20110930


Quando digo que gosto de envelhecer olham-me de lado. Numa cultura que endeusa o novo, o eternamente novo, bonito e saudável, de sorriso estúpido na boca, nem que seja à custa de toneladas de silicone, próteses dentárias e fortunas que colocariam um país africano no Primeiro Mundo, gostar de ficar velho soa a imperdoável anacronismo.
Paciência!
Uma das coisas boas da passagem do tempo é justamente a de nos podermos dar ao luxo de sermos quem somos. Podermos dizer o que nos vai na alma tendo apenas o cuidado de não magoar aqueles de quem gostamos mas com o desassombro de quem vai sabendo o que quer graças às escolhas que se foi fazendo ao longo da vida.
Este desassombro - que por vezes é pelos outros tido como "cara de pau", "granda lata" ou "convencido como o caraças". Paciência! - é o que me permite dizer por exemplo que me sinto muito feliz quando sinto que faço alguém feliz, que contribuo de alguma forma para que o dia de alguém seja mais sorridente, ou para que um qualquer problema seja ultrapassado. Pode parecer meio totó - paciência! - mas sinto nessas alturas que, se quiser, se estiver atento, e, sobretudo, se não me armar aos cágados - o que também por vezes acontece - posso ser um bocado da face e das mãos de Deus para os outros.
E isso deixa-me verdadeiramente feliz.

20110927


Quando estávamos em Moçambique passei os primeiros dias a tentar explicar que eu sou naturalmente sossegado. Normalmente quem contacta comigo não fica com essa impressão: ando sempre com a minha guitarra às costas, sorrio muito, gosto muito de ambientes descontraídos e bem dispostos e volta e meia digo até algumas larachas para gente rir. Não é, contudo, por muito tempo. Quando estou rodeado de pessoas, sejam elas amigas ou não, o meu ambiente natural, onde me sinto mais confortável, é num canto qualquer, sossegado, a olhar, a ver e a ouvir quem me rodeia. Apesar de estar só não me sinto só, nada disso. Vou vendo uns e outros, ouvindo uns e outros, lendo uns e outros. E sorrio muito, à medida que os vou vendo e descobrindo. Sempre.

No início, esta minha forma de ser causou alguma confusão, mas cedo confirmaram que eu sou mesmo assim. Gosto muito de pensar, de dialogar comigo próprio, de me colocar em causa, de saber exactamente o que sinto quando sinto e porque sinto. E isso apenas pode ser feito com um certo recolhimento. Tento sempre, contudo, não me fechar aos que me rodeiam, estar atento a eles, às suas necessidades, às suas alegrias e tristezas. É através desse olhar aos outros que eu me encontro comigo próprio, me confronto, tento estabelecer a minha medida justa de ser, tento até encontrar a medida do ser de Deus, que se me revela naqueles que me rodeiam. E tento crescer, nos outros e com os outros.

Ás vezes consigo, outras não, mas tento sempre.

20110923

andaimes


Voltei a senti-lo ontem.

Tivemos aqui a entrega dos diplomas do ano passado e voltei a senti-lo ontem.
Como a nossa presença na sua vida é fugaz! Bastam alguns dias de distância, uma mudança de paradigma, os olhos postos num qualquer outro futuro, e tudo muda. O olhar, o sorriso, a cumplicidade, tudo é feito agora de uma forma mais distante, mais fria, muito mais impessoal.

É normal que assim seja. Arriscaria a dizer até que é bom que assim seja. Temos que ter a capacidade de avançar, de continuar caminho, de fazermos nossas outras vidas e de sermos nós próprios vidas de outros. Tudo isso seria impossível de acontecer sem essa capacidade de avançarmos, transportando as nossas memórias, integrando-as naquele que queremos seja o nosso futuro.

A nossa tentação de nos estabelecermos no cimo da montanha, montarmos a tenda e apreciarmos a paisagem é enorme. Queremos sempre guardar as pessoas que nos são mais queridas, os momentos mais marcantes, as experiências mais profundas de forma a vivermos delas, da sua eterna e constante repetição. Quando o fazemos esquecemos que apenas nos ligamos a outros porque em algum momento da nossa vida nos fomos desligando dos nosso pais, dos nossos amigos da infância, dos nossos primeiros professores, e que todos eles, uns mais outros menos, fazem parte agora do património que constitui o que verdadeiramente somos. E que se tivermos sorte nos voltaremos a ligar a umas outras pessoas que terão um papel tão importante e tão fundamental na nossa vida como o tiveram aqueles de quem tanto nos custa desligar hoje.

