20130930
Uma das minhas características que tradicionalmente mais problemas me trazem é a forma como eu discuto as minhas ideias. Facilmente me deixo envolver pelo calor da discussão e, diz quem me ouve, que o meu tom de voz por vezes se torna demasiado agressivo. Raramente tenho outra intenção que não seja discutir as ideias pelas ideias. Gosto muito do calor de uma boa refrega, gosto muito de quem tem a capacidade de me colocar em causa - o que, em alguns assuntos, não é fácil - e, invariavelmente, respeito quem tem a capacidade de argumentar racionalmente os seus pontos de vista, por muito díspares que sejam dos meus. Como já referi por aqui algumas vezes, o que não posso é com o encolher de ombros, o tanto se me dá, que se vai tornando cada vez mais normal.
Ontem, dia de eleições, só podia dar discussão política lá em casa. Calorosa, como qualquer discussão. No final, disse à minha filha que gosta de politica como eu, que tenho um imenso orgulho quando confirmo que os meus filhos têm capacidade de argumentação e conseguem ombrear comigo nestas discussões. Se há coisa que sempre me preocupou como pai foi em ter filhos que tivessem capacidade para pensar, que se soubessem posicionar na vida, que assumissem batalhas sem medo de dar o corpo às balas por aquilo em que acreditam. Por vezes não é fácil, porque por vezes acreditam naquilo que eu preferia que não acreditassem, mas mesmo essas alturas são um bom motivo para apresentarmos os nossos argumentos e escutarmos - por entre as vozes alteradas - os argumentos alheios. Em boa verdade, gostaria que as coisas acontecessem num outro tom, mais calmo, quiçá mais civilizado. Mas eu discuto como vivo: com tudo o que tenho e sou. E muitas vezes sou mal entendido por causa disso.
20130926
Com a inauguração do novo Espaço, veio a já esperada onda de velhinhos. Para já apenas chegam, ávidos de conversa e de atenção, com um enorme sorriso, apreciam o espaço e inscrevem-se, cheios de vontade de voltar. Apesar de gostarmos muito de os acolher, para nós, tudo isto está, neste momento, repleto de incógnitas. Não estamos habituados a trabalhar com pessoas destas idade, e quando o objectivo é que permaneçam algumas horas junto de nós, muitas questões se levantam. A primeira chegou justamente com o primeiro velhinho, que, visivelmente debilitado, vinha numa cadeira de rodas. Calculamos logo que seja preciso acompanhá-lo quase permanentemente, nas idas à casa de banho, nos lanches, nas conversas. É bem diferente de lidarmos com os miúdos irrequietos e vivaços, que transbordam energia e vida, e que nos têm preenchido os dias. Por isso iremos tentar apostar no intercâmbio entre ambos, em criar oportunidades para a troca de experiências, de convívio comum, que tão arredado anda da nossa sociedade. A intenção não é separar mas unir, enriquecer mutuamente, tornar aquele Centro o local que falta nas casas e nas famílias de cada um.
Curiosamente, enquanto uns entram nas nossas vidas outros decidem experimentar sair. Uns tios nossos, velhinhos e sem filhos, decidiram experimentar umas férias - forçadas - num lar. Será temporário, pois mantêm a casa deles à qual regressarão ao fim de semana, mas nos seus olhares já se vê a desilusão e o medo. Apesar de irem para um lugar com condições bem melhores que as que têm em casa, apesar de irem para um lugar onde podem estar bem mais acompanhados, apesar de irem ter um lugar apenas deles - têm lá um apartamento - para todos os efeitos saem da sua casa porque não conseguem quem cuide deles como eles precisam. E isso é sempre uma derrota. Há já vários anos que a Isabel vai a casa deles todos os dias depois do jantar e aí permanece mais de uma hora a conversar, a cuidar dos medicamentos, a lavar-lhes os pés, com uma entrega tal que me recorda todos os dias porque a amo tanto. No entanto, apesar da sua dedicação, não nos é possível estar lá em casa deles todo o dia, nem sequer que eles venham para nossa casa. E ultimamente os acidentes vão-se sucedendo: a comida que queima, a porta que fica aberta indefinidamente, os óculos que não se recordam onde estão, os medicamentos que se trocam... Apesar do imenso que nos custa, sabemos todos que é chegada a hora de ser tomada uma decisão, sob pena de se tornar demasiado tarde.
