20130627
Mandela
Tenho muita dificuldade em acreditar nos santos do altar. Não nas pessoas em si, cujo percursos de vida normalmente até desconheço, mas na nossa necessidade de as colocar em cima de um pedestal. Até porque as pessoas que conheci e que estavam mais próximas do que eu considero ser a santidade, não eram santinhas. De todo. Eram bem humanas, com problemas e dificuldades como todos nós temos, que cometiam erros como todos nós cometemos e que, como eu costumo dizer nas minhas catequeses meio em tom de brincadeira, faziam chichi e cocó como todos nós. Tinham era uma postura de vida, uma tenacidade e, sobretudo, uma sabedoria profunda - e algumas delas mal sabiam ler e escrever - que lhes permitia uma serenidade tal que acabaram por constituir para mim modelos de vida e de entrega aos outros.
Ainda há pouco tempo dizia a uma amiga que não tenho ilusões no que diz respeito às pessoas. Acredito na sua humanidade, na sua capacidade de fazer o bem e o mal consoante as circunstâncias, mas acredito ainda mais na capacidade que cada um tem de se fazer maior que as circunstâncias; não acredito em anjos ou demónios, acredito que todos o somos em determinadas alturas, mas acredito mais ainda na capacidade que cada um tem de se refazer permanentemente, sobretudo se tiver o amor como força maior; não acredito em super homens (por acaso acredito mais em super mulheres) mas em homens que se superam constantemente, muitas vezes porque outros dependem de si e não conseguem ver outra alternativa a não ser fugir para a frente.
Não creio que pessoas como o Mandela, Gandhi, a Madre Teresa ou Luther King queiram um lugar num qualquer pedestal. Todos eles foram, até certa altura, vítimas das suas próprias circunstâncias. No entanto, escolheram não se deixar arrastar por elas mas tomar as suas vidas nas suas mãos, prontos a assumir os riscos inerentes às suas decisões, prontos a entregar a vida para que a pudessem ganhar. Por isso aprendo com eles, por isso não lhes louvo mas louvo a Deus por eles. Porque, a exemplo de Jesus, interessa-me muito mais a humanidade que a santidade.
20130626
Uma das constantes mais dolorosas de mim é o pânico que os outros, particularmente os que confiam mais em mim, descubram quem sou.
Acabei de ser surpreendido. Facilmente olho para o meu reflexo estampado do outro lado do ecrã e, mais que não me reconhecer no tanto que fazem de mim, tenho muito medo do que acreditam que vêem em mim. Ainda na semana passada, durante uma formação recheada de notáveis, a primeira coisa que escrevi foi "que raio fazes tu aqui?". Creio que no mais íntimo de mim nunca passarei de um puto do bairro a por-se em bicos de pés para tentar fazer parte do mundo. A maior constante da minha vida é a procura. Passo a minha vida a tactear, a tentar absorver o imenso que os que me rodeiam sabem para, a partir da sua sabedoria, tentar fazer uma roupagem com a qual eu possa tapar a minha nudez. Em vão. Sempre em vão. Quando me encontro comigo mesmo, quando passa o inebriamento dos dias e apenas me tenho na minha solidão profunda, tão indesejada quanto inevitável, ressoa apenas a única verdadeira questão que me acompanha desde sempre: "que raio fazes tu aqui?". Não sei. Tirem-me aqueles que me rodeiam, e que me amam, e que fazem de mim quem eu sou, e ficará apenas aquele puto do bairro, pequenino e assustado, navegador de superfície, sempre embasbacado com a imensidão dos outros. Por isso, mesmo as minhas certezas estão recheadas de dúvidas. Por isso, não percebo, nunca o percebo, quando me assinalam a serenidade, ou a disponibilidade, ou a alegria. Meu Deus! Estão tão longe! A maior parte das vezes é o medo o meu motor. Medo de desiludir, medo de magoar, medo de passar ao lado, medo que me ponham de lado. Como eu gostava de ser autónomo, confiante, cheio de certezas, isento de dúvidas. Como eu gostava de conseguir propor caminhos, delinear futuros, sem vacilar, sem me por em causa, dominando as possibilidades, escolhendo sempre as melhores. A verdade é que, invariavelmente, estupidamente, quando me meto a fazer isso só sai asneira. Levei tempo a percebê-lo. Levei ainda mais a aceitá-lo. A conhecer os meus limites e a tentar encaixar-me dentro deles. Todos os dias. E todos os dias, quando me encontro comigo e volta a velha questão, dou-me a mesma resposta: "não passas de um puto do bairro a tentar fazer parte do mundo". Podia ser pior. Pode sempre ser pior.
