20130531



Tenho saudades de Bento XVI. A sua escrita simples, exigente e inteligente, a sua determinação, a sua enganadoramente frágil aparência, a sua extraordinária lucidez que nos levava ao encontro dos temas verdadeiramente determinantes do nosso tempo, são características que admiro profundamente numa pessoa e que desejo para o "meu" Papa.

Francisco é de outra estirpe. Muitíssimo diferente. Tão diferente que me arrisco a dizer que o melhor papa são estes dois papas juntos. De um lado a inteligência, do outro a acção. De um lado a serenidade devidamente alicerçada na sabedoria profunda encontrada na intercessão entre fé e razão; do outro lado o arrojo do peregrino, a voluntariedade de quem encontra o seu caminho na justa medida em que faz caminho, para quem a fé e a razão estão ao serviço da acção. É um pouco como se Paulo e Pedro fossem Papas ao mesmo tempo. E sabemos como foram ambos fundamentais no estabelecimento dos alicerces da Igreja.

Naturalmente, num e noutro há coisas que me desagradam.

Em Bento XVI, a sua tendência para uma certa direita, para um rigor excessivo, nomeadamente em termos litúrgicos, sempre me causou alguma impressão. Bastou-me ir a uma eucaristia em Moçambique para perceber como algumas coisas não fazem sentido, simplesmente porque são desenraizadas do modo de ser e de sentir de um povo, e que é absurdo impormos um modo de ser, de sentir e de agir europeu numa cultura africana. Se a fé em Jesus Cristo apenas faz sentido quando enraizado na vida vivida, que sentido faz impor uma artificialidade na celebração da fé? Não percebo!

De Francisco gosto dos seus gestos, do seu desassombro em ficar no fundo da Igreja. Gosto muito do que ele incomoda, no sentido em que desassossega aqueles que estavam demasiado cómodos nas suas cátedras eclesiásticas despojadas de realidade. Gosto que quebre os tabus, que quebre a segurança, que tente restaurar a normalidade no quotidiano de uma parte da Igreja que acreditava poder pairar acima das pessoas. Há, no entanto, uma coisa nele que eu detesto... e temo: por várias vezes, nos seus discursos (e agora aparentemente em alguns dos seus gestos) faz referência ao diabo, ao demónio, numa reedição do Império do Mal.

Ainda há pouco tempo, lá em casa, discutíamos isto. Acredito em Deus, no cunho de Amor que nos imprimiu, a todos, sem excepção, que nos faz sentir bem quando fazemos os outros sentirem-se bem mesmo com prejuízo de nós próprios. Acredito que nem sempre conseguimos fazer jus a esse amor e que quando isso acontece há uma fome intensa, quase imperceptível mas absolutamente devastadora, que toma conta de tudo o que somos. Acredito que somos, todos, chamados para o Bem, que tendemos para o Bem, quaisquer que sejam as nossas circunstâncias, quaisquer que sejam os nossos percursos pessoais ou colectivos, e que muitas vezes basta que alguém, na nossa vida, nos desperte para esse Deus que nos ama, para que tudo passe a fazer sentido.

E acredito que o diabo somos nós sempre que não sabemos ou não queremos viver esse Amor que nos é oferecido. Tudo o resto é para incutir medo. E o medo limita, aprisiona, gera desconfiança e quem desconfia fecha-se, mirra... morre.

E isso, creio, não tem nada a ver com a Igreja de Jesus Cristo.

20130530


Não é todos os dias que encontro coisas que encaixam em mim como uma luva. Começou por este post-tt (muito úteis estes post-its quotidianos que me levam muitaz vezes a refletir) e acabou neste estrondoso texto do Tolentino http://www.snpcultura.org/a_arte_da_lentidao.html

Se, por um lado, eu anseio por essa lentidão, que me ajuda a saborear a vida, por outro, desde que me conheço que não consigo deixar passar um dia sem fazer o esforço de crescer alguma coisa. Não existe, para mim, percepção de maior inutilidade que sentir que adormeço ainda menos do que acordei. Podem ser pequenas coisas, aparentemente inúteis, aparentemente sem valor algum, mas que me fazem sentir que não deitei a vida pela janela fora.