Desde miúdo que aposto na minha velhice. No tempo em que terei tempo, no tempo em que poderei ler, caminhar, viajar, namorar, desfrutar da vida como se não houvesse amanhã - até porque qualquer dia não haverá. Estes contactos com os velhinhos não me roubam essa esperança na minha própria velhice. Pelo contrário! Acredito ainda mais que vou ser um velhinho bem feliz. A minha mais-que-tudo diz que não, que vou ser chato como o caraças. Curiosamente, os meus filhos também dizem o mesmo. E quem me conhece bem também. Mas eu não acredito. O que eles têm é ciúmes de eu vir a ser um velhinho feliz.
20130923
Acontece-me isto, por vezes: olho, olho e não vejo nada.
Na semana passada deparei-me com esta frase e não a percebi. Não podia, de facto, tal era a correria em que estava metido. Reuniões em cima de reuniões, preparações em cima de preparações, e eu passo, de repente, a estar em "modo trabalho". Fico completamente focado no imenso que tenho que fazer, no imenso que tenho que preparar, na ânsia que não falte nada, que não escape nada, para que depois, quando a altura chegar, possa usufruir. Não é mau que assim aconteça, pelo contrário. A questão, no entanto, é que nessas alturas tudo o que não é trabalho me passa quase completamente ao lado. Quando chego a casa lá vou conseguindo alguma disponibilidade para os que amo, mas nem sempre a cabeça está lá.
Nem mesmo quando durmo!
Houve um tempo na minha vida em que eu funcionava em "modo trabalho" vinte e quatro horas por dia, sete dias por semana, trezentos e sessenta e cinco dias por ano. Não conseguia nunca descontrair verdadeiramente, não conseguia estar com os meus de corpo e alma, não conseguia encontrar tempo ou disponibilidade mental para fazer uma pausa, para separar as águas. Desses tempos ficou-me ainda uma verdadeira incapacidade de estar mais de quinze dias longe do que tenho que fazer. Ainda este ano isso me aconteceu! Nessa altura fui um completo desastre, para mim, para o meu trabalho, e muito particularmente para aqueles que me amam. Quando tive a oportunidade de me refazer, prometi que nunca mais deixaria que voltasse a acontecer.
E cumpri.
Esta semana a custo. A muito custo. Mas cumpri.
20130909
O medo de ser feliz faz-me muita confusão. Aquela coisa de "estou muito bem, alguma coisa está para me acontecer" que impede as pessoas de saborear o momento, de sentir verdadeiramente, abertamente, sem medos ou reservas, como se tivessem medo de subir muito alto só para não caírem. Todas as pessoas que conheço que têm esta tendência são muito mais lestas em sentido contrário, exacerbando o negro como se nunca tivessem visto luz, quase como se encontrassem nessa escuridão o sentido para os seus males. E o pior é que vivem tão à espera que algo mal aconteça que quando acontece - e acontece sempre a todos nós - dizem, cheios de razão: "Vês? Eu não te dizia? Tu nunca vês a realidade!"
Há pouco tempo, num extraordinário encontro de formação, uma das nossas irmãs disse-nos que, durante o seu processo de discernimento, lhe foi pedido para escolher a passagem bíblica que definiria a sua vida. De seguida, deu um breve tempo a cada um dos presentes para pensar qual seria a sua e pediu-nos para o partilharmos. Eu, que nunca tinha pensado nisso nesses termos, não tive dúvidas e escolhi Job 2, 10.