Quando olhamos para um edifício vemos apenas o que está acima da superfície. Vemos a sua cor, a sua beleza, o tempo que por ele já passou. Se gostarmos verdadeiramente desse edifício até nos podemos dar ao trabalho de o conhecer melhor e investigamos os seus alicerces, a planta que o tornou possível, conseguindo até adivinhar a ideia do arquitecto quando o concebeu. Podemos ver quase tudo o que tornou aquele edifício possível. Excepto uma coisa sem a qual a construção não seria possível: os andaimes. Estavam lá desde o início da construção, acompanharam toda a construção, foram a última coisa a ser retirada terminada a construção. Apesar de imprescindíveis, não há contudo qualquer registo da sua presença. Colocam-se quando ainda não há nada para apreciar e são retirados para não esconder o que é para ser apreciado. No final, ou são entulho ou então, na melhor das hipóteses, servirão de suporte a uma outra obra.

Sempre que penso em andaimes penso no Sr. Vicente. Marcou-me muito,pelo que dizia, pelo que não dizia, pelo prazer que tinha em servir os outros. Ensinou-me muito, principalmente a beleza de ser andaime. A determinada altura os nossos caminhos separaram-se e nunca mais nos vimos. Soube há alguns anos que ele tinha falecido e não me tinham dito nada. Chorei baba e ranho.

Por vezes gosto de pensar em mim como andaime.
Se no fim mais alguém o fizer, já valeu a pena.

20110921


Leio e oiço muitas vezes que o melhor mesmo é não nos envolvermos, não nos incomodarmos, fazermos de conta que o que ouvimos e vemos não é nada connosco. Assobiamos e passamos ao lado.
Não, obrigado. Não consigo, não quero, não se faz, não tem nada a ver comigo. No dia em que isso acontecer, internem-me, que eu já não faço nada aqui.
Incomoda-me? Ainda bem, porque eu tenho mesmo a tendência para me acomodar, refastelar, vegetar, o que quer que seja, e por vezes preciso mesmo de uma qualquer abanão que me faça avançar.
Comove-me? Ainda bem, porque me move ao encontro do outro, daquele que comigo todos os dias partilha um pouco de si e leva em troca um pouco de mim.
Poderia eu, porventura, trocar estas formas de estar e de viver e fazer de conta que não era nada comigo?

Não consigo.
Ainda bem.
Estou vivo.

20110920

Lembrei-me hoje de uma coisa que sempre dizia aos meus filhos quando eram pequenos: "o não consigo não existe." Ainda na semana passa ouvi da boca do Nuno algo parecido, mas melhor: "existem apenas dois tipos de pessoas: os que conseguem e os que nunca tentaram."
Vem isto a propósito da conversa que acabamos de ter, eu a minha mais-que-tudo, durante o habitual périplo que costumávamos ter e tentamos retomar. Mais uma das nossas filhas entrou esta semana para a Faculdade. Não houve stress nenhum, entrou na primeira opção, no local onde queria, sem o mínimo constrangimento ou dificuldade. O mau da coisa é que quando soubemos o resultado dissemos "ah e parabéns e tal" sem fazermos nenhuma festa, nada de especial. Apercebemo-nos disso apenas quando contamos aos amigos e estes nos dão os parabéns e dizemos que temos muita sorte, e quem lhes dera ter uns filhos assim, e nos deixam inchados como perus em véspera de Natal.
É triste. Eu acho triste. Claro que é o resultado de muitos anos de trabalho, de canseiras, de tentar educar o melhor que se pode, de abdicar de muita coisa secundária para que eles possam alcançar o essencial com esta facilidade.
Mas ainda assim é triste.
Logo tenho que lhe dar um beijinho