Não é tudo bom, nas redes sociais. Não substitui o contacto pessoal, íntimo, olhos nos olhos, que nos ajuda a perceber quem é quem. Ninguém é amigo apenas porque partilha meia dúzia de superfícies no face ou nos blogues. Ninguém é amigo porque partilha umas coisas giras, normalmente escritas por outros, ou cómicas, repetidas e retransmitidas ad nauseam. Ninguém é amigo porque gosta do mesmo por do sol ou da mesma paisagem, ou do mesmo filme, ou da mesma música ou das mesmas pessoas... Ninguém é amigo apenas por causa disso. Mas também ninguém é amigo apenas porque se cruza por nós nos corredores ou nas ruas. Ninguém é amigo porque nos cumprimenta e nos diz "bom dia", ou "boa noite", ou "tudo bem?" seguindo o seu ritmo apressado sem esperar resposta. Ninguém é amigo apenas porque o vemos todos os dias e volta e meia até temos que enfrentar uma qualquer situação meio confrangedora e inventar conversas de chacha enquanto desejamos intimamente que apareça alguém que valha mesmo a pena e nos salve daquela situação. Nas redes sociais, como na vida, não é a disponibilidade nem a abundância do contacto que faz os amigos. Ajuda, pode até ser necessária, mas não é o core business da amizade.
Ontem, no meu aniversário, recebi imensos parabéns. De muitas pessoas com quem contacto todos os dias, de outras que não vejo há algum tempo, de outras ainda que "conheci" num qualquer areópago virtual que gosto de frequentar. Confesso que ontem à noite, depois do jantar, me deliciei a ler todas as mensagens, uma a uma. Soube-me muito bem! Por vezes parece-me que vivi muitas vidas, com geografias muito diferentes entre si, com pessoas muito diferentes entre si, e ler todos aqueles parabéns foi um excelente pretexto para viajar no tempo, rever velhos amigos, revisitar velhas brincadeiras, revalorizar dificuldades ultrapassadas, lutas travadas, que deram em pequenas vitórias e derrotas. Foi a minha vida que percorri, numa viagem que ajudou a engrandecer o meu dia de aniversário. Também por causa das redes sociais, tive ontem um excelente dia, que ousou relevar a neura do costume para lugar desconhecido.
Não é tudo bom, nas redes sociais. Não substitui o contacto pessoal, íntimo, olhos nos olhos, que nos ajuda a perceber quem é quem. Mas quando esse contacto não é mais possível, quando a vida se encarrega de nos conduzir, a cada um de nós, no seu percurso natural em nome do que cada um considera mais importante, as redes sociais são uma boa forma de mantermos os amigos mais perto da memória, mais perto do coração, mais tempo cá por dentro. E como acredito que o melhor da vida são aqueles que deixamos que nos habitem e os que nos deixam habitar, acredito que as redes sociais podem ajudar a ter uma vida mais saborosa.
O meu 47º aniversário foi-o.
Também por causa das redes sociais.
Obrigado a todos
20130624
Durante muitos anos, o Paulo esteve sozinho nas minhas eucaristias. Quando rezamos por todos os que partiram eu lembrava-me, invariavelmente, do Paulo. Das nossas brincadeiras, do tanto que aprendi com ele, da imensidão do que tocamos e cantamos juntos, da sensação terrível quando soube que morrera e da necessidade absoluta que tive de estar junto dele e da família dele, que me é tão especial, naqueles derradeiros momentos.
Pouco a pouco, no entanto, outras pessoas se foram juntando à memória do Paulo. O meu sogro e a Tia Micas - a quem recorro muitas vezes por causa da profunda sabedoria de ambos - de longe a longe outros tios meus de quem apenas me recordo nestas alturas, agora a Carmem. Ontem, durante a missa, apercebi-me que as minhas eucaristias estavam a ficar povoadas de pessoas que já morreram. Sem drama. Morreram, partiram, já não as tenho comigo, mas apenas a memória do que aprendi, do que vivi, por vezes do que sofri com elas. São parte do meu património pessoal, umas mais constantes que outras, umas mais decisivas que outras, mas fazem parte do que sou.