Job foi quem primeiro me seduziu na Bíblia e foi o livro que mais me acompanhou desde que me lembro. A forma como via o que ia acontecendo na sua vida, a naturalidade com que aceitava as coisas boas e as coisas más, contra tudo e contra todos, e a confiança que mantinha em Deus, apesar de todas as vicissitudes, serviram-me muitas vezes de consolo e, fundamentalmente, de guia. Creio que é também por causa de Job que não tenho medo de viver tão intensamente.
Porque razão não o deveria fazer?
20130908
Grande noite, a de ontem, com a confirmação que temos mais dois filhos na Faculdade. E nos cursos que foram a primeira opção de cada um, o que é muito importante! Claro que as coisas se vão complicar um pouco mais cá em casa. Ter 4 filhos na faculdade não é propriamente fácil, mas, como sempre, há que manter a cabeça fria, respirar fundo, e dar Graças por cada dia que passa. E se alguém tem motivos para dar Graças, somos nós.
Muitas vezes olhamos para os nossos filhos completamente embevecidos. Há alturas em que não é fácil: todos somos de mergulhar de cabeça nos muitos projectos em que nos envolvemos, todos sofremos da mesma falta de tempo disponível, todos partilhamos a mesma dificuldade de viver as coisas pela metade, de discutirmos pela metade, de nos divertirmos pela metade. Cá em casa tudo é sempre muito tudo: muita música, muita diversão, muita discussão, muita alegria ou muita tristeza. Normalmente não há espaço ou sequer vontade de encolher ombros ou de viver alheados ao que se vai passando na vida de cada um. Os problemas de cada um são os problemas de todos, as conquistas de cada um são festejadas porque são de todos.
A primeira vez que colocamos a hipótese de vivermos sem a presença de um deles foi justamente no final do ano passado. O meu filho queria medicina e, como sempre, apesar dos excelentes resultados, não dava nada por adquirido. Começou a colocar a hipótese de ir para Coimbra ou Lisboa e de repente percebi que tinha que me começar a preparar para o Síndrome do Ninho Vazio, de que tanto tínhamos falado na Pastoral Familiar. Nós, que não estivemos mais que um mês casados sem filhos pois engravidamos logo no segundo mês, que temos sempre a casa cheia de canalha e de amigos da canalha, como iremos sobreviver sem filhos? Durante o mês passado tivemos um cheirinho dessa experiência, chegando a ter apenas 2 filhos em casa durante alguns dias. Era uma paz completa, com pouca louça para lavar, com a mesa da cozinha rebatida, com a casa sempre em ordem sem muita roupa para arrumar, sem coisas espalhadas. Uma casa perfeita, como a minha mais-que-tudo aspira desde que a conheço, mas à qual faltava a confusão e a vida de que tanto gostamos. O que nos vale é o pequenito tem 13 anos (13 anos!) e, em princípio, levará ainda algum tempo a partir para outras paragens.
E, nos entretantos, confiamos que a casa se volte a encher de canalha. Desta vez, de netos ;-)
20130907
Uma das coisas que mais problemas me tem causado é o facto de não ser anti-nada. Normalmente não falta quem me exija a mesma radicallidade que sentem. Tanto de um lado como do outro das contendas em que algumas vezes me meto, nunca vêem com bons olhos a minha queda natural para ver o outro lado da questão, o papel de advogado do diabo que, quase sempre involuntariamente, me vejo a desempenhar. Daí à acusação de falta de personalidade é um pequenino passo, que é, aliás, muitas vezes dado. Por muito tempo isso incomodou-me bastante, até que me fui apercebendo que me incomodava ainda mais a minha infiidelidade a mim próprio, que por vezes levava a que fosse artificialmente radical apenas para me poupar.
Como não há regra sem excepção, a única radicalidade que me é visceral desde que me conheço é a do aborto. Mesmo nas mais duras e longas batalhas que tive na altura da discussão da lei - umas olhos nos olhos, outras nos vários fóruns da internet - nunca me conseguiram dar um argumento que me contrariasse a convicção que o aborto é sempre, sempre, o abuso do poder por parte de quem o tem sobre quem não o tem, e que, por muito má que seja a perspectiva de vida que uma criança possa ter, é sempre melhor que nem chegar a ter a possibilidade de vida. Aliás, vida é vida, ponto final.
