Ontem fui buscar a Isabel à Casa do Calvário, uma obra que pertence aos Gaiatos. Já conheço os Gaiatos há muito tempo, mas, curiosamente, não tinha recordação nenhuma daquela casa. Que é muito diferente da dos miúdos. Esta cuida dos meninos de rua, aquela de todos os que ninguém quer. Numa, prepara-se o futuro. Noutra, presente e futuro são um só. "Reciclamos pessoas" dizia ontem, com a sua voz frágil mas incrivelmente serena, o Padre Baptista. "Vamos buscar aqueles que ninguém quer, que foram recusados por todos, e tentamos dar-lhes uma vida."

Fico sempre meio abananado com estas coisas. Em boa verdade, tento sempre fugir delas, passar-lhes ao lado, porque quando lá estou, quando me deparo com os seus olhares, pergunto-me sempre porque raio é que eu não estou lá, a ajudar no que for preciso. Durante a visita, alguém disse que aquele sítio nos fazia pequeninos. Faz mesmo! Quando me deparo com pessoas como o Padre Baptista, pessoas que fazem da sua vida entrega total e absoluta, em condições que não lembram a ninguém, tratando com o maior carinho aqueles de quem desviamos o olhar, as questões andam num rodopio cá por dentro. Ninguém vive uma vocação daqueles sem uma radicalidade muito profunda. Uma casa daquelas, com pessoas daquelas, com dificuldades daquelas, não admite a entrega senão radical, total e absoluta. Não é possível viver pela metade. Não há resistência mental, física e moral, que suporte tanta dedicação se não estiver ligada a algo maior, mais profundo, mais total e absoluto.

Se houve campo em que a minha curta estadia em Moçambique me consolidou foi no da fé. Uma das imagens que mais me chocaram foi a exploração da miséria por algumas das pessoas que pertencem às ONGs. Confesso que, depois de Quelimane, nunca mais consegui ver a UNICEF, a ONU e outras que tais com bons olhos. Mesmo aquelas que não se aproveitam da situação, que não são ostensivas no extraordinário poder que têm, não chegam lá, não se comovem, vivem à parte, são funcionários, não são missionários. Aqueles que escolhem viver com eles, no meio deles, comer o que eles comem e dormir como eles dormem estão, invariavelmente, ligados a uma religião. São missionários, não são funcionários. Vi muitos muçulmanos, vi menos católicos, vi alguns hindus. O que tinham de comum? Estavam lá, no meio das pessoas, eram um deles, e não se deslocavam em Pickups topo de gama nem jantavam em restaurantes de luxo. Eram irmãos deles, filhos deles, pais deles, companheiros deles, não seus patrões. Não tinham hora de entrada ou saída, não tinham botão on e off, aqueles eram a sua vida. Ver em alguém um irmão é muito diferente de ver alguém que precisa de ajuda. É toda uma forma de vida que se joga nessa aparentemente minúscula diferença.

Quando recordo o que vi em Moçambique e quando vejo o que vi ontem, acontece-me sempre duvidar da bondade de um estado verdadeiramente laico. Acredito, como já referi aqui várias vezes, na liberdade que cada um deve ter de professar ou não uma fé, qualquer que ela seja. Acredito que Estado e Religião são duas realidades que devem estar perfeitamente separadas. No entanto, não acredito nada na bondade de uma sociedade sem Deus, sem qualquer ligação ao transcendente. Numa sociedade para quem uma pessoa é apenas uma pessoa, que encontra o seu lugar em razão da utilidade que pode ou não ter, que é mais uma ferramenta que um ser humano, que é mais um empregado que um filho.

Quando vejo o que vi ontem, apetece-me chamar as pessoas que conheço, os catequistas e leitores, os miúdos, a imensidão de ditos não praticantes que enchem os acontecimentos sociais mas deixam as igrejas vazias. Apetece-me convocar a comunicação social e mostrar-lhes o que faz a Igreja, o que é a sua forma de ser e de amar, longe dos palcos, escondida dos holofotes, no silêncio da entrega que esconde a mão, que não se vangloria, mas encontra no recolhimento a sua forma de se entregar. Esta é uma Igreja totalmente diferente da inúmeras vezes retratada na comunicação social e multiplicada por nós, católicos, numa pueril necessidade de escondermos uma pertença que, à imagem de Pedro, nos apressamos a negar logo que somos confrontados. Esta é uma Igreja completamente afastada dos escândalos sexuais, de riqueza e de poder com que todas as semanas somos bombardeados. Esta é A Igreja, aquela que está junto daqueles de quem deve estar: dos despojados de si mesmos. Esta é a Igreja à qual me orgulho de pertencer.

Mas fica sempre a questão. E eu? O que sou chamado a fazer para construir esta Igreja?

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