20180530



Aprendi, há muitos anos, que na vida apenas uma coisa me é verdadeiramente insuportável: o sofrimento dos que amo. Sobretudo, no topo dos topos, a consciência que esse sofrimento é provocado por mim.

Sofrer com quem se ama é inevitável. Sofrer muito com quem se ama muito é natural. Os que me são indiferentes não me causam mossa. Na altura até me comovem, podem até estragar o meu dia, ou a minha semana, e ficar cá por dentro uns tempos. Mas quando penso a sério, isso acontece porque tendo a pensar "e se fosse comigo ou com os meus..." numa espécie de projeção egoísta e auto-centrada. Apenas aqueles que acampam cá por dentro têm essa possibilidade, essa nefasta capacidade de me fazer sofrer verdadeiramente com o seu sofrimento. E eu posso com isso. A custo, mas posso com isso. Eu tenho vida e mecanismos e defesas que me ajudam a aceitar essa dor e a viver com ela, apesar dela. É uma dor de fora para dentro, que me chega por meios dos que me são importantes, e que me impele a estar presente, a tentar ajudar a atenuar, muitas vezes com uma simples presença feita de olhares, recheada de profundo silêncio. Dói como o caraças, mas, de alguma forma, sinto-me parte da solução. E isso faz-me bem. E isso sabe-me bem.

Coisa diferente, muito diferente, verdadeiramente insuportável, é quando a dor é em sentido contrário, é quando sou eu a provocar o sofrimento naqueles que me são importantes. Aí não sou solução, sou problema. Aí não posso consolar mas ser consolado. Aí nada posso fazer para me sentir bem comigo mesmo. E muitas vezes o esforço dos que amo para que me sinta amado apesar de mim ainda acentua mais a impotência, a dor, o desespero. E reforça esta sensação permanente de não merecer ser amado. E torna tudo ainda mais insuportável.

Ontem foi reprovada a legalização da eutanásia. No meio da romantização da minha morte - sim, eu romantizo a minha morte como romantizo cada momento da minha vida - eu sei como gostaria de morrer: sem ver o sofrimento no olhar daqueles que amo. Essa seria, verdadeiramente, a forma como gostaria de morrer: sem ver o sofrimento nos olhares daqueles que me amam. Não tem a ver com a minha dor, com o meu sofrimento, com a minha morte. Eu tenho fé e, pelo menos hoje aqui e agora, a morte não me assusta por aí além. O insuportável mesmo, será partir com a sua dor estampada no olhar. E na minha alma.

20180523


Digo muitas vezes que me fiz. Porque é, em grande parte, verdade. Com as dificuldades e as consequências que uma construção desse tipo inevitavelmente acarreta: um errar constante, um refazer constante, uma excessiva permeabilidade, uma atenção exacerbada aos ecos que vamos provocando, como um morcego que, às cegas, está permanentemente expectante do retorno do som para se poder orientar. Há, no entanto, uma grande parte que já é assim tão verdade. Justamente porque os sons que me orientam acabam por ser incorporados, acabam por ser, eles próprios, construtores de personalidade. E, às tantas, os sons que me orientam não são já aqueles que emito mas os que me falam no silêncio do que sou. Até aqui tudo bem. É sinal que, embora muito timidamente, para meu verdadeiro espanto, vou ganhando alguma maturidade.

Há algo de incrivelmente solitário quando nos escutamos na escolha do caminho. E livre. E libertador. Se a maturidade traz acopladas maiores certezas, por outro lado impossibilita desculpas. E justificações. Que, na verdade, apenas servem para afagarmos a nossa própria cabeça enquanto nos sussurramos que não somos assim tão más pessoas quanto pensamos.

Talvez porque sempre tenha tido a convicção da excessiva dependência afetiva que me acompanha desde que sou gente, o anseio de liberdade é uma constante. O cântico negro, de José Régio, recitado numa aula de português do 9º ano pelo professor que mais me marcou, passou a ser como que um companheiro que me desafiava todos os dias. Cântico Negro de um lado, a Bíblia do outro, devidamente acompanhados por velhos amigos sempre revisitados, como o cavaleiro da triste figura e o principezinho, espelham bem a contradição que me habita. Apelo à liberdade, por um lado, necessidade de ser parte de..., por outro. E algures, eu, ora um, ora outro, ora ambos em conflito permanente.

Lá em casa a eutanásia tem sido tema recorrente. Dois médicos (ainda por cima com posições contrárias) e uma advogada na família é o que dá. Com claras vantagens para todos nós, claro. Tudo devidamente entrelaçado pela fé, que, graças a Deus, não impede nenhum de nós de nos sentirmos absolutamente livres para nos posicionarmos e assumirmos abertamente a nossa posição. Ainda ontem conversávamos ao jantar e eu escutava-os, embevecido, admirado, pela forma como conseguem apresentar as suas razões e dar espaço para que os outros apresentem as suas.