Numa das melhores experiências de condutor de grupos de jovens que tive, o RH+, discutimos algumas vezes o aborto (interrupção voluntária da gravidez não passa de um eufemismo para esconder a crueza do acto). Porque o RH+ era um grupo cuja riqueza advinha muito do facto de ter nas suas fileiras muitos jovens sem qualquer percurso cristão, jovens que simplesmente andavam à procura e desaguavam no RH+, os nossos debates sobre estes temas ditos fracurantes eram sempre muito ricos e desafiantes. Se para alguém que teve um percurso cristão podemos argumentar com a religião, com alguém para quem a religião não diz muito, os argumentos têm de ser outros. O RH+ foi, também por isso, uma excelente escola para mim, pelo que tive que estudar, que aprender e que tentar transmitir.
Recordo-me que, numa dessas discussões sobre o aborto, alguns deles vinham com os casos estremados que na altura abundavam, de um e do outro, na comunicação social. E recordo-me também de lhes ter dito que não queria saber o que fazia a vizinha do 5º esquerdo numa situação dessas, mas qual a sua forma de estar, o que fariam se contactassem com um caso de possibilidade de aborto, na escola, no café, em qualquer outra situação. E então dizia-lhes para fazerem uma única coisa, para me contactarem, para dar o meu contacto à pessoa em questão, que eu conversaria com ela e depois tentaríamos resolver as coisas.
Não havia nada de demagogia na minha proposta. É minha convicção profunda que apenas podemos defender qualquer atitude se estivermos dispostos a meter as mãos na massa. Por isso ontem, quando vi que o Papa Francisco tinha telefonado a uma mulher que estaria disposta a abortar, lembrei-me do tanto que discutimos no RH+. E agora questiono-me ainda mais porque é que não vemos mais cristãos a fazerem isso, a irem ter com as pessoas, efectivamente, para que elas sintam que não estão sós. E se elas, no final de tudo, decidirem avançar com a sua decisão, escolhendo ignorar os nossos argumentos, acredito que é igualmente nosso dever permanecer junto delas, efectivamente, para que elas sintam que não estão sós.
Quem me conhece sabe que eu gostava muito de Bento XVI pela profundidade dos seus escritos. No entanto, começo a acreditar em Francisco pela sua insistência e disponibilidade em fazer-se efectivamente próximo das pessoas.
Parecem-me ser estes gestos as suas encíclicas por excelência.
20130906
Recebi uma sms: "Pai, disseram-me que aquele teu amigo que consumia está no hospital. E está mal."
Lembro-me de um retiro há uns largos anos em que ficamos no mesmo quarto. De manhã bem cedo, acordei com a sua tosse. Levantei-me e lá estava ele, no corredor, de cigarro na mão e janela aberta a deixar entrar o ar gelado. "Desculpa. Tive que vir dar de mamar aos queixos." Rimo-nos como sempre nos rimos juntos, porque nos sentíamos bem juntos.. Durante uns tempos vimo-nos muitas vezes. Ele tinha regressado de Espanha, onde quase se tinha acabado de perder, recuperara a custo, arranjara emprego, e participava nos nossos encontros. "Se na altura soubesse que havia disto nunca me teria metido nesta merda". Era bem mais velho que nós mas todos o acolhíamos com agrado no nosso seio. Era também uma conquista nossa, em parte uma mascote, e exercia em muitos dos mais novos o fascínio do filho pródigo. Contava-nos as histórias espanholas das suas descidas aos infernos que abundam no submundo da droga, e terminava sempre com um aviso muito sério para que não caíssemos nas armadilhas.
