20180129
Existem, naturalmente, traços pessoais que me acompanham desde que sou gente. Um dos mais comuns - e dos que mais me irritam - é o de dar conselhos que, se tivesse capacidade de os aplicar em mim próprio, me salvariam de situações estúpidas e aflitivas.
É-me memorável um dos anos em que, em Taizé, vieram até mim para conversar pessoas cuja sensibilidade e bom senso eu me habituei a admirar. Recordo a estranheza e a minha insistente pergunta: porquê eu? Para mim, era algo semelhante ao que João Batista deve ter sentido ao batizar Jesus: um profundo contra-senso. O mais normal, o mais natural, o mais lógico, seria que tivesse sido eu a pedir para conversar. Isto se eu conseguisse, alguma vez, ir ter com alguém para que me escutasse e me aconselhasse. Causa-me sempre enorme estranheza que me peçam conselhos quando o mais que eu consigo, nos meus melhores dias, é acolher com um sorriso e ser, verdadeiramente, todo ouvidos. Basta isto, esta atitude de escuta e a certeza de um tempo apenas nosso, para que as melhores respostas sejam encontradas porque quem precisa delas. Mas raramente são dadas por mim.
Digo muitas vezes, em tom de verdade-brincadeira, que há três coisas que eu faço muito bem: contas ao dinheiro... dos outros; educar os filhos... dos outros; resolver os problemas... dos outros. Aplicasse eu esta sageza ao que me rege e outro galo cantaria.
20180125
Vou lançando avisos. Avulsos. Aqui e ali. Como quem não quer a coisa. Já não durmo como dormia antes. Já não tenho a capacidade de passar noites em claro. Já preciso de, pelo menos, um colchão e uma almofada. As articulações rangem. O estômago já não aguenta qualquer coisa. Vou fazendo planos, a médio prazo, para quando eu não conseguir, de todo, fazer o que faço. Com quem faço. O que a idade dá em experiência e sagacidade mental rouba em capacidade física. Com juros. Não é um drama. Pelo menos não para mim. Eu gosto das queixas do corpo apesar da dificuldade em me adaptar às novas exigências. Gosto de sentir a idade e o que a ela vem agarrado. Gosto da serenidade, da tranquilidade, da progressiva percepção que nada é assim tão importante nem tão decisivo que valha muitas das histerias que imaginamos ter. Gosto de dar um valor maior ao que tem um valor maior e de menorizar o efémero. Isto não é conversa de velho. É conversa de quem não desistiu, ainda, de procurar.
20180124
Existe, entre quem se ama, uma sintonia fina que nunca cessa de me surpreender. Não tem nada a ver com personalidade, com formas e maneiras de ser ou de agir, muitas vezes não tem a ver sequer com carácter. É algo muito mais leve, muito menos evidente, muito menos percetível, muito mais escapável. É algo que exige disponibilidade interior, caminho, abertura total, baixamento de defesas e, por isso, entrega absoluta. Neste tipo de sintonia nada há de objetivo. Uma vez percebida, como que se nos impõe, ocupando-nos a cabeça por via do transbordo da alma. Nada tem de racional, muito menos dá qualquer importância às inconveniências. Não liga puto ao instituído porque transforma, a dois sentidos, interferindo em tudo o que vem, condicionando tudo o que vai. Quem ama vê o que mais ninguém vê, atesta o que para todos é inexistente, acredita e alicerça-se com alegria no verdadeiramente inacreditável. Por isso quem ama assim é sempre novidade, sente sempre novo, desafia sempre, e um amor destes apenas pode crescer e fazer crescer. Quem ama assim não teme. Nada. Nem sequer deixar de amar assim porque o futuro não existe ainda e o presente é demasiado intenso para que possa dar lugar ao que quer que seja. Amar assim, nesta sintonia, é da ordem do inconsciente, do avassalador, do totalizante. Amar assim é fabuloso! Verdadeiramente fabuloso!
20180123
Um dos meus filhos precisava de ter tantas vidas como os gatos. É muito bom em imensas vertentes, o que lhe causa problemas de escolha. Quando era miúdo, chegou uma altura em que eu lhe exigi que fizesse uma escolha: ou futebol ou jazz. As duas, não poderia ser. Disse-me esta semana que se tinha arrependido de ter escolhido o futebol. É a vida! Respondi-lhe para não se arrepender: o seu percurso é o seu percurso, a sua história de vida é a sua história de vida, e nela cabem as escolhas que fez e que vai fazendo.
O extraordinário não é chegar a esta conclusão quando se olha para o que já decidimos fazer. De uma forma ou de outra, se estamos em condições de o fazer não nos podemos queixar em demasia. O difícil é ter esta certeza, esta confiança, quando apanhamos com as consequências das asneiras que escolhemos fazer. É em plena tempestade que se vê a fibra do marinheiro, não nos relatos da viagem, normalmente escritos quando o vento amainou e se assiste a um belíssimo por do sol. É na dúvida, na incerteza, no medo do que poderá acontecer no segundo seguinte que se forja a vida. É aí, justamente nesses momentos de aflição que decidimos entre a entrega e a fuga, a confiança e o desespero, arriscar ou perder.