Ontem fui visitar a minha avó. Ficou felicíssima, como sempre. Curioso como a certa altura senti necessidade de a visitar, normalmente ao domingo de manhã. Curioso porque nunca fui muito disso - lido demasiado bem com a distância - mas de repente pensei que se calhar não terei assim tão mais tempo para conversar com ela, para me rir com ela, para aprender com ela. Como ela sabe que eu gosto de pensar na vida, volta e meia falamos da morte. Da sua morte. Nesta fase final da sua vida descubro nela uma religiosidade que não conhecia e ela ensina-me uma serenidade que eu próprio, apesar da minha fé, gostaria de ter. É a última da sua geração: todos os amigos, todos os irmãos já seguiram o seu caminho e ficou ela, alegre, vivaça, carente de um miminho como qualquer criança, de lágrima fácil mas consciência tranquila. Ainda ontem me dizia, vaidosa, que a cabeleireira tinha ido lá. Ainda ontem me dizia. serenamente, que tentava ainda caminhar porque não quer acamar, mas que também não valia a pena esforçar-se muito porque não seria por muito tempo. A minha avó, do alto dos seus 92 anos, mede o seu futuro em semanas, não em meses e muito menos em anos. E fá-lo desde que a conheço!
É incrível o que comecei a aprender da vida a partir da altura em que tive que lidar com a morte. É incrível como cada vez mais me apercebo que ambas as coisas estão intimamente ligadas. E como vou descobrindo que, muitas vezes, viver tem uma carga dramática muito mais intensa que morrer. E isso é bom.
20130619
olhadela
Por vezes, num casamento, nada é tão importante como sair para almoçar fora e falar de coisa nenhuma. Quando não há tempo para grandes passeios, quando o dias se sobrepõem às noites, quando as noites são apenas intervalos dos dias, nada como um bom encontro dos olhares... e das mãos.
Hoje fomos capazes de o fazer.
20130618
olhadela
Recebi a revista e dei-lhe uma olhadela. Rápida, que o tempo não dá para mais. As suas páginas iniciais remetem para a capa, que me passou completamente despercebida. Voltei-a para mim, olhei, e tentei ver.
Em vão.
Esqueço-me frequentemente daquilo a que apelo aos outros perante as Escrituras - perguntem-se "o que me quer isto dizer?" deixem-se interpelar.
Gostaria de me deixar interpelar todos os dias. Por vezes, no entanto, a vida corre tão depressa que não o consigo.
E fico a perder
Um dos claros sintomas da amizade que me une a alguém é a forma descontraída como falo. Quando não tenho necessidade de escolher as palavras, quando não me preocupo muito com o que sai, quando os disparates são naturais, quando sei que tenho crédito suficiente para me separar da mesma forma como me aproximei. Não são muitas as pessoas com quem me sinto assim, perfeitamente à vontade, sem medo nem medida. E uma conversa com alguém assim constitui um oásis de calmaria numa vida que tem alguns períodos conturbados.
Ontem, como tem acontecido ultimamente, passei o meu dia a correr. Entre ensaios em vários locais diferentes, entre gravações e organizações várias, preparações de eucaristias, parecia um rato doméstico, naquela roda que gira, gira, e nunca sai do sítio. Os compromissos sobrepunham-se uns aos outros e eu, como de costume, a todos tentava acorrer (a correr). Por muito que queira, há alturas em que não consigo fazer as coisas de outra forma. Não consigo programar com muito tempo de antecedência, não consigo ter muito espaço livre entre umas coisas e outras, não consigo ir com calma, ou viver com calma. Não consigo, e por vezes nem o quero, porque tenho alguma dificuldade em gerir o meu tempo quando tenho tempo. Quando tenho que me mexer à força de adrenalina as coisas saem-me muito melhor, com muito maior naturalidade, e normalmente com melhores resultados.
No entanto, apesar de gostar da correria, o ideal para mim é que o dia possa terminar em calmaria. Uma boa conversa, que flui com naturalidade, sem qualquer outro requisito que não seja a partilha do prazer da companhia mútua, faz milagres. Em certa medida, constitui o contraponto do dia que acaba: a azáfama dá lugar à serenidade; a sofreguidão à reflexão; e o tempo exterior volta-se a ajustar ao tempo interior.