Aos poucos o tempo foi passando, entretanto eu mudei de pouso e volta e meia iam-me chegando notícias suas. Fora despedido, começava a pedir dinheiro emprestado aos do grupo que nunca mais devolvia, em sua casa recomeçaram os desaparecimentos de tudo o que era vendável, até que voltou a sumir-se. Passados uns anos, numa das rondas que na altura eu fazia aos sem abrigo, vi-o, em S. Bento, a dirigir-se para a carrinha. Trocamos abraços, palavras de circunstância, juras de voltarmos a contactar, e perdi-lhe o rasto. Na altura fiquei abalado e ele foi provavelmente o mais forte pretexto para deixar de ir aos sem abrigo.
O desconforto que sentia devia-se à sempre presente consciência que nada de substancial me separava daqueles a quem servia na carrinha amarela. Que os que se aproximavam de nós poderiam muito bem ser os meus vizinhos de infância, os amigos com quem brinquei lá no bairro, as namoradinhas que ia tendo quando era miúdo ou o meu primo que era arrumador na Praça Velasquez. Por isso nessa altura, quando o vi, envergonhado, a dirigir-se a mim, o espanto não foi muito, era apenas a confirmação que estava certo. Que aquilo que ditou a diferença dos nosso caminhos foi um "não" aqui, um "sim" acolá, uma família que, apesar de tudo, não permitia tudo, e fundamentalmente, uma escolha pelos amigos certos, uma descoberta - e mais tarde uma opção - pela divindade certa.
Mas poderia ter sido exactamente ao contrário.
Ainda não o esqueci.
E espero que nunca o esqueça.
Desde muito novo que estou habituado a lidar com o que eu chamo opinadores de sofá. E confesso que as suas opiniões não me merecem um respeito especial.
A última opinadora foi justamente uma da minhas filhas. Na minha paróquia temos uma coisa que se chama "Mesa de São Pedro" onde, todos os dias, várias equipas se vão revezando para que algumas das pessoas mais carenciadas possam ter algo que comer. Assim, todos os dias, ao jantar, é servida pelo menos uma sopa quente a quem, em princípio, mais precisa. Alguns de nós - os que querem - lá de casa, estamos ao serviço de 15 em 15 dias. Numa dessas noites, em que, necessariamente, chegamos mais tarde para jantar, a Mesa de São Pedro foi tema de conversa e uma das minhas filhas disse que não ia porque não concorda com aquilo, porque estávamos a perpetuar a miséria, porque nos limitávamos a matar a fome, porque aparecia lá gente que afinal não precisaria tanto como isso, porque... porque... porque... Depois de argumentarmos mutuamente disse-lhe que, se não concordava com o que estava a ser feito tinha duas hipóteses: ou vinha connosco e contribuía para solucionar aquilo com que não concordava, ou então respeitava aqueles que, ao contrário dela, não se limitam a ficar no sofá à espera que as coisas mudem caindo do céu aos trambolhões.
Fim da discussão.
Nestas alturas, lembro-me muitas vezes da Madre Teresa de Calcutá. Até porque, sendo eu um sofasista de gema, não me é nada difícil encontrar mil e um motivos para permanecer quieto no meu canto. Sempre que tenho que dar à perna, mil e uma questões me assaltam, e muitas delas são justamente aquelas que a minha filha advogou. E muitas vezes - provavelmente a maioria delas - se não fosse o meu motor fora de borda a puxar-me eu ficaria mesmo no sofá.
No entanto, ao fim destes anos todos, não encontrei ainda melhor forma de mudar as coisas, de mudar o mundo que me rodeia, que não seja arregaçar as mangas e meter as mãos na massa. Que posso fazer muito mais que dar de comer, ou que ensinar, ou que tentar educar, isso já eu sei. No fundo, trata-se sempre de tentar restituir a dignidade que muitos nem sequer acreditam ser um direito seu, de tal forma apanharam pancada a vida toda. E isso, fazer alguém acreditar que é capaz, levá-lo a descobrir os seus próprios sonhos, convencê-lo que tem possibilidades de os alcançar, que pode lutar para conseguir torná-los realidade, eu nunca consegui fazer a partir do meu sofá, do meu pequeno mundo certinho e rodeado de harmonia e felicidade.
Por muitas boas ideias que tenha sobre o assunto.