Este é um equilíbrio, ou melhor, uma tentativa de malabarismo, que nem sempre consigo alcançar. A imensidão de artigos, de textos, de músicas, de filmes, que tenho guardados à espera de dias melhores, de quando eu tiver tempo, irão justamente fazer com que nunca tenha tempo, num paradoxo de impossível resolução. Afinal, eu quero ter tempo para que o possa gastar e assim deixar de o ter. Estúpido, não é?

E no entanto é assim desde que me conheço. Mesmo quando era miúdo e trocava livros no farrapeiro do Bomjardim - só assim lhes podia aceder - havia sempre alguns, daqueles que eu, na altura, pensava ser os melhores, grandes, com muitas páginas e pesados, que não trocava nem lia mas guardava para quando tivesse tempo. Um tempo que, obviamente, ainda não chegou e se calhar nunca chegará. Mas isso é o menos, porque esse tempo é o tempo do não real, é o tempo que eu quero sempre ter, pelo qual anseio sempre, que vou chutando para a frente, vou adiando, mas que é importante que esteja sempre lá, à minha espera, no meu horizonte.

Tenho dias em que anseio pela velhice. Só para ter tempo para ler, ver e ouvir a imensidão de livros, textos, filmes e músicas que tenho guardados para esse tempo.

20130523


Por vezes, depois de escrever qualquer coisa por aqui, recebo alguns ecos positivos. Que escrevo bem, que deveria pensar em publicar o que escrevo, se calhar um livro... Volta e meia, ao entrar para aqui, deparo-me com a estatística dos meus eventuais leitores. Passo sempre a correr, quase de olhos fechados, como em criança passava em frente do Bazar Paris, na Rua de Sá da Bandeira, para não cair na tentação de desejar o que nunca poderia vir a ter.

Por várias vezes escrevi aqui que volta e meia sou acusado de ser pouco ambicioso. Sou-o, efectivamente. Gosto muito do que vou tendo, aprecio muitíssimo o que vou conquistando, passo a passo, e consigo ter espaço e tempo para saborear esses momentos, por muito curtos ou pouco importantes que pareçam aos olhos alheios. Esta valorização do pequeno não me rouba ao grande, mas, pelo contrário, creio que me vai proporcionando uma consistência que de outra forma nunca teria.

Eu não quero escrever com a responsabilidade de ter que escrever. De agradar a públicos, de pensar se quem me lê gosta ou não gosta. Eu não gosto nada desse tipo de pressão, de ocupar a cabeça com coisas dessas, quando escrevo justamente para a aliviar desse pequeno mundo que tanto me incomoda. É como quando canto. Uma vez caí na tentação de aceder a um dos muitos convites que me faziam quando era novo, de tocar e cantar num lugar público. Para mim, foi horrível e tirou-me todo o gozo que normalmente tenho quando canto. A ideia que as pessoas estavam ali apenas para me ouvirem, que poderiam até ter pago para o fazer e a responsabilidade de ter que justificar o seu gasto de tempo, provocou-me uma pressão tal que prometi a mim mesmo que nunca mias o faria. Passava-se a mesma coisa, aliás, quando jogava futebol. Nos treinos era excelente mas nos jogos não fazia nada porque acusava muito a responsabilidade e facilmente cedia à pressão. Estas coisas não são para mim.

Ontem, ao jantar, discutia com as minhas filhas a importância da liberdade, que é um dos mais preciosos bens que podemos ter. E eu gosto muito de ser livre. De escrever quando me apetecer, o que me apetecer, sem me preocupar se me lêem ou não, se gostam ou não. Gosto de sentir, preciso de sentir, essa liberdade que me vai permitindo descobrir-me lentamente, paulatinamente, sem grandes preocupações com avanços ou recuos, com construções de frases, com linguagens mais ou menos eruditas. Gosto muito da minha liberdade de poder escrever o que me dá na real gana, ao sabor do momento, do que sinto no momento, sem me incomodar se me desdizer dois dias depois.

