos, os esgares mais discretos, aqueles momentos, que todos temos, que revelam o que, cuidadosamente, se tenta esconder.
Quando era responsável pelo Clube de Leitura fiz este exercício com os miúdos. Fomos à exposição do livro e pedi-lhes apenas para observarem que lá estava. Como olhavam para os livros, para que livros olhavam, como pegavam neles e os desfolhavam tentando descobrir o que ia no seu interior, e depois se os compravam ou não. Descobrimos tanto quando fazemos estas coisas!
No entanto, apesar de por vezes, erradamente, pensar que conheço bem quem tenho à minha frente, ainda me espanto com a descoberta. Quando fui a Taizé com a minha filha mais velha descobri nela alguém perfeitamente desconhecido: dinâmica, voluntariosa, apta a correr riscos e comprometida com os outros. E, fundamentalmente, a sair-se muito bem nos diversos papéis que escolhera assumir. Uma filha que nada tinha a ver com aquela miúda por vezes muito metida em si que tinha lá em casa. Seis dias em Taizé revelaram-me alguém completamente novo! Como era possível? Como é que eu nunca a tinha visto daquela maneira lá em casa? Aprendi que a carga que eu colocava no que (não) via e (não) ouvia era imensa. Que era demasiado de mim para que eu conseguisse manter a distância que permitiria vê-la tal qual ela é. E passei a ter mais cuidado!
Num outro registo, passei pela mesma experiência muito recentemente. Bastou-me recuar dois passos, educar o olhar e dar algum espaço para ver como alguém tinha crescido! Fi-lo conscientemente, depois de perceber que eu, à força de tentar proteger, estava a ser empecilho, estava a abafar e, mais que isso, começava a ser o único que não via o que para todos era já evidente.
Acredito que nesta dificuldade em ver o que temos diante dos olhos há muito de amar, de tentar proteger, de tentar esmiuçar as fragilidades para impedir que elas se revelem aos olhares alheios que, pensamos nós, serão mais implacáveis que os nossos. Que não nos apercebemos que o amor, quando sem medida, é implacável porque abafa e tolhe e impede de viver. Que amar é também soltar, deixar ir, deixar que usem as asas que ajudamos a crescer. E que o verbo amar, agora, se conjuga muito mais com o estar. Atento, à espera, à distância... para o que for preciso!
20140918
Foi muito isto, o que fomos conversando enquanto os nossos pés galgavam metros. Os nossos pés, sim, que a nossa alma, a determinada altura, não estava já bem ali mas algures, onde aprendemos - experienciando! como é essa coisa de ser feliz. E esta era uma casa para a qual não entrávamos sem convite há já algum tempo.
Quando duas pessoas se encontram, na intimidade mais profunda do que cada uma é, deixa-se de pedir licença. Entramos, descalçamo-mos, pomo-nos à vontade, instalamo-nos o mais confortavelmente possível, e desatamos a conversar de coisa nenhuma. O que trocamos não são as informações de circunstância, mas o "como é que estás" ou o "o que é feito de ti" exige mais, muito mais, que uma mera resposta circunstancial. Entre quem se ama não existe a conversa de chacha. Existe falar de coisa nenhuma, daquilo que nos vem à cabeça sem a preocupação de se filtrar, de escolher as palavras, porque sabemos que estamos em segurança e podemos dizer o maior dos disparates, que o amor se encarregará de aplicar a justa medida. É esta a maior intimidade, a que está reservada apenas a uma meia dúzia, porque é aquela que mais nos expõe, que mais nos fragiliza, que mais nos coloca no colo de quem está interiormente disposto para nos acolher.
Tal como somos.
Sem subterfúgios.
Sem limites.
Sem joguinhos.
Sem máscaras.
É bom, é muito bom, regressar a uma casa que sempre foi nossa!