É um verdadeiro privilégio quando isso acontece. Porque requer o encontro de muitas coisas: de pessoas que gostam da companhia uma da outra, de tempo sem medida de tempo, de vontades
Hoje tive esse tempo. Depois de um dia conturbado, não poderia ser melhor.
20130614
Por força das circunstâncias, temo-nos encontrado mais que o costume, ultimamente. E, descontando as circunstâncias, tem sido muito bom. Voltar aos amigos é sempre voltar a casa. É retomarmos conversas que foram interrompidas pela vida, que fez com que todos nós enveredássemos por caminhos distintos.
Cumprimentámo-nos como se tivéssemos estado juntos desde sempre, sem ligar patavina ao facto de, em alguns casos, apenas nos vermos nas redes sociais ou quando nos cruzamos dentro dos carros. É o resultado de termos passado uma parte muito importante das nossas vidas juntos. A esmagadora maioria de nós apaixonou-se, casou e teve filhos enquanto andava no JUP. Durante cerca de 10 anos, os mais decisivos na construção de quem somos e de quem aspiramos a ser, foram passados juntos. Fins de semana, praia, férias, saídas à noite, aniversários, e depois casamentos, mais tarde baptizados e depois comunhões, agora casamentos dos filhos, tudo servia e serve de pretexto para nos reencontrarmos, se possível em volta de uma mesa, e aí cantarmos, jogarmos, rirmos, dançarmos, falarmos de tudo e de coisa nenhuma. Por isso, porque, apesar do tempo que passou, parece sempre que foi ontem, os amigos nunca envelhecem. Podem estar ligeiramente mais pesados, com mais ou menos cabelos brancos, com maior ou menor dificuldade em se moverem, mas, porque os olhamos com os olhos de antigamente, nunca os encontramos velhos e acabados. Porque os vemos com os mesmos olhos que dedicamos às coisas boas da vida, vemos sempre o mesmo sorriso, a mesma jovialidade, que a amizade pura e dura subtrai ao tempo.
Como sempre acontece com o que é genuíno, creio que o maior reflexo do que é o JUP vem justamente de fora, dos nossos filhos. Os meus dizem-nos muitas vezes que quando estamos juntos parecemos crianças, apesar de sermos quarentões supostamente respeitáveis. Os disparates saem naturalmente, as brincadeiras retomam-se com naturalidade, as partidas são pregadas e sentimo-nos todos muitíssimo bem acompanhados uns com os outros. Da mesma forma, quando alguém lá na paróquia se quer referir à forma como deve ser um grupo de jovens, o JUP vem sempre à baila.
Fomos, efectivamente, uma marca para todos.
E deixámo-la em cada um de nós.
Indelevelmente!
20130611
Ontem fui buscar a Isabel à Casa do Calvário, uma obra que pertence aos Gaiatos. Já conheço os Gaiatos há muito tempo, mas, curiosamente, não tinha recordação nenhuma daquela casa. Que é muito diferente da dos miúdos. Esta cuida dos meninos de rua, aquela de todos os que ninguém quer. Numa, prepara-se o futuro. Noutra, presente e futuro são um só. "Reciclamos pessoas" dizia ontem, com a sua voz frágil mas incrivelmente serena, o Padre Baptista. "Vamos buscar aqueles que ninguém quer, que foram recusados por todos, e tentamos dar-lhes uma vida."
Fico sempre meio abananado com estas coisas. Em boa verdade, tento sempre fugir delas, passar-lhes ao lado, porque quando lá estou, quando me deparo com os seus olhares, pergunto-me sempre porque raio é que eu não estou lá, a ajudar no que for preciso. Durante a visita, alguém disse que aquele sítio nos fazia pequeninos. Faz mesmo! Quando me deparo com pessoas como o Padre Baptista, pessoas que fazem da sua vida entrega total e absoluta, em condições que não lembram a ninguém, tratando com o maior carinho aqueles de quem desviamos o olhar, as questões andam num rodopio cá por dentro. Ninguém vive uma vocação daqueles sem uma radicalidade muito profunda. Uma casa daquelas, com pessoas daquelas, com dificuldades daquelas, não admite a entrega senão radical, total e absoluta. Não é possível viver pela metade. Não há resistência mental, física e moral, que suporte tanta dedicação se não estiver ligada a algo maior, mais profundo, mais total e absoluto.
