20170531
Sempre tive dificuldades com o ser adulto. com o que se é suposto ser quando se é adulto. Sobre a seriedade e a palavra e o exemplo e a atitude e essas coisas todas que é suposto ter quando se é adulto. Eu, que sou casado e tenho cinco filhos, estou sempre à espera desse click que me ajude a perceber que ahhh, hoje sim, a partir de hoje sou adulto. Talvez deva dar mais importância ao planeamento que ao sonho, aos projetos que aos anseios, à realidade que à fantasia, aos pés no chão que à cabeça no ar, mas cheira-me que isso não irá acontecer nunca. A cada dia em que me forço a viver mais focado na realidade sucedem-se meia dúzia de despertares devidamente salpicados pela imaginação. Contrariamente ao que foi acontecendo nos últimos anos, fui aprendendo que nem tudo é mau, nisto. Ainda ontem esqueci a impiedosa ditadura do físico - na verdade a única coisa em mim que me recorda a idade - e joguei bola com os miúdos do RAIZ. É certo que hoje mal me mexo sem dar um ai mental, mas não são esses os ais que mais temo. O pior mesmo é quando esses ais mentais dizem respeito não ao corpo, mas à alma, à ausência de memórias felizes. Vivesse eu encarcerado numa ilha e nada disto teria grande importância. Não existiria repercussão nos outros desta minha congénita criancice. Não haveria espanto ou críticas ou incompreensões ou, no pior dos casos, choro e ranger de dentes. Haveria eu, apenas eu, fechadinho na minha ilha, sem chatear ninguém, sem gerar expectativas, sem ter que cumprir expectativas, sem nada nem ninguém, sem memórias, sem vida.
Entre a inúmeras áreas onde não sou nem nunca fui grande coisa, a da incapacidade de escolher destaca-se com grande notoriedade. Normalmente não escolho. Deixo que corra, até que não me reste alternativa. Não sei se por odiar despedidas - faço sempre fraquíssimas figuras! - ou medo das consequências ou incapacidade de aceitar perdas - e escolher significa sempre perder - ou por tudo isso junto, ter que escolher é matar-me. É-me muito mais natural deixar-me envolver até aos ossos com o que quer que seja, usufruir a intensidade do momento, não pensar no que acontecerá amanhã, e deixar que a vida e os acontecimentos da vida me transportem nos seus ombros. Será esta, porventura, a maior marca da idade em mim. Por um lado, já não tenho capacidade de viver infinitamente com um máximo grau de envolvimento, até por motivos de saúde. Ao longo deste ano letivo foram vários os momentos em que o corpo e a mente se ressentiram seriamente de noites mal dormidas devidamente acompanhadas pela tensão constante de tentar fazer as coisas bem. Em vários momentos, depois de um fim de semana de trabalho intenso, cheguei a casa completamente rebentado e a precisar de caldo e descanso. E isto é um problema para mim, porque dificilmente escolheria não participar em qualquer uma das atividades que me provocou esse desgaste. Não sei como, mas terei que tentar dar a volta a isso. Tentando, como sempre, até ao limite, conciliar o irreconciliável.
Mas se fico assim com trabalho, agora imagine-se como fico quando tenho que fazer escolhas noutras situações mais pessoais e infinitamente mais implicativas. São meses de noites mal dormidas, de conjeturações, de planos e projeções, de ações concretas e palavras concretas e, inevitavelmente, de avanços e recuos, com todo o desgaste que isso provoca em mim e, particularmente, nos que vivem à minha volta. Para mim, escolher é sempre, sempre, perder. Sempre. E viver com a perda. E eu nunca me habituo a lidar com a perda.
20170525
Aqui há uns tempos assaltaram-me o carro. Num parque de estacionamento. Partiram um dos vidros e levaram tudo o que lá tinha. Nunca mais voltei a colocar o carro naquele parque. Mesmo quando volto àquele lugar coloco o carro num outro parque, a poucos metros de distância.