E o melhor mesmo é viver assumindo o que se é, o que se fez, o que se foi escolhendo, dando Graças por tudo isso.
20180121
Ninguém nasce para magoar. Ou ser magoado. Ninguém nasce para o desespero ou para a dor ou para o desalento. Ninguém nasce para ver o sofrimento provocado no olhar e na alma. Dor, desespero, desalento, sofrimento são por isso alguns dos maiores ladrões do sono. Do meu sono, pelo menos. A responsabilidade de amar - amar acarreta sempre responsabilidade! - é também a responsabilidade de suavizar todas estas expressões negativas do amor. De assumir. De consolar. De alterar. De recomeçar.
Defendia eu ontem, como defendo sempre, que as redes sociais não são assim tão negativas para o relacionamento das pessoas. Que implicam sim uma adaptação da nossa parte à ideia de relação, que, pela primeira vez na história da humanidade, não conjuga distância física e temporal. É imediata sendo mediada e por isso propensa a desfasamentos e ilusões. Hoje posso namorar com alguém que está do outro lado da vida com a ilusão da proximidade. Mas assim que se desliga da rede e se olha à volta redescobrimo-nos imersos na realidade. Afinal, em determinada altura, a rede tem que ser desligada, mas esse botão apenas funciona no aparelho.
Não me lembro de ter escutado ou lido vindo de alguém credível que amar é coisa simples e fácil. Há medos e confianças, receios e entregas, sonhos e desilusões. Amar é cheio de começos e novos começos, de fins sempre renovados e juras irremediavelmente destinadas ao fracasso. Amar exige estar. Até pode ser ocasionalmente alimentado à distância, mas exige sempre estar, em determinada altura, para que os começos sempre novos possam ser devidamente caucionados pela doçura do olhar e confirmados pelo calor dos corpos.
Amar é também aceitar dolorosamente que por vezes amar só não basta. Porque há alturas em que percebemos que nada substitui o calor de um abraço devidamente caucionado pela transparência desse amor no olhar. Assim mesmo. Imediato mas não mediado. Olhos nos olhos.
20180115
As amarras do passado e a vontade impulsionada pelo medo de não repetir erros cometidos são como a pimenta em excesso: roubam o sabor original da vida. Acabei agora de dizer a miúdos que o único antídoto para o medo era a confiança "qual a palavra para confiança na catequese? fé". A resposta uníssona apenas prova que o catequista deles é um bom vendedor. Tivesse eu essa confiança naquele que eu tenho como guia e as coisas seriam um pouco diferentes. Como nem sempre a tenho, como eu sou mestre no uso do complicómetro, como eu, por defeito ou feitio, tenho esta mania de contestar e por à prova e inquirir ad nauseam, descubro-me em cima do muro, quase em permanência. Talvez o cimo do muro seja o meu lugar. Talvez o muro seja o meu sicómoro e eu viva à espera, atento a quem passa, na secreta ânsia de um convite. Talvez eu sinta tanta saudade do muro que para lá volte, de vez em quando, na falácia argumentativa que é apenas para ver a paisagem. Talvez eu me sinto mais confortável assim, com sol na eira e chuva no nabal, com um olho para cada lado, como um camaleão, com idêntico mimetismo, sem no entanto abandonar o cimo do muro. Talvez seja aí, justamente aí, no cimo dos muros desta vida, que encontre a minha rota. Talvez seja aí, afinal, que tenha que prosseguir viagem.
20180111
Tomara que amar fosse assim. Tão simples. Enfrentávamos a intempérie debaixo de uma rosa e tudo passaria rapidamente. E continuaríamos, incólumes, feitos de perfeição e boas memórias. Não é assim. Nada na vida é assim. E arrisco-me a dizer que ainda bem que não é assim. Assim são todas as coisas corriqueiras, as que não têm valor, as que não nos deixam marcas suficientes para que lhes possamos dar valor. Assim é a estrada direitinha, plana. sem curvas à esquerda e à direita, sem subidas e descidas, monótona, cinzenta, pachorrenta, facilmente olvidável. Assim serão porventura os sonhos, feitos de desejos, recheados de anseios, avidamente sonhados de olhos abertos ou fechados, irreais e fantasiosos. Assim serão os projetos, uma vez alcançado o seu lugar jurado cativo no calendário, as datas marcadas como se não existissem imponderáveis e indesejáveis e novos desejáveis até. Assim serão todos os princípios, carregados de irrealidade, da mesma matéria do inalcançável. Mas nada disso tem o teu cheiro, nada disso tem o teu toque, nada disso tem o teu sorriso ou o brilho do teu olhar. Nada disso é pele e sangue a correr desalmado nas veias. Nada disso é suspiro e falta de ar. Nada disso é sonho de olhos abertos quando olho para ti e ainda não acredito que, apesar de tudo, ainda queiras ser minha. Porque é isso, é apenas esta imensidão que me habita e que tem o teu nome, que vale todas as intempéries. Abrigados na beleza e fragilidade de uma rosa.
20180108
Ás vezes penso e digo coisas que, para além de confundirem bastante, assustam o que me são e estão mais próximos.
Foi um fim de semana que começou antes de começar: logo na sexta-feira recebi uma sms a informar a morte de uma amiga. Em boa verdade, a minha proximidade com ela é muito posterior à que tenho com a filha, que foi quem me enviou a sms. Apenas mais tarde, num CPM que fizemos juntos, contactei com ela e pude confirmar de onde vinha a doçura da filha. Ontem, para acabar, a notícia de mais um tumor em alguém próximo, por intermédio dos meus filhos.
Hoje, enquanto conduzia para trabalhar, a cabeça andava lá em cima, como de costume. E rezei por ambas, pedindo a Deus que olhasse por elas. E depois pensei como era estúpido e presunçoso da minha parte rezar por ambas. Que deus seria o meu se precisasse que eu rezasse para cuidar das "minhas" pessoas? Que tipo de deus sujeitaria o seu amor à recordação falível e discricionária de quem quer que fosse? Que amor seria esse, feito de moeda de troca, de vassalagem prestada, de comércio de atenção? Que deus seria esse? Não aquele em quem acredito ao ponto de mergulhar nele a minha vida.
A questão é que depois vêm à cabeça todas as bênçãos e todos os pedidos e todas as formulações e todas as missas de intenções que todos os dias são levados a cabo na Igreja a que pertenço. A questão é que depois recordo o que estudo e estudei, as inúmeras conversas off com tantos sacerdotes, que me dizem, em off, que muitas dessas coisas não fazem sentido à luz do evangelho mas que são costumes que, afirmo eu, importa perpetuar, até pelo condicionamento moral e financeiro dos que acreditam. A questão é sentir que muitas vezes a cara não bate com a careta. A questão é eu viver mergulhado de cabeça nesta Igreja que amo e na qual acredito mas que tem tantas coisas que eu preferia não existirem. A questão é que quando partilho isto com quem, de certeza, tem mais fé do que eu mas não a discute, me olham, assustados, de lado, na calada esperança que eu tenha apenas acordado com os pés de fora.
20180105
"Não basta não praticar o mal, é preciso escolher o bem." Papa Francisco
A Verdade e a Superação exercem, frequentemente, em mim, forças e poderes contraditórios. Por um lado existe desde sempre, mais que uma mera procura, uma demanda que tem a busca da Verdade como bússola. A Minha Verdade, fundamentalmente. E nessa demanda carrego, de forma permanente, uma bolsa onde estão colocadas todas as coisas que vou escutando de mim. Talvez seja por isso que, a esse respeito, tenha uma memória prodigiosa que de nada me deixa esquecer. Recordo coisas que o meu pai me disse era eu ainda muito pequeno - nenhuma delas abonatórias - e que me continuou a dizer até tarde na minha adolescência, até eu “desligar”. Rótulos, soundbites, como agora se diz, que ecoam permanentemente na minha cabeça e que ganham vida própria quando tenho que uenfrentar novos desafios. Não sei se por causa desses soundbites, sempre vivi as opiniões positivas acerca de mim de forma muito extremada: nos momentos em que estou bem, desvalorizo-os e digo-me que apenas dizem isso porque não me conhecem; nos momentos de maior fragilidade, agarro-me a elas como um naufrago a uma tábua de salvação. Uma e outra são formas muito dúbias de escutar e, sobretudo, de fazer caminho.
Hesito por isso com frequência entre a minha Verdade e a Superação de mim. Aceitar a minha Verdade tranquiliza-me, concilia-me comigo próprio, ajuda-me a gostar de mim. Acomoda-me. Creio que por aí me deixaria ficar, naturalmente, se não tivesse fé.
A sensação que tenho muitas vezes é a do acolhimento apenas para me transformar. Sinto muitas vezes, mesmo, efetivamente, a presença e o chamamento de Jesus na minha vida. Particularmente nas alturas de maior fragilidade, quase que sinto os seus braços em torno da minha alma, a fazer-me sentir amado assim, justamente como e pelo que sou. Mas nunca se fica por aí. Como um doente em convalescença, a cura da alma é apenas o ponto de partida, o impulso que necessito a cada momento de fragilidade para me poder superar e dessa forma chegar mais longe. E mais longe é dar resposta, invariavelmente, àquilo para que me sinto chamado. Paradoxalmente, é a fragilidade, a dor na fragilidade, a solidão na fragilidade, que me faz chegar mais longe. Recolher-me no Pai é, simultaneamente, consolo e desafio, entrega e querer, rendição e superação. E encontro de um novo patamar de Verdade: a minha Verdade em Deus.
20180102
Um dos motivos porque sou cristão é porque não acredito numa religião que não encontre espaço para o homem. Ao humanizar-se, Deus quis prescindir do seu absolutismo. Ao fazer-se homem, Deus quis relativizar-se, tornar-se acessível, conceder-nos o domínio da possibilidade. Querer fazer-se um de nós é também expor-se a nós e à nossa forma de amar. É aceitar o risco de se propor a nós.
Convenhamos que é preciso amar muito para prescindir de tudo e aceitar isto!
Convenhamos que é preciso amar muito para prescindir de tudo e aceitar isto!
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