Escrever sempre foi, para mim, tão fundamental como respirar. Quando não existiam os blogues escrevia num qualquer papel, que depois deitava fora. Tenho na cabeça, ainda, uma frase completamente estúpida, que escrevi vezes sem conta, só pelo gozo de escrever: "Dada a inconsistência pública que normalmente se normaliza nas situações não normalizadas, chegamos à conclusão que a normalização não é tanta como a que se diz." Não conheço nada tão estúpido quanto isto, e ainda hoje o escrevo muitas vezes. Escrever é, para mim, um acto de libertação pura, de ficar sem amarras, de me deixar ir ao sabor do pensamento.

Por isso, tal como fazia em miúdo quando passava em frente do Bazar Paris, irei continuar a passar pelas estatísticas desviando o olhar.

20130517


Vai hoje a votação uma proposta de permissão de adopção para casais homossexuais. Enquanto vinha para cá, ouvia na "minha" TSF o testemunho de um homem, homossexual, cujo companheiro adotou um filho mas que não pode por o seu nome no BI como pai, nem o do seu (efectivamente) filho como filho.

Estas coisas incomodam-me, no sentido em que me fazem sair da letargia em que muitas vezes me encontro em determinados assuntos para que os possa repensar, reavaliar para, eventualmente, os voltar a catalogar e arrumar no devido sítio.

À partida sou contra a adoção por casais homossexuais. Aliás, tive que fazer um percurso interior para tentar compreender - e assim aceitar - a homossexualidade, que me tende ainda a parecer um desvio comportamental profundo causado por um qualquer trauma de infância. E se nesta altura a homossexualidade me vai incomodando menos, não posso deixar de me questionar interiormente o que sentiria se um dos meus filhos me dissesse que era homossexual. Provavelmente acabaria por aceitar, mas, em boa verdade, não seria nada fácil. Por isso, apesar de ser politicamente incorreto, aceito a homossexualidade mais pelo respeito ao direito que um adulto tem da sua privacidade, que pelo facto de entender que é algo natural. No fundo, entendo que a forma como cada adulto vive a sua sexualidade diz respeito apenas à liberdade de cada um e ninguém tem nada com isso. Por isso, detesto tanto as bichas como os marialvas gabarolas. Não tem a ver com orientação mas com exibição.

No entanto, se isto vai sendo progressivamente pacificado dentro de mim, no que diz respeito à adoção a coisa complica-se muitíssimo. Porque não é de adultos que se trata, mas de uma criança, que precisa de uma proteção especial e não pode servir de joguete ou troféu nas mãos de quem quer que seja. Mas quando penso a sério nisto que acabei de escrever - que é o que me sai naturalmente - consigo logo contra-argumentar com facilidade: Quer isto dizer que a homossexualidade implica um qualquer instinto maquiavélico que leva à manipulação das crianças? Quer isto dizer que a orientação sexual de um adulto condiciona a sua capacidade de amar uma criança? Quer isto dizer que um homem ou uma mulher heterossexuais têm sempre a melhor das intenções ao querer adoptar uma criança? E o melhor do desempenho enquanto pais? Quer isto dizer que a probabilidade de uma criança ser amada pelos seus pais é maior num casal heterossexual?

Estas questões não são nunca fáceis para mim. Preferiria ter uma posição absolutamente definida, absolutamente certa, absolutamente balizada, mas, em boa verdade, ainda não o consigo. Claro que sei o que defende a Igreja a que pertenço; claro que sei que as emoções podem ser manipuladas, e com elas a racionalidade; claro que sei que no meio disto há pessoas que julgam que têm que ter o poder de adotar e que, sendo uma questão de poder, é necessariamente uma questão de instrumentalização da criança; claro que sei que há toda uma herança histórico-patrimonial, todo um processo evolutivo, que determina que as coisas sejam como são. No entanto, também sei que tudo isto são ideias, tudo isto são generalidades, tudo isto são coisas que não têm a pessoa A ou a criança B em causa, mas uma ideia de pessoa e de sociedade que nem sempre está convenientemente alicerçada na realidade de cada pessoa e, fundamentalmente, de cada criança..