20110915


Não sou particularmente fã de reencontros. De grupo, nomeadamente. Sei que invariavelmente têm lugar, acontecem sempre, particularmente depois de uma experiência de comunidade forte, como foi a de Moçambique, é a de Taizé, Compostela, Colónias, etc. Apesar disso, quase nunca falto. Nem faço sacrifício algum em ir. Mas vou preparado.
Ontem tive um desses momentos: um jantar de Moçambique com as nossas famílias. Foi bom estarmos juntos, foi bom darmos rostos aos nomes das pessoas de quem tínhamos saudades, foi muito bom voltarmos a jogar ao lobo. Mas foi apenas isso: bom. Nada que se compare com a experiência extraordinária, arrebatadora, que tivemos em Moçambique. E que, por isso, tudo teria mesmo que saber a pouco.
É por isso que ofereço alguma resistência a estas tentativas de reencontro. Gosto muito de os ver, de voltar a estar com eles, e, particularmente em relação aos que não andam cá, tenho mesmo que aproveitar estas alturas para os poder rever. Mas o tempo para conversarmos é sempre muito curto, já se passaram muitas outras coisas entretanto, a própria disponibilidade mental é outra, e acabamos por ficar com demasiadas conversas a meio, arranhando a superfície, mas não ousando ir mais longe que isso. Prefiro sempre, por isso, escolher as alturas para voltar a conversar, olhos nos olhos, com mais calma, mais de encontro e menos, muito menos, de circunstância, que é algo que eu detesto.
Creio que nestas coisas, como noutras, a idade e a experiência são muito importantes. Apesar de me ser sempre muito difícil passar de um estado a outro, já consigo fazer o luto de algumas experiências e pessoas de uma forma mais integrada e, se calhar, menos dolorosa. Já vivi o suficiente para perceber que a vida se encarrega de colocar no nosso caminho aquelas pessoas que são importantes para nós, nem que seja à distância de um click.
Claro que continuo, todos os dias, à espera dos seus sorrisos, dos seus olhares, das suas mensagens, dos seus "faces".
Mas já consigo esperar sentado.
Calma e pacientemente sentado.
É a idade!

20110909


Alguém me perguntava, num destes dias, se era muito mau não conseguir transmitir aos outros muito do que se passou lá, naquela terra de fim do mundo. Eu sorri e respondi que não, não era muito mau. O que se passa é que há coisas que aconteceram durante aqueles dias que são impossíveis de se transmitir.
Como é que se transmite, por exemplo, que, apesar de estarmos longe como o caraças daqueles que amamos, apesar das saudades que nos cortavam por dentro, apesar do cansaço acumulado, estamos felizes por termos o privilégio de estar naquele lugar, naquela altura, com pessoas fabulosas? Como é que se explica aos outros a explosão de pura alegria que meia dúzia de canções pimbalhescas faz sentir enquanto se arruma uma cozinha, a forma como as defesas de cada um vão dando lugar à partilha, a maneira como estávamos atentos uns aos outros, como sentíamos que as dificuldades, as alegrias, as saudades, as pequenas vitórias e derrotas diziam respeito a todos e cada um de nós?
Não consigo ver esta foto sem sorrir. Muito e muito cá por dentro. Quando cheguei à cozinha e vi como dançavam, a alegria com que o faziam, sem pruridos de qualquer espécie mas dando largas à alegria, como o fizeram de uma forma absolutamente espontânea, como estavam todos, juntos, uns nos outros, apercebi-me que aquela parte da missão - uma das que mais temia - tinha sido um sucesso completo. Apesar de serem pessoas muito diferentes, apesar de estarmos já, naquela altura, perto do fim da missão, apesar dos avisos que nos fizeram que iriam haver alturas em que estaríamos cansados uns dos outros, ali estavam eles, a dar largas à alegria que sentiam por estarem juntos.
Como se fala aos outros desta alegria?
Como se fala aos outros da alegria que eu próprio senti, naquela altura, por ver como os meus meninos estavam bem?
Não se fala.
Tão pouco se guarda.
Não se faz nada.
Com o tempo aprendemos que há coisas assim.
Que são para serem nossas.
Por pura incapacidade de as fazermos sentir aos outros.

20110908


Digo frequentemente qualquer coisa como "veste um sorriso e faz-te à vida." Não que menospreze o valor de uma boa choradeira: chorar faz muito bem à alma e tenho para mim que muitas vezes nãos e consegue (re)começar nada a sério sem deixar que as lágrimas lavem a alma. Apesar da dor de cabeça que, invariavelmente, se instala quando choro, nunca senti que chorar me fizesse senão bem. Não é frequente, muito menos público, mas quando tem que acontecer, não me cai nada por causa disso.
Mas acredito que o sorriso é uma arma bem mais poderosa que o choro. É muito ais motivadora, dinamizadora, desbloqueia aquelas alturas em que estamos chateados sem saber muito bem porquê e, mais importante ainda, um sorriso é normalmente retribuído com outro sorriso. E de sorriso em sorriso vamos ganhando o dia. Para além disso, afasta os "o que tens?" e os "passa-se alguma coisa?" que eu detesto.
Em Moçambique ficaram gravadas as palavras do Irmão António logo no primeiro dia em que nos conhecemos. "Há pessoas da minha família que por vezes vêm cá e quando vêem as condições em que os meninos vivem, choram como desalmados. Eu zango-me logo. Ide chorar para a vossa casa que os meninos precisam é de quem os ajude. Chorar não adianta de nada. "