20140917
Dizia-me alguém que não me conhece muito bem, ontem, a propósito de algo que tenho feito, que é preciso amar muito para o fazer. Eu devo ter posto a minha cara de parvo porque a pessoa em questão sentiu logo necessidade de trocar aquilo por miúdos. Nada que me aconteça algumas vezes. Como quando me dizem que deve ser muito difícil ter muitos filhos. Há coisas nas quais nunca penso. Deixo que fluam, que aconteçam, deixo-me levar ou pelo impulso, ou pelas batidas aceleradas, ou pela loucura - pode muito ser uma brisa do mar - e atiro-me de cabeça. Para muitos isto é uma estupidez pegada. Como posso embarcar numa coisa sem pesar riscos em consequências? E eu, quando me dizem isso, concordo sempre. A frio. Porque pouco depois, no calor da coisa, deixo-me novamente embalar com um sorriso nos lábios e o coração apertadinho. Cheio de pica, cheio de vontade, cheio de alegria por poder participar ou fazer alguma coisa que realmente valha a pena. Ainda agora, no Caminho, enquanto percorria os primeiros metros dizia sempre mal da minha vida. Que estou velhote para estas coisas, que já devia ter juízo, que não devia ter colocado tantas coisas na mochila, que nunca mais aprendo... e depois, aquecidos os músculos e encaixada a mochila como uma nova extensão de mim, lá estava eu, feliz da vida, a vibrar com aquela malta nova e capaz de fazer mais meia dúzia de quilómetros, e mortinho por recomeçar qualquer outra coisa deste género.
É... coerência nunca foi o meu forte. Paciência!
Há reencontros que não têm razão de ser, porque nunca o foram. Porque há pessoas que nunca deixamos, que nunca nos permitem saber o que é ser deixado, e por isso nos habitam e deixam que habitemos nelas. É algo que raramente acontece e que dá a sensação que se deve a uma qualquer confluência cósmica que permite que esse inusitado encontro se dê no mais íntimo de duas pessoas que apenas aparentemente não têm nada em comum. Assim uma coisa como o alinhamento dos astros ou um luar que apenas pode ser testemunhado - e revivido ad eternum! - a dois num qualquer terraço. Ás tantas descobre-se uma linguagem própria feita de olhares e silêncios e cumplicidades e sintonias quase perfeitas, feitos numa existência paralela para a qual tudo o resto é paisagem e nada mais importa.
Recordo muitas vezes estas sintonias mais-que-perfeitas que, raras vezes, vão acontecendo na minha vida. Costumam ser fugazes, encerradas num tempo e circunstâncias próprias: uma música especial aliada a uma descoberta numa tarde chuvosa a caminho de Taizé; uma longa e saborosa conversa sobre as possibilidades de amar; uma mesa onde a partilha substitui a parca qualidade do alimento... mas também as há duradoiras, constantemente revisitadas, constantemente reatadas e revigoradas a cada passo, a cada cumplicidade.
Dizia, ontem, que tenho dificuldade em entender quem nos tenta enclausurar num só. Sempre me pareceu muito pouco, demasiado escasso face à imensidão que me habita. E dos que teimam em me habitar.
20140902
Hoje, em plena discussão, como que apaguei. Desliguei. Fui. Às tantas, não ouvia tanto a pessoa com quem discutia, nem o que era discutido, mas apenas pensava o futuro.
Não podemos viver agarrados ao passado. Eu, que gosto tanto de história, que me assusto com esta tendência atual de se hipervalorizar a técnica à custa da memória, tenho do passado uma leitura funcional. Saber quem fomos em cada altura, o que fizemos e porque o fizemos, é fundamental para prepararmos o futuro, não para viver em eterna saudade. Agarrar-me às dores de ser magoado apenas se entende enquanto processo de defesa pessoal, num instinto que terá que ser ultrapassado logo que passe o perigo. Doutra forma viveremos sempre assustados, recalcados e amargos.
Numa qualquer relação - amorosa, profissional, de amizade - o passado servirá apenas enquanto projeção do futuro, para ajuste de expectativas que, com sorte, serão sempre ultrapassadas. Quando o utilizamos como condicionante desse futuro, não estamos a ser justos com ninguém. Quando não deixamos que a realidade desminta o passado, estamos a amarrar-nos, a tornarmo-nos mais pequenos, estamos a contribuir para a definhação desse projeto de futuro que é sempre o nós.
Recordo o início do meu segundo ano. Chegava aqui e todos me desejam um bom ano. Eu estranhava porque o meu calendário era ainda o civil. Hoje, enquanto isso acontecia, pensava na sorte que temos, todos, aqui. Cada princípio de ano é isso mesmo, um princípio. E isso enche-me de futuro!
Um bom ano!
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