Se houve campo em que a minha curta estadia em Moçambique me consolidou foi no da fé. Uma das imagens que mais me chocaram foi a exploração da miséria por algumas das pessoas que pertencem às ONGs. Confesso que, depois de Quelimane, nunca mais consegui ver a UNICEF, a ONU e outras que tais com bons olhos. Mesmo aquelas que não se aproveitam da situação, que não são ostensivas no extraordinário poder que têm, não chegam lá, não se comovem, vivem à parte, são funcionários, não são missionários. Aqueles que escolhem viver com eles, no meio deles, comer o que eles comem e dormir como eles dormem estão, invariavelmente, ligados a uma religião. São missionários, não são funcionários. Vi muitos muçulmanos, vi menos católicos, vi alguns hindus. O que tinham de comum? Estavam lá, no meio das pessoas, eram um deles, e não se deslocavam em Pickups topo de gama nem jantavam em restaurantes de luxo. Eram irmãos deles, filhos deles, pais deles, companheiros deles, não seus patrões. Não tinham hora de entrada ou saída, não tinham botão on e off, aqueles eram a sua vida. Ver em alguém um irmão é muito diferente de ver alguém que precisa de ajuda. É toda uma forma de vida que se joga nessa aparentemente minúscula diferença.
Quando recordo o que vi em Moçambique e quando vejo o que vi ontem, acontece-me sempre duvidar da bondade de um estado verdadeiramente laico. Acredito, como já referi aqui várias vezes, na liberdade que cada um deve ter de professar ou não uma fé, qualquer que ela seja. Acredito que Estado e Religião são duas realidades que devem estar perfeitamente separadas. No entanto, não acredito nada na bondade de uma sociedade sem Deus, sem qualquer ligação ao transcendente. Numa sociedade para quem uma pessoa é apenas uma pessoa, que encontra o seu lugar em razão da utilidade que pode ou não ter, que é mais uma ferramenta que um ser humano, que é mais um empregado que um filho.
Quando vejo o que vi ontem, apetece-me chamar as pessoas que conheço, os catequistas e leitores, os miúdos, a imensidão de ditos não praticantes que enchem os acontecimentos sociais mas deixam as igrejas vazias. Apetece-me convocar a comunicação social e mostrar-lhes o que faz a Igreja, o que é a sua forma de ser e de amar, longe dos palcos, escondida dos holofotes, no silêncio da entrega que esconde a mão, que não se vangloria, mas encontra no recolhimento a sua forma de se entregar. Esta é uma Igreja totalmente diferente da inúmeras vezes retratada na comunicação social e multiplicada por nós, católicos, numa pueril necessidade de escondermos uma pertença que, à imagem de Pedro, nos apressamos a negar logo que somos confrontados. Esta é uma Igreja completamente afastada dos escândalos sexuais, de riqueza e de poder com que todas as semanas somos bombardeados. Esta é A Igreja, aquela que está junto daqueles de quem deve estar: dos despojados de si mesmos. Esta é a Igreja à qual me orgulho de pertencer.
Mas fica sempre a questão. E eu? O que sou chamado a fazer para construir esta Igreja?
20130610
Acordou triste, o meu dia de hoje. Um dos nossos partiu. Mais um!
E no entanto, é na vida que penso, com a notícia da sua morte. É nos momentos que passamos juntos, nas nossas brincadeiras, nas férias, nos retiros, nos encontros. Estou a vê-la, com a sua alegria do costume, com a sua irreverência do costume, que constituiu a sua imagem de marca, a subir para a mesa e a dançar, cantando e rindo ao mesmo temo, intercalando a estrondosa voz com as sonoras gargalhadas que a distinguiam de todos os outros. Esteve lá desde sempre, no JUP, no nosso JUP, que foi a nossa verdadeira escola de fé e de vida. Nunca foi consensual, nunca foi discreta, nunca foi submissa. Essas características vieram ainda mais ao de cima na forma pública como lidou com a doença, ora assumindo uma cabeça rapada com o mesmo à vontade com que continuava a viver desenfreadamente, ora reconhecendo a dor quando a dor era verdadeiramente insuportável. Era assim a Carmen. E só podia ser assim, porque era a Carmen.
Ontem, quando vinha a caminho de casa, passamos pela Santa Rita e pensei no Rui, nas nossas caminhadas recheadas de conversas, das nossas conversas recheadas de caminhadas. De como sempre tivemos coisas para partilhar, ainda que tanto nos separasse, ou justamente porque muito nos separava, da política ao futebol. No entanto, muito mais é o que nos une, imensas vezes provado e comprovado ao longo da nossa vida. Sempre foi muito mais o que nos une, ainda para mais hoje, em mais um momento de dor profunda. E têm sido tantos ultimamente!
Acordou triste, o meu dia de hoje. Um dos nossos partiu. Mais um!
Encontrará paz. Finalmente!
20130607
Como é que eu falo de Deus? Que palavras uso? Que evidências uso? Que leituras proporciono a quem olha para mim como não quer a coisa?
Acabei agora de ler um texto extraordinário do José Frazão Correia e que pode ser lido aqui: http://www.snpcultura.org/amar_a_Deus_nos_lugares_ausencia.html Um texto que eu jamais seria capaz de escrever, com uma profundidade que não é a minha, com uma sabedoria que não é a minha mas também, convenhamos, dirigido a um público que não é, com toda a certeza, o meu.
Ainda ontem, numa daquelas conversas ao almoço que também alimentam a alma, partilhava com um bom amigo as minhas preocupações que, no fundo, culminam na questão de sempre: Como é que eu falo de Deus?
Parte importante do meu tempo e do meu trabalho tem sido feito num daqueles lugares que parecem arredados de Deus. Quem lá se refugia está muito mais preocupado com questões de mera sobrevivência quotidiana, com o conseguir esgalhar a vida, como eles dizem, que com as coisas de Deus. Se não encontram um sentido no que lhes acontece aqui, se se limitam a sobreviver aos dias, a acumular horas, como lhes transmitir que a vida é mais que mera sobrevivência?
Lembro-me do baque que senti quando comecei a fazer Dias de Reflexão. Como se tratava de um colégio católico, pensei que todos os alunos que teria diante de mim estariam minimamente identificados com estas coisas da procura de Deus. Lembro-me que tinha um esquema muito bem preparado, alicerçado em largos anos de experiência com Grupos de Jovens. Bastou-me, no entanto, meia hora, para perceber que estava completamente enganado. Que para muita gente aqueles Dias de Reflexão eram pouco mais que um primeiro anúncio. E que para outros o importante é que fossem Dias de (nenhuma) Reflexão. Tive aí, nessa altura, a oportunidade de me refazer na linguagem, nos gestos, nas atitudes, nas abordagens que tinha previamente formatadas mas que eram perfeitamente desadequadas a quem tinha diante de mim. E creio que, umas vezes com maior sucesso que outras, o consegui fazer.
Nesta altura deparo-me com outro tipo de população, com outro tipo de pessoas, com idades muito diferentes, com percursos de vida muito complicados, com procuras inexistentes. Pessoas para quem qualquer referência a Jesus ou a Deus soa quase como um insulto, porque, antes de mais, se sentem esquecidos e postos de parte por tudo e todos. Porque, depois de tudo o mais, o Deus de que tanto falam nãos lhes deu coisa nenhuma. Pelo contrário: a imensa maioria dos que pregam o Jesus dos pobres vai à missa em carros de luxo e vive nos apartamentos de luxo que estão ali mesmo à mão de semear mas tão longe e inalcançáveis como Marte. É demagogia, claro, é refúgio, claro, é injusto, claro, é até mentira, claro, porque a grande parte dos que têm os carros e os apartamentos estudaram muito e esfalfam-se a trabalhar para conseguirem ter o que têm e não se arrastam pelos cantos. Mas também tem um fundo de verdade e é com essa demagogia, com esse refúgio, com essa injustiça e até com essa aparente mentira que estão tão enraizadas nas pessoas, que eu tenho que trabalhar, é justamente isso que eu tenho que tentar desmontar e dar um sentido, é justamente a partir daí que eu tenho que tentar fazer renascer (ressuscitar?) um Jesus que dá todo o sentido à minha vida e, acredito profundamente, dará ainda mais sentido às suas vidas. Não se trata de lhes tentar impingir um deus que os adormeça na miséria mas, pelo contrário, de lhes dar a conhecer um Deus que é Pai, que os ama e que os chama a ser muito mais do que eles acreditam serem capazes de ser. Trata-se de lhes restituir a Dignidade que acreditam ser apenas pertença dos outros.
Gostei muito do título do texto em questão: "Amar a Deus nos lugares da Sua ausência".
Mas, depois de o ler, percebo que a minha realidade é outra.
E a minha batalha quotidiana também.
20130606
Se, no que diz respeito à minha fé, não costumo ter grandes vacilações - a minha fé resulta da aceitação de um convite pessoal que me é feito todos os dias - isso já não acontece relativamente à minha Igreja, ou melhor, relativamente a algumas pessoas que, tal como eu, constituem aquilo que eu acredito que é a Igreja.
Sou um ávido leitor de tudo o que diz respeito à Igreja. Livros, artigos, blogues, todos os dias me passam em frente aos olhos e eu vou acompanhando, uns mais e outros menos, consoante o tempo que consigo roubar ao meu tempo. Desde sempre que me imponho, no entanto, ler não apenas os que defendem o que eu próprio defendo mas a acompanhar aqueles que seriam os meus antagonistas. (Por isso é que eu, sendo portista de gema, sempre privilegiei a leitura do jornal A Bola: não preciso que me apontem as glórias do Porto, que essas eu sinto-as na pele, mas que me falem das suas fragilidades, que eu tenho mais dificuldade em ver.)
Incomoda-me sempre, por isso, quando me sinto mais perto daqueles que questionam a Igreja do que daqueles que fazem parte dela. Ultimamente, então, tenho-me apercebido de uma deriva intolerante que me preocupa bastante. Eu não sou propriamente um liberal nestas coisas da Igreja. Não acho que faça sentido os padres poderem casar, por exemplo; não entendo o papel de poder que algumas mulheres teimam em reivindicar para si (que se enquadra numa lógica de poder e não de serviço e por isso, para mim, não deve ter lugar dentro da Igreja); entendo a liturgia como sendo absolutamente fundamental para se poder viver comunitariamente a dimensão do sagrado... e sou totalmente contra o aborto, seja em que circunstância for, porque é sempre o exercício despótico de quem tem o poder sobre quem não se pode defender. Em suma, não acredito numa Igreja onde tudo seja permitido, numa igreja modernaça e amiguinha de toda a gente onde cada um possa viver a fé na sua própria medida. Essa seria uma igreja desligada de Jesus Cristo, que não é um facilitador mas que, pelo contrário, exige de mim o melhor.
No entanto, prezo muito a liberdade individual. Entendo que um adulto deve ter a plena liberdade de escolher a forma como vive a sua vida, desde que isso não limite a liberdade de seja quem for. Acredito que as escolhas pessoais que cada um faz são isso mesmo, pessoais, e apenas a si dizem respeito. Naturalmente, as escolhas pessoais poderão limitar as opções de pertença a uma Igreja, que tem que fazer escolhas, tem que ter regras, tem que ser porto seguro e não pode andar ao sabor dos ventos. Mas um adulto é alguém com capacidade de assumir as consequências das suas opções. E isso não me impede, pelo contrário, de discutir, de tentar construir pontes, de partilhar os meus valores, aquilo em que acredito, reivindicando para mim próprio a liberdade que reconheço para os outros. A forma como proponho Jesus tem muito a ver com isto: com partilha, com encontro, com exemplo, com testemunho, mas com muita liberdade, pois apenas na liberdade se pode dizer sim a Jesus.
Incomoda-me sempre, por isso, quando me sinto mais perto daqueles que questionam a Igreja do que daqueles que fazem parte dela. Os que apenas entendem uma forma de ser e de viver, os que se auto-elegeram arautos de uma sociedade pura (que me causa profundos arrepios, confesso), com uma fé pura, destinada à conversão dos outros, dos impuros. Eu não gostaria de viver numa sociedade assim e, certamente, não pertenceria a uma Igreja assim, que fosse só para puros.
Sempre que o fizemos houve asneira da grossa.
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