20110907

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Nunca hei-de perceber a dificuldade que algumas pessoas sentem em expressar sentimentos. Positivos, claro,que os negativos é outra história. Mais incompreensível é, ainda, quando a minha experiência me diz que ficamos sempre melhor quando abrimos a torneira e nos deixamos ir, seja rindo, dançando, chorando e por vezes até cantando a altos berros.
Quando estávamos em Moçambique um miúda extraordinária, com umas capacidades absolutamente fora de série no campo da dança, disse-me a determinada altura que a minha companhia era muito boa para lhe levantar a moral e fortalecer o ego. Seja. Se o que eu digo servir para alguma coisa, se servir para ela acreditar um bocado mais em si própria até de forma a agradecer o extraordinário dom que possui e o colocar aos serviço dos outros, já valeu o dia. Se servir para alimentar egos bacocos então mais valia ter estado calado. Mas isso já não depende de mim. Nunca depende de mim aquilo que os outros fazem com o que lhes digo, sobretudo quando aviso insistentemente que não sou para ser levado a sério. E não é uma forma de sacudir a água do capote. Apenas de dar voz e espaço a que cada um faça o seu próprio caminho.


Li hoje, aqui http://www.ionline.pt/conteudo/147575-porque-se-escreve?idEnvio=14 algo interessante. Eu não sei ao certo porque escrevo. Nunca o soube. E faço-o desde que me conheço. Por vezes, como a minha-mais-que-tudo não gosta que eu escreva - partilho em demasia com demasiada gente - decido não escrever. Quinze dias. Não mais que isso. Depois, como qualquer junkie que se preze, apanho-me a rabiscar qualquer coisa, apressadamente, meio letárgico, meio sem me dar conta. Não é nada de jeito, apenas umas frases, pequenas, que vão sucedendo a umas outras, e as coisas começam a fazer sentido cá por dentro. O possível, porque por vezes isto cá por dentro é mais confuso que Santa Catarina em época de saldos no Natal. O que é certo é que escrever é uma necessidade absoluta para mim. Pode ser aqui, pode ser num outro blogue, pode ser no meu Moleskine, pode ser nas costas de uma factura qualquer que esteja à mão, podem ser textos longos ou curtos, ideias fantásticas ou banalidades das quais me envergonho cinco minutos depois. Como nunca releio o que escrevo, não lhes dou muita importância. O certo é que, invariavelmente, limito-me a abrir a torneira sem sequer ligar muito ao que deixo, sem reflectir muito na altura em que escrevo - escrever é uma consequência normal da reflexão, por isso... - sem me levar a sério, sabendo que o mais provável é que amanhã escreva algo que esteja em justa oposição com o que escrevi hoje. Na escrita, como na vida, nunca minto. Transmito sempre o que sinto. Posso ser - sou-o, sei bem - inconstante no que sinto. Mas isso...

20110906


Chegado aqui, reencontro-me com os meus velhos amigos livros, com o seu cheiro tão característico que me seduziu desde o primeiro dia - ao qual regresso todos os dias. Levanto os olhos e o espectáculo, contudo, não é bonito: todas as mesas têm livros empilhados, tal como os deixei em plena azáfama moçambicana. Não sei ainda o que lhes fazer, onde os guardar num espaço que não tenho, onde os colocar sem sem me incomodar com o inevitável sentimento de perda. Detesto "arrumar" livros, colocá-los em caixotes, longe da vista dos seus possíveis leitores. Lembro-me sempre do que dizia na catequese, que um livro só é livro quando é lido. De contrário não passa de um bibelot. Escondê-lo, retirá-lo da prateleira, colocá-lo à parte é impedir sempre alguém de usufruir do prazer da sua leitura, é sempre tarefa ingrata. Aliás, escolher é sempre tarefa ingrata. E nunca me deixa satisfeito.


Bambora

  Não é estranho que nos digam que «ser homem é muitas vezes uma experiência de frustração». Mas não é essa toda a verdade. Apesar de todos ...