Quase todos os dias desejo não ser como sou. Desejo ser diferente, mais sólido, mais consistente, mais claro comigo e para mim próprio, mais claro com os outros. Desejo não ter dúvidas, não procurar, anseio agarrar as minhas certezas e poder acampar, finalmente, saboreando com maior tranquilidade a vida e a paisagem que me habitam. Desejo que tivessem sido outros os livros, outras as histórias, sobretudo outras as marcas que contribuíram para que seu seja o que sou. Mas depois tenho dias como o de ontem, feito de encontro, feito de harmonia, feito de orgulho. E arrisco dar-me o beneficio da dúvida. Se calhar, com sorte, com muita ajuda, ser assim permitiu que a minha vida seja esta. E isso faz tudo valer a pena. 

20180519


Há pouco tempo disseram-me que eu não sei ser amado. Acredito. Não sei porquê, mas às vezes cheira-me que poderá ser verdade.

Para mim, em determinados momentos, amar é extraordinariamente simples. Anda algures entre o D. Quixote, o Mr. Morgan e o inevitável Walter Mitty. Do Mr. Morgan, o amar em silêncio, em segredo, até do próprio. O amar fora de tempo e de lugar. O amar fora da vida sonhada. O amar da borla. Silenciosa. Respeitosa. Fisicamente distanciada. Do Mitty, a transformação, a superação, o passar do sonho à realidade, o vale tudo, o que se lixe, o perdido por cem ganho por mil. E a frustração do desencaixe, do desadequado, dos pés pelas mãos, da camioneta demasiado pequena para tanta areia.  Do D. Quixote o cavaleiro cavalheiro, a indominável vontade de salvar uma qualquer donzela em perigo numa qualquer torre mais alta de um qualquer castelo e, sobretudo, a triste figura, a falta de senso, a falta de racionalidade, a falta de realidade. Pegue-se nos três, misture-se convenientemente e com cuidado, adicione-se uma pitada de fantasia e cabeça no ar e uma mão bem cheia de emoção e entusiasmo e temos eu.

Depois há um outro amar. Do cuidar. Do proteger. Da vontade de enfiar quem se ama numa redoma para que nada lhe possa acontecer. Da vontade de mimar. Da responsabilidade do cuidado da vida que, de alguma forma, foi confiada. Da corda bamba, do eterno medo, da eterna alegria. Do viver com, do chorar com, do rejubilar com. Do nosso, sejam vitórias, fracassos, batalhas, ganhos e perdas.

De comum? A intensidade. A necessidade. A inevitabilidade. A imensidão. O arrebatamento. Não sei viver sem um e sem outro. Duvido que valha a pena viver sem um ou sem outro. 

20180516



Ontem foi dia da família.
Até há bem pouco tempo na família não havia lugar para grandes recordações. Habituáramo-nos a cavalgar a espuma dos dias sem grandes reflexões ou ilações para inquérito nos ia acontecendo. Que era muito! Histórias passadas, nem sempre bem passadas, muito menos bem resolvidas, mas nunca deixamos que isso interferisse na forma como apreciávamos a companhia uns dos outros. Não era uma falência, umas dívidas às finanças, uma perda de casas ou um atolado comum de vidas adiadas que nos ia impedir de sermos quem sempre fomos uns para os outros: amor feito de gestos e parcos em palavras.
Cada família tem a sua maneira muito própria de funcionar e a nossa sempre foi assim: se é para dividir não se discute, faz-se de conta que o elefante não está no meio da sala. É discutível, claro que sim, mas apesar de tudo permitiu-nos sobreviver juntos às falências e à crónica falta de dinheiro. Sobretudo permitiu-nos concentrar-nos no essencial, dando-nos o tempo para sabermos que nos amamos. Apesar de tudo.
Na foto de família que o meu irmão publicou há já lugar a recordações. E neste aspeto tem sido duro. Um cancro fatal, uma velhice natural, e a morte começa a fazer tão parte de nós como a vida. É novo. Até aqui as mortes tinham sido apenas as dos outros. É pena. Lamentamos. Choramos. Mas eram as dos outros. Estas foram nossas. E outras se seguirão. É a vida! E a morte!
Normalmente não falo muito neste lado da família. Normalmente não penso muito neste lado da família. Que está. Que persiste. Que faz parte do mais intrínseco que há em mim. Que está provavelmente na origem do que há de mais convulsivo em mim. E controverso. E profundo. Radicalmente profundo.

20180514



Durante o fim de semana em Londres, duas experiências antagónicas.

