“Entre as numerosas novas situações que exigem a atenção e o compromisso pastoral da Igreja, será suficiente recordar: os matrimónios mistos ou inter-religiosos; a família monoparental; a poligamia; os matrimónios combinados, com a consequente problemática do dote, por vezes entendido como preço de compra da mulher; o sistema das castas; a cultura do não-comprometimento e da presumível instabilidade do vínculo; as formas de feminismo hostis à Igreja; os fenómenos migratórios e reformulação da própria ideia de família; o pluralismo relativista na noção de matrimónio; a influência dos meios de comunicação sobre a cultura popular na compreensão do matrimónio e da vida familiar; as tendências de pensamento subjacentes a propostas legislativas que desvalorizam a permanência e a fidelidade do pacto matrimonial; o difundir-se do fenómeno das mães de substituição (“barriga de aluguer”); e as novas interpretações dos direitos humanos. Mas sobretudo no âmbito mais estritamente eclesial, o enfraquecimento ou abandono da fé na sacramentalidade do matrimónio e no poder terapêutico da penitência sacramental.”

“Os desafios pastorais sobre a família no contexto da evangelização – Documento Preparatório”

 

Estamos no Natal. Festa do Encontro com o Menino que nasceu numa manjedoura, pobre entre os pobres, humilde entre os humildes e, ainda assim, rei entre os reis. Por causa desse Encontro, estamos nesta altura a preparar o encontro com os nossos, numa azáfama que mistura batatas com bacalhau, presentes e alegria, muita alegria. A partir do que aconteceu há mais de dois mil anos com a chegada daquele Menino àquela família, preparamo-nos para acolher a nossa própria família.

Que família? Sim, que família? Hoje, de que falamos quando falamos de família? Qual é o nosso conceito atual de família?

As questões que são levantadas pela Igreja no Documento Preparatório do Sínodo sobre  Família e Evangelização – que circula na internet e do qual é publicado um curto extrato no início deste texto – são tão pertinentes que não dizem respeito apenas à Igreja ou aos cristãos, mas deveriam ser de todos, enquanto civilização que se vai reconstruindo todos os dias. Há bem pouco tempo, se perguntássemos a uma criança o que é uma família, a sua resposta seria clara: um pai e uma mãe, os filhos, eventualmente os avós, os primos… Hoje, se colocássemos a mesma questão a uma criança, a resposta seria bem mais diversa, bem mais confusa, e, sobretudo, bem menos edificadora. O que nos aconteceu entretanto?

Ao longo dos tempos, a forma como nos construímos em família é reveladora da forma como nos construímos em Deus. Porque a família é o lugar onde nos descobrimos, onde descobrimos os outros, onde aprendemos que há mais alguém para além de nós próprios. É na família que aprendemos a partilhar, que aprendemos que a alegria de quem recebe compensa largamente a nossa tristeza de largarmos algo de que gostamos, é onde aprendemos que estar é fundamental, que nada substitui o encontro dos olhares, a partilha profunda dos sentimentos. É na família que aprendemos a permanecer custe o que custar, que queremos ficar quando precisam de nós, ainda que o nosso universo pessoal desabe, que aprendemos que se ri com todos, que se chora com todos, e descobrimos que rir e chorar faz parte do que somos enquanto pessoas, enquanto família, enquanto comunidade. É na família que descobrimos que não somos senhores de coisa nenhuma e estamos dependentes uns dos outros, que aprendemos a fazer-nos pequenos para que outros possam ser grandes, e aprendemos a ser grandes para que os outros possam ser pequenos. É na família que aprendemos o amor, e que, por amor o “nós” é muito maior que a mera soma dos “eu”.

A nossa essência é o amor. E também esse, como a família, se configura com a nossa relação com Deus. É por amor que somos criados, é por amor que somos resgatados, é por amor que todos ansiamos, e acordamos, e respiramos. Todos os dias! É por amor que fazemos o impensável, que nos entregamos de olhos fechados, que nos abandonamos, livremente, confiadamente, nas mãos de quem nos ama. É por amor que somos livres, é no amor que somos livres, e aprendemos que a liberdade não é uma coisa minha mas nos implica a todos, depende de todos e em todos tem consequências.

Não é o amor que está a falhar, embora estejamos cada vez mais tateantes, cada vez mais confusos, e cada vez menos ligados a Deus. É o compromisso que falha. É a capacidade de sermos para além de nós próprios, dos nossos desejos e dos nossos caprichos. É a capacidade de ficar, de permanecer ainda que o nosso mundo desabe. É a capacidade de dizer “escolhi-te porque te amo; amo-te porque te escolhi.” É aí que estamos a falhar enquanto pessoas, enquanto famílias, enquanto comunidade. A vontade de ficar porque te amo transformou-se em liberdade de partir porque me amo. O compromisso contigo transformou-se em compromisso comigo. Do ser para os outros que nos foi sendo sabiamente transmitido ao longo de gerações, especializamo-nos em ser para nós próprios, e o nosso mundo foi-se reduzindo progressivamente ao nosso próprio umbigo, paradoxalmente o que nos ligava à nossa mãe e, por intermédio dela, á nossa família.

Por isso, a preocupação com a família não deveria ser uma inquietação apenas da Igreja mas de todos, enquanto civilização. Porque à medida que vamos perdendo esse valor que nos foi deixado por herança ao longo de toda a nossa existência é a nós próprios que nos vamos perdendo, sempre a troco de coisa nenhuma, de uma felicidade que tem tanto de aparente como de efémero e vazio. Porque, à medida que nos vamos desligando da Família, vamo-nos desligando de Deus, e à medida que nos vamos desligando de Deus, vamo-nos desligando da família, e uns dos outros, e de nós próprios.

Este Natal o presépio deverá reocupar o centro das atenções nas nossas casas. Assim, quando olharmos para o nosso presépio, quando olharmos para aquela família que, tal como a nossa, no aparentemente nada afinal era tudo, tenhamos a coragem de nos interrogarmos profundamente. Quanto de nós se tem vindo a perder no desvalorizar progressivo da Família de Nazaré? Quanto de nós se tem vindo a perder nesta ânsia de felicidade a todo o custo? Quanto de nós se tem vindo a perder no desligar progressivo de Deus?

Deus escolheu nascer no seio de uma família.
Terá sido por mero acaso?

Artigo publicado no Jornal Paroquial O Poço, em dezembro de 2013

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