Cabe. em todo o processo pascal, a nossa própria história. Há, em toda a sucessão dos acontecimentos de Jesus, uma reinterpretação da nossa história de vida. E há, em toda a sucessão dos acontecimentos da nossa vida, uma reinterpretação da via sacra de Jesus. Como os relemos a partir do fim, todo o processo nos é inquinado. Sabemos de antemão que Ele é Deus e subestimamos o seu sofrimento, sabemos de antemão que Ele será condenado e desvalorizamos o seu silêncio, acreditamos na sua ressurreição e acreditamos absurda e intimamente que Ele se teria prestado a toda aquela encenação, menorizando-nos. Se o mesmo fizéssemos à nossa vida, que leitura faríamos?
Aconteceram-me várias mortes, nestes últimos tempos. De novos e velhos. Prolongados e repentinos. Amigos e familiares. Eu, que durante anos apenas testemunhei vida, ultimamente dou comigo numa sucessão de velórios e funerais e interrogações profundas sobre o profundo sentido da vida. A última das quais foi no domingo passado, Domingo de Páscoa. O patriarca de uma família de amigos à qual estou intimamente ligado (quando lá cheguei, a matriarca disse "aqui está o meu filho adotivo!") falecera, de doença prolongada. Mal cheguei, abracei-me e beijei o filho, que me disse "morreu num grande dia, e como viveu: em paz". Tive o privilégio, um pouco mais tarde, de o ver e às irmãs, juntamente com os seus filhos, a fazerem festas ao corpo do pai, sempre com um sorriso nos lábios. A única coisa que consegui pensar foi em mim assim estendido e desejar que os meus filhos tivessem aquele estado de espírito e aquela atitude quando chegar a minha vez. E, como inevitavelmente acontece sempre que estamos juntos, recordei, com um misto de dor e saudade, o Paulo, um dos meus maiores amigos da adolescência, filho daquele que ali jazia, cuja morte nos apanhou completamente desprevenidos. Recordei como a minha "adoção" por aquela mãe esteve desde sempre ligada à minha amizade com o Paulo e à minha presença junto dela em alguns dos seus momentos de dor profunda. E voltei a sentir-me grato por estar ali, naquele funeral, com eles, como estivera junto do Paulo.
Todos nós temos o nosso processo pascal. Todos morremos e ressurgimos, aparentemente do nada. Todos nós sofremos e gememos e choramos e perdemos e ganhamos e somos carregados ao colo e carregamos outros. Todos nós? Se calhar, não. Se calhar, por conhecermos a via sacra de Jesus, nós vemos melhor o sentido da nossa própria via sacra. Se calhar temos essa responsabilidade. Provavelmente temos essa responsabilidade.

Comentários

Mensagens populares deste blogue