Fomos à eucaristia. Católica. Uma língua diferente, um país diferente, uma Igreja diferente, minoritária, de resistência, num país esmagadoramente e politicamente protestante. Mal me sento, olho à volta e vejo uma assembleia envelhecida, como as nossas, mas composta maioritariamente por imigrantes negros. Arrisco a avaliar que a meia dúzia de brancos são irlandeses, não ingleses. Mas o que mais me chocou foi a negatividade da homilia. Apelou constantemente à resistência, inúmeras referências ao mundo, lá fora, que é exclusivamente motivo de pecado, e que, para nosso consolo, é apenas temporário. Devemos, por isso, fugir do mundo, resistir até que chegue o Reino dos Céus, penitenciarmo-nos quando não o conseguimos. Graça, zero. Esperança, zero. Alegria, zero. Creio que nunca tinha escutado uma homilia assim, tão pesada, tão negativa, tão desesperançada, tão carente de Jesus.

No início, é muito esquisito. Ver dois homens ou duas mulheres de mão dada, a trocarem carícias e meiguices, de todas as idades, de todas as etnias, com a mesma naturalidade com que o fazemos nós, os heterossexuais. No início encorrilho a testa. Racionalmente, a homossexualidade está mais que "naturalizada" mas vê-la assim, tão à descarada, tão assumida, é novo, e não consigo deixar de estranhar. Depois passa. Ainda na semana passada, numa conversa, disse que amar nunca pode ser motivo de arrependimento, nunca pode ser sinónimo de coisa má, negativa, que deva permanecer escondida. E amar deve ser sempre possível acontecer em liberdade. E o que eu digo não podem ser apenas palavras. E aquilo em que acredito não podem ser apenas palavras.

Duas experiências antagónicas, dois sinas contrários, encontrados em lugares opostamente inesperados.

Tenho ainda muito a interrogar, a descobrir, a aprender.

20180510


Há, na consciência do pecado, uma porta para o divino que seria muito difícil de acontecer com a mesma intensidade numa qualquer outra situação.

Quando me recolho no Evangelho, as personagens que mais me são significativas são, de longe, aquelas que sabem que pecaram. Zaqueu, a Samaritana, a pecadora, são com quem me identifico imediatamente, são aquelas com quem facilmente transponho a minha vida, as minhas circunstâncias e com quem, invariavelmente, aprendo. E o Jesus que é com elas, é o Jesus de quem eu mais necessito e que mais amo. É a este Jesus que eu recorro mais vezes, aflito.

O melhor do pecado é a consciência que peco. é quando não me adio nem me iludo mas sinto claramente que há algo que me desfoca de quem sou chamado a ser. É aí, nesse momento, que me volto com maior verdade para o meu Deus, em busca do socorro do Seu amor. É aí, nessa circunstância de pecador, que eu, muitas vezes por falta de alternativa, me coloco inteiro nas Suas mãos e me confio de corpo e alma. É aí, nesse recolhimento tão necessário quanto profundo e transformador que me sinto verdadeiramente cristão, que sinto que a minha vida sem Cristo seria muito diferente!

20180509


Vi ontem uma primeira reportagem que a SIC está a passar acerca do cancro. A determinada altura, um paciente - que me pareceu daquelas pessoas extraordinárias que tudo suportam - dizia que enfrentava com facilidade as dores próprias. Difíceis eram as das mulheres da sua vida: a mãe, a mulher e a filha.

Pensei logo no que faria se fosse comigo.

Há pouco tempo estava na cavaqueira com a minha filha mais velha e até nos rimos: quando se sente apertada, sob stress, a sua vontade mais incontrolável é dormir. Tal como eu.

Desde sempre que sou habitado por heróis e super heróis e cavaleiros e donzelas fechadas nas mais altas torres dos altos castelos. Desde sempre que me imagino a salvar donzelas em perigo e a protegê-las contra todos os perigos do mundo. Desde sempre que eu me vejo do lado dos fortes, dos salvadores, dos protetores. E estive desde sempre do outro lado!

Via a reportagem e só pensava na colonoscopia que fiz recentemente. Enquanto estive deitado, à espera para ser levado pelas enfermeiras, só pensava como era difícil para mim estar naquela situação onde tudo me dói: o despir-me, o vestir aquela bata azul, a forma condescendente como falam comigo, a agulha a entrar na pele, ser transportado na maca a ver os candeeiros brancos a passar por cima de mim, o pânico do que se passará enquanto estou sedado e completamente à mercê... depois da intervenção só pensava que detestaria repetir tudo aquilo. Depois a enfermeira veio e disse-me que não conseguiu ver tudo e que tenho que repetir daqui a seis meses e eu engoli em seco, e... lá terá que ser.

Ontem, enquanto via aquele rapaz, em tratamento há tanto tempo, a dizer que não tem tempo para morrer e a viver de semana e meia em semana e meia, senti-me envergonhado. Jamais seria assim, jamais teria aquela força, jamais enfrentaria o que haveria para enfrentar. E a escolha mais difícil de fazer seria tremenda: permitiria que os meus me acompanhassem no sofrimento ou aceitaria enfrentar tudo com eles? O que lhes doeria mais? Permitir-me-ia ser amado na fragilidade?