Disseram-me ontem, ao final da tarde, que afinal os tinha enganado. Que afinal também eu estava a caminho, lá, no meio deles. Não o meu corpo, que esse estava em casa a essa hora, mas o meu corpo é apenas uma pequena parte do que sou.
No final das férias tive mais uma infeliz notícia da morte de mais uma amiga do nosso velhinho e saudoso grupo de jovens. Cancro, mais uma vez. Juntamo-nos, uma vez mais, no seu velório e, como sempre, reatamos as conversas que ficaram suspensas algures no tempo, conversando como se nunca nos tivéssemos separado. Os que pudemos, cantamos no seu funeral. Bastou um curtíssimo ensaio para sabermos e recordarmos o que iríamos cantar e fizemo-lo de forma profundamente identificada e sentida. Ao olhar para a igreja a abarrotar de amigos seus, pensei como, apesar de tudo, seria bom morrer assim.
Na vida não temo muitas coisas. E a esmagadora maioria das que temo estão muito mais ligadas àqueles que amo que propriamente a mim. Mas temo a solidão. Não a solidão física ou a que encontro quando a procuro, e que por vezes tanta falta me faz, mas aquela que poderá decorrer das minhas acções, das minhas atitudes, do meu desamor. A solidão que é consequência do desinteresse, do egoísmo, do umbigo sem limites. Por isso temo que, um dia, ao olhar para mim, a única coisa que encontre seja um enorme vazio, um enorme nada, um buraco negro que tudo sugou à sua volta.
Uma das formas de me sentir mais feliz é a da redescoberta que habito e sou habitado. Que apesar de todas as vicissitudes, de todas as incongruências, de todas as fragilidades, tenho pessoas imunes ao tempo, para quem o tempo é o tempo de Deus e não o dos homens, para quem e com quem não existe o ontem ou o amanhã, mas que nos habitam de tal forma que tudo é - somos! - mutuamente, verdadeiramente, saborosamente, presente.
20130902
Uma destas noites, enquanto nos despedíamos, em família, das férias com uma caminhadazita na Foz, um dos sítios preferidos do nosso mundo, conversávamos como foi importante este tempo de reencontro. Deu para parar, para namorar, para fazermos coisas juntos e separados, para recarregarmos baterias, colocar o trabalho em ordem, para passearmos e conhecermos coisas novas. Um tempo muito bom e muito importante para nos reencontrarmos uns nos outros.
A minha mais-que.tudo passou uma parte substancial do tempo a tentar organizar a imensidão de fotos que estava espalhada por imensos álbuns, gavetas, livros e prateleiras. Durante mais de uma semana a nossa mesa da sala esteve impraticável tal era a profusão de fotos de passeios, aniversários, baptizados e comunhões. Como tudo o que se passa em família se passa em nossa casa, e ainda por cima somos muitos, temos um manancial de recordações verdadeiramente encantador e invejável.
Eu normalmente não ligo muito a fotos nem a este tipo de recordações. Como sou o fotógrafo de serviço, tiro bastantes, arquivo-as e raramente lhes volto a por a vista em cima. Desta vez, no entanto, foi incontornável fazê.lo. Não sem algum custo, porque descendo em linha directa de uma família de lágrima fácil e rever todos aqueles momentos da nossa vida é fazer uma viagem ao que de melhor fomos vivendo. Voltar a recordar os passos dos nossos filhos, as casas onde vivemos, as experiências, todas elas únicas, das nossas férias, dos nossos passeios, dos nossos melhores momentos - quem é que tira fotos dos momentos de dor? - das nossas conquistas mútuas e sempre partilhadas, é, de certa forma, voltar a vivê-las. E isso é muito bom.
Ontem à noite, por causa de um acontecimento que não é para aqui chamado, pus-me a pensar na imensidão que se tornou a minha vida apenas porque, nos momentos mais decisivos, tive a sorte de escolher o que devia, quem devia, e não me deixei encantar pelo mais ilusoriamente fácil.
Deus seja louvado!
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