No fundo, no fundo, creio que a principal questão a colocar será neste sentido? Será uma criança mais feliz numa instituição ou no seio de uma família que a ama, qualquer que seja a orientação sexual dessa família?

Quem tiver certezas que atire a primeira pedra. Eu espero.

20130513


Se me dissessem, há 23 anos atrás, que acordar estes anos todos ao lado da mesma pessoa seria motivo de felicidade, eu rir-me-ia. De nervoso. Que nada teria de miudinho, era graúdo, mesmo.

Eu morria de medo de me casar. Sabia, como sempre soube, que o casamento seria para toda a vida, sabendo, como sempre soube, que isso de toda a vida é história. Um casamento não dura toda a vida: dura, quando muito, um dia de cada vez, um momento de cada vez, um minuto de cada vez. Apenas assim, num jogo a quatro mãos - e tendo consciência que nem sempre estão todas as mãos em simultâneo - permanente e constante, é que é possível acordar feliz ao fim de todos estes anos.

Volta e meia ainda nos chamam "casal maravilha". Antes faziam-no mais, e mais às claras, mas eu devia deitar um daqueles meus olhares sempre que isso acontecia até que foi acontecendo cada vez menos. Eu detestava fazer parte do "casal maravilha". Até porque sabia que de maravilha não tinha nada. Amamo-nos muito, identificamo-nos muito um com o outro, renovamos os nossos votos muitas vezes, sem esperarmos datas especiais, olhos nos olhos, sempre que há uma aberta na enorme tempestade que por vezes é a nossa vida. Mas sabemos, contudo - tivemos que o aprender, como qualquer casal - que amar só, por vezes é pouco, que não chega, que há muitos factores, muitas interferências, muitas vontades, muitos desejos, que ora são calados, ora são satisfeitos, ora são adiados por falta de oportunidade. Sabemos, os dois, porque ambos somos assim, que todos os dias batalhamos por nós - e batalhar é, muitas vezes, o termo que exprime exactamente o que acontece - que todos os dias escolhemos não adiar, que todos os dias escolhemos recomeçar, e que temos dias em que um de nós tem que procurar, no outro, com algum afinco, o motivo para amar tanto assim. Ou então, naquela que considero uma das maiores sabedorias do meu casamento, temos dias em que um de nós encontra as forças que faltam ao outro para escolher pelos dois, amparar pelos dois, cuidar pelos dois, mimar pelos dois, amar pelos dois. Por causa das opções que fizemos e continuamos a fazer - quisemos ter os filhos cedo, quisemos mais um a meio do percurso, apenas conhecemos o profundo envolvimento pessoal em tudo o que fazemos - são muitas as vezes em que alternamos na manutenção e no amparo deste nós que a vida por vezes teima em por em causa. São muitas as vezes em que um carrega o outro por amor e, por amor, o outro confia ao ponto de se deixar carregar.

Por isso detesto o "casal maravilha". Porque sinto sempre que esse epíteto não nos pertence, que há outros casais, que conheço, que têm uma maior harmonia mas se calhar menos visibilidade. Detesto o "casal maravilha" porque o nosso casamento é feito, fundamentalmente, de vida, de muita vida, e a vida tem momentos altos e momentos baixos, tem alturas boas e outras más, tem vento em popa e tem a força dos remos. E que tivemos a sorte de, até hoje, aqui e agora, pelo menos um de nós ter sempre encontrado forças para se encarregar do leme.