Tenho ainda muito que caminhar!!!

20180507

700

vi hoje que publiquei o post 700. E que este blogue existe há já 7 anos. É muito disparate no mesmo sítio!!!!

Conversávamos, agora com mais calma, enquanto caminhávamos, aquilo que havia sido dito, fugazmente, à distância. Sabia das suas decisões, das suas idas e vindas, das suas perdas e ganhos, das partidas e reencontros. Não é tudo mau, nas redes sociais, que estão muito longe de substituir o olhar mas vão servindo para nos mantermos a par do indispensável. Naquelas conversas - que antecipáramos numa espera paciente e cuidada - falávamos de escolhas e dores e silêncios e partilhas e sofrimentos e decisões complicadas. E de consciência. Tranquila uma vezes, conturbada outras. E procura. Serena uma vezes, desesperada outras. Somos ambos habitados pela procura. O que nos permite uma linguagem comum. Por vezes feita de palavras.

São duas forças distintas. Quase diametralmente opostas. São duas formas absolutamente distintas de tentar chegar ao mesmo lugar: a felicidade. Por um lado, o inconformismo. Não és apenas isto, és chamado a muito mais, és melhor quando és mais, és mais bonito quando te contrarias e te exiges sempre mais. E sou, efetivamente, mais, quando consigo não me render a mim. Por outro lado, a aceitação, o és como és, o ama-te como és, o mesmo assim vales a pena, o não és assim tão mau que tenhas que ser outro alguém. E sou, efetivamente, mais sereno quando me consigo aceitar. Ambos coexistem, ambos estão lá, ao mesmo tempo, e eu sou o homem elástico da extraordinária cena do Walter Mitty, constantemente disputado entre o que sou e o que devo ser.

Temos muitas formas de sermos absolutamente felizes. E nem todas implicam a escolha por nós próprios. Muitas vezes, até, implicam que não nos escolhamos, mas àqueles que amamos. Por vezes, acontece até por exclusão de partes: as escolhas são feitas não em função da nossa alegria mas da dor dor daqueles que amamos. Que quando é provocada por nós nos é tão insuportável que nos rouba qualquer possibilidade de felicidade. E por isso os escolhemos, em vez de nos escolhermos. É uma escolha por amor, sim. É uma escolha de amor, sim. E não é menos amor por isso. O amor, a felicidade, não tem compartimentos isolados.Não há bons ou maus motivos para amar. Há amar. E escolher em função desse amor. E viver em função desse amor, qualquer que ele seja. E há dor. Inevitavelmente, há dor. Nossa e alheia. Que, quando se ama, é mais nossa que a nossa própria dor. E por isso mais insuportável.

Em julho, quando fiz o retiro, não deixei de me sentir o homem elástico. Aceitei que sou o homem elástico. Há toda uma diferença!



20180502


No final, comentava eu com quem me acompanha sempre nestas e noutras lides da vida, que é bom sentir que ainda tive um papel a desempenhar.
Por vezes acusam-me de dar demasiada importância à minha idade. Não me sinto velho. Mas também nunca acreditei na balela do espírito jovem com que se pretende fugir da idade. Acredito no tempo, sim, e nas alterações que, quando temos sorte, juízo e boa companhia, verificamos que o tempo provoca em nós. Ainda fiz os mais de vinte quilómetros diários à vontade - embora ainda me doam os músculos - mas já não dormi da mesma maneira. Ainda animei e cantei e provoquei a dança e a alegria, mas sei já que não cantamos as mesmas coisas com o mesmo gozo. Ainda me metia com eles e eles alinhavam a brincadeira mas sei que há brincadeiras e formas de ser e comunicar que têm o seu tempo que não é bem este tempo.
Gosto de ficar atento aos efeitos do tempo em mim. Não para evitar o que tenho a fazer mas para e tentar ajustar ao que tenho que fazer. Até porque, lentamente, vou assumindo papéis diferentes, e por mim esperados toda a vida. Esperava que por volta desta altura me escutassem, esperava que por volta desta altura aconselhasse, esperava que por volta desta altura a atenção do meu olhar fizesse mais que a concentração dos olhares em mim. E é justamente isso que começa a acontecer. Graças a Deus!
Saber o lugar que se deve ocupar a cada momento é uma bênção. E, numa equipa como a nossa da PJV eu sinto que tenho um lugar. Que já não vai sendo o que tem sido. Pelo menos, espero que não. Seria mau sinal se assim não acontecesse.

Bambora

  Não é estranho que nos digam que «ser homem é muitas vezes uma experiência de frustração». Mas não é essa toda a verdade. Apesar de todos ...