Não consigo imaginar como será para um pai ter que voltar naquela cidade. Não imagino o medo, a ansiedade, a desconfiança, o permanente olhar por cima do ombro. Eu, que levei imenso tempo a habituar-me a ir para a cama apesar de os meus filhos ainda não estarem todos em casa. Eu, que apenas sossego no sono depois de confirmar, com os meus olhos, que eles estão ali, no quarto ao lado.
O Papa fala muitas vezes na cultura da indiferença mas, face a este tipo de acontecimentos, temos mesmo que, por motivos de sobrevivência, cultivar uma espécie de abstração generalizada. Sob pena de não conseguirmos dar dois passos seguidos fora da porta.
20170515
Silêncio!
Preparamos tudo isto com todo o cuidado. Não sabíamos muitas coisas, demasiadas coisas, para quem tem a responsabilidade de conduzir um rebanho de quase cem miúdos. Mais ainda quando se faz parte de um outro rebanho de milhares! Muitos imponderáveis, muitas coisas que não controlávamos, muita preocupação, mas uma enorme confiança naqueles que levávamos connosco. Afinal, já rezáramos juntos, já caminháramos juntos, já partilháramos intimidades e alegrias e dores suficientes para confiar que tudo iria correr pelo melhor. E não poderia ter corrido melhor!
Naquela manhã dissera-lhes que, acontecesse o que acontecesse, iriam ser dois dias dos quais se iriam recordar daqui por vinte anos. Apenas lhes pedi boas memórias. Acredito que, hoje, todos as temos. Uns dos outros. Uns nos outros.
No entanto, apesar da multidão, apesar da juventude, apesar da diversidade de pessoas e culturas e países e até de formas de viver a fé, foi o silêncio o que mais me marcou. O da manhã. Estar num recinto com milhares de pessoas, numa belíssima manhã de sol, e poder escutar o silêncio, apenas entrecortado pelo alegre chilrear dos pássaros nas árvores circundantes, é uma experiência avassaladora! Esperava encontrar Deus na multidão e na experiência sempre profunda e rica da Igreja Universal. Não O esperava encontrar, de todo, num silêncio ainda mais profundo que o de Taizé, imerso numa multidão incomensuravelmente maior que a de Taizé. Momentos antes presenciara pulos e cantares e até uma certa histeria - confesso que não partilhada por mim e até um tanto ou quanto incómoda - pela presença do Papa e, de repente, o mais absoluto e profundo e orante silêncio. Imensamente surpreendente, imensamente revelador, imensamente transformador!
Recordarei esta peregrinação por muito tempo! As nossas palavras, as nossas partilhas, a forma como estivemos juntos durante todo o tempo! Ansiarei por aquele silêncio. Que dificilmente se voltará a repetir. Pelo menos naquela dimensão!
20170511
Amar é muitas coisas, de muitas formas, sem regras pré-definidas, sem comos nem porquês. Amar não tem tratados nem muros ou modelos. Não tem géneros ou idades ou "deveria ser" e muito menos "não pode ser". Amar não tem conveniências nem alturas melhores ou piores ou choques alheios. amar não tem posse nem dono ou senhor e a única regra permitida é a da entrega na liberdade absoluta. Amar apenas vale quando se ama, o que quer que amar queira dizer, porque cada pessoa tem a sua maneira própria de amar, cada duas pessoas têm a sua maneira própria de amar, que pode não ter nada a ver com a minha própria maneira de amar. Amar não tem retas ou estradas asfaltadas mas caminhos e curvas e altos e baixos e acidentes e percursos acidentados por causa desses acidentes e percursos acidentados ainda que aparentemente não haja acidentes porque quando se ama tudo é tudo e nada é nada.
Esta mania de ensacarmos as formas de amar para as podermos levar convenientemente para casa e as podermos arrumar convenientemente nas prateleiras e as podermos exibir tão convenientemente às visitas lá de casa e aos amigos e aos conhecidos e aos familiares e às comunidades e grupos onde nos inserimos podem-nos sossegar a mente mas muitas vezes sobressaltam-nos o coração. Temos, ou melhor, tenho por vezes alguma dificuldade em deixar fluir, em desensacar, deixar que apanhe ar, abrir-me ao que poderá vir porque acredito, ou digo que acredito, que do amor só poderá vir coisa boa. E acredito que, ainda que aparentemente não seja bem assim, do amor efetivamente, apenas pode vir coisa boa. E acredito ainda mais que nada é melhor ou dá mais sentido à vida que amar.
20170509
Não sou de ter invejas. De coisas. Sou de ter algumas. De vidas. De momentos vividos.
Hoje vi mais uma vez santiaguistas. De manhã cedo, naquela sublime paisagem da Foz do Douro. Novos, velhos, homens, mulheres, acompanhados ou solitários, portugueses ou não, lá iam eles passo ante passo, com aquela mistura de cansaço e prazer no olhar, de quem se responde ao mesmo tempo que se pergunta "que raio faço eu aqui, estava tão bem em casa!", de quem sabe que é ali que pertence. Não passa um só por mim que não me desperte o desejo profundo de me juntar a ele. Um só. Por mim, corria para casa, enfiava meia dúzia de coisas na mochila e partia. Já. Hoje. Agora.
Há, nas caminhadas - mesmo naquelas pequenas que faço todas as manhãs antes de trabalhar - algo que me reconcilia comigo próprio e com a minha vida. Não sei se é o cansaço físico, se a concentração desconcentrada, se a prioridade que é dada à mente apenas para assegurar um pé a seguir ao outro e, de resto, liberdade total, não sei se é a solidão ou o silêncio ou a introspeção - ainda que caminhe com multidões de jovens ululantes - não sei o que é ao certo mas sei o que me provoca: um desejo imenso de partir.
Não tardará, se Deus quiser!
20170504
Uma das minhas filhas, por dever de profissão, contactou de perto com um dos casos da Baleia Azul. Conversávamos acerca dos motivos que poderão levar alguém a um tal nível de autodestruição. Ela, que conhece as minhas reacções primárias (tenho a tendência para a manifestação do choque inicial que rapidamente passa à aceitação) ficou espantada com o meu espanto. De facto, bastaram uns minutos de conversa para ela me fazer aperceber que, diariamente, lido com pessoas que são particularmente permeáveis a este tipo de fenómenos. Miúdos que não vêm qualquer sentido ou objetivo ou incentivo, mergulhados na ilusão das redes sociais, sem qualquer apoio ou interesse em casa. Os seus pais - progenitores, como muitos dizem agora - estão ou demasiado ocupados ou demasiado desinteressados com as suas próprias vidas, que vivem em paralelo e praticamente sem qualquer ponto de contacto familiar. São miúdos construídos sem alicerces, assentes numa rede com demasiados buracos, demasiado largos, nos quais se enfiam com demasiada facilidade. Claro que estão longe de ser a maioria - pelo menos nos meios onde atuo - mas, com facilidade, consigo pensar numa dezena de miúdos assim.
Não sou de grandes dramatismos. Nem sequer acredito que vivemos, hoje, tempos mais perigosos que todos aqueles que nos antecederam. Mas são estes os miúdos com quem lido, hoje. Com olhos, rostos e nomes concretos. Temos que ficar atentos.
20170503
Sabem aqueles amigos que temos e que nos embaraçam e que apesar de nos embaraçarem nós gostamos imenso deles, particularmente de algumas das suas características, que compensam em larga medida todos os embaraços que nos provocam? Para mim, Fátima é um desses amigos.
Na próxima semana estarei em Fátima. Com o Papa. Ambos dispensáveis. E no entanto, uma feliz coincidência. Confusos? Pois...
Eu gosto de Fátima. Apesar de Fátima. Gosto da Capelinha, gosto do recinto, gosto da experiência de Igreja Universal, gosto da Procissão de Velas, gosto de lá rezar o Terço, gosto de me encontrar com a Mãe e de lhe rezar, gosto das inúmeras atividades que já lá tive, desde noites ao relento a encontros com jovens, gosto de caminhar até lá e do que acontece enquanto caminhamos até lá. Mas para isso tudo não preciso nada que a Nossa Senhora tenha aparecido aos pastorinhos, nem dos pastorinhos, nem das pessoas de joelhos, nem da beatice, nem da posição da Igreja relativamente a Fátima, muito menos do comércio e do mau gosto que circunda Fátima.
Eu gosto do Papa Francisco. Em muitíssimos aspetos gostava muitíssimo mais do Papa Bento XVI, mas acredito que o Papa Francisco é o Papa certo no lugar certo no tempo certo. Gosto de algumas coisas que ele diz, gosto de alguns dos seus gestos, gosto menos dos seus escritos, que me parecem sempre algo ligeiros e banais, cuja profundidade se esgota com a rapidez de uma novela sul americana. Gosto imenso da sua descomplexicação da Igreja, da cúria, do vaticano, de muitas outras coisas com as quais não me identifico coisa nenhuma. Gosto da ideia de irmos ver o Papa a Fátima ainda que deteste o que espero encontrar: a loucura exacerbada como se de uma popstar se tratasse, os cânticos e a receção apoteótica, a multidão ululante, e essas coisas afins que, provavelmente, fazem parte da tal experiência da Igreja Universal.
Durante esta e a próxima semana tentarei ignorar o imenso folclore da coisa, como terços imensos e de extraordinário bom gosto (!) dormidas caríssimas, bicos de pés e coisas dessas e preparar-me-ei para o que verdadeiramente importa: uma experiência, espero que memorável, de partilha de vidas e momentos e cânticos e atitudes que nos engrandeçam enquanto pessoas e enquanto católicos. Sim, porque Fátima também pode ser isso.
20170501
Não costumo ter grandes problemas em acreditar na ressurreição. Abandono-me com facilidade ao Mistério no que não conheço e agarro-me à Esperança, que é o meu outro nome preferido da Fé. Em boa verdade, tal como dizia Pascal, nada tenho a perder neste acreditar. Impele-me a viver plenamente, impede-me de ser estúpido ao ponto de pensar que sou a medida de todas as coisas e, sobretudo, incentiva-me a não colocar a minha estupidez natural em prática, descarregando-a sobre os outros.
Contudo, se essa Esperança é pacífica para quando eu morrer, é-me muito mais difícil de concretizar na Vida. Adoraria ter a serenidade de quem sabe, no íntimo de si, que é incondicionalmente amado por Deus. Essa serenidade na certeza permitir-me-ia um outro arrojo, uma outra assunção de mim próprio, uma outra tranquilidade e liberdade para fazer as minhas próprias escolhas, colocando as minhas próprias sementes, e cultivar os meus campos como se outros não existissem.
Falta-me essa serenidade. Quotidiana. Falta-me ligar e escutar, de forma consciente, à voz que me será eventualmente mais importante, a da minha consciência, esse lugar onde dialogo com este Deus que habita em mim. Falta-me a confiança do abandono, sem olhar por cima do ombro, sem garantir reservas ou backups ou planos B, confiando que, afinal, sou amado incondicionalmente ao ponto de me pegarem ao colo, aconteça o que acontecer, faça eu o que fizer. Falta-me a minha confiança no amor ao ponto de não sentir necessidade de me esconder nos mais variados momentos, quando me sinto indigno e me afasto, por pudor, por vergonha, por nudez. Falta-me a capacidade de assumir essa nudez, esse despojamento de mim, o reconhecimento desavergonhado da necessidade de ser acolhido, recolhido, no amor. Falta-me permitir-me ser acolhido, recolhido, no amor.
Mas estou a aprender. Aos cinquentas, estou ainda a aprender. O que não é mau. Estou a aprender porque me estão a ensinar. A confiar, a recolher-me, a abandonar-me, a perceber que afinal o silêncio é o lugar onde o amor se semeia, o interior é o lugar onde o amor se cultiva, o quotidiano é o lugar onde o amor desabrocha e ganha vida. E que é sempre tempo de novas e melhores culturas.
Mesmo aos cinquentas.
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