Se um dia o meu casamento falhar - e esta consciência da possibilidade de falhar é fundamental para que nunca se dê nada por definitivamente adquirido - nunca será por falta de amor. Amamo-nos na nossa diferença, encontramo-nos nela, completamo-nos mutuamente nela. Por causa dela discutimos muito e conversamos mais ainda, afinamos e reafinamos estratégias, temos as mesmas conversas vezes sem conta, e voltamos a tê-las, ainda que saibamos perfeitamente o que cada um vai argumentar, nunca nos permitindo, no entanto, deixar de o fazer. Mas nunca, em momento algum, sentimos que nos amávamos menos que no dia em que, interiormente, tacitamente, sentimos que seríamos sempre um do outro. E nunca, em momento algum, sentimos que qualquer um de nós seria mais feliz sem o outro.

Há 23 anos assustava-me muito a possibilidade de acordar todos os dias ao lado da mesma pessoa. Hoje, passado todo esse tempo, redescubro todos os dias que é o melhor dos motivos para dar Graças a Deus por cada amanhecer.

20130509


Hoje sei que vou ter esta foto a assaltar-me o dia. Tanto quanto percebi trata-se de duas pessoas que morreram no recente acidente de Bangladesh. Como acontece muitas vezes em muitas coisas da vida -  particularmente nas coisas do amor, qualquer que seja a forma de amar que testemunhamos - esta é uma imagem que encerra em si o mais profundo paradoxo, onde o belo e o horrível estão, à primeira vista, em pé de igualdade.

Francamente, não creio que a minha morte seja a pior coisa que me pode acontecer. Nunca o considerei. Acredito que há coisas muitíssimo piores que nos podem acontecer, no topo das quais está, com toda a certeza, a morte de um filho, que todos tememos tanto que remetemos para os confins mais confins de nós próprios para conseguirmos viver.

Numa primeira fase da minha vida, por causa dos imensos livros de aventuras e de guerras heróicas que li, talvez por causa até do cavaleiro da fraca figura que ainda hoje me continua a apaixonar, sempre me pareceu uma boa coisa morrer de forma digna. Mais tarde, com a descoberta da fé, descobri que essas mortes dignas e heróicas enraizavam naquele que é o verdadeiro modelo da entrega: Jesus, o Cristo. A partir dessa altura,  percebi que a questão não seria a forma como morro mas como escolho viver.

Não sou capaz de pensar sequer no horror que deve ter sido sentir um prédio inteiro desabar sobre si e, com ele, toda a vida. Não consigo sequer imaginar o turbilhão das ideias, das sensações, das memórias que assaltarão quem sofre o que estas pessoas sofreram. E não consigo ler, também, o que terá motivado que alguém, naquele momento tão intenso, porventura o mais intenso da sua vida, se tenha agarrado a outro alguém. Poderá ter sido o desespero, poderá ter sido o medo, poderá ter sido a tentativa de salvar esse alguém, ou de não morrer sozinho, de não enfrentar o que viria de mãos vazias, sem qualquer aconchego, sem qualquer calor. Ainda que breve. Ainda que fugaz. Ainda que final.

Acredito que muita pessoas farão o que eu fiz ao ver esta foto: passado o choque, sorrirão. Eu sorri. Porque, de alguma forma, ao me questionar, ao me interpelar, esta foto ajuda-me a acreditar que, se a solidão não é boa companhia para viver, se-lo-á muito menos para morrer.

20130508


O que afere a amizade? Quais os critérios que me permitem afirmar que alguém é ou não amigo? A presença, constante ou episódica, quando preciso? O facto de me ajudar a crescer? A minha vontade de estar na presença de...? A partilha dos mesmos pontos de vista, dos mesmos ideais? A partilha de experiências fortes? A admiração e o respeito profundos pela sua personalidade?

Por vezes penso que os meus amigos são aqueles que estarão disponíveis para mim sempre que eu preciso deles. É uma visão utilitarista e egoísta, que não quero crer que seja verdadeiramente definidora da amizade.  Até porque outras vezes acredito que são aqueles cujo sabor interior permanece imune ao tempo, que podemos até passar muito tempo sem nos vermos mas quando estamos juntos vivemos esse momento como se o passado cedesse o seu lugar a um eterno presente, num tempo que não tem tempo. Mas depois, no entanto, eis que conheço alguém com quem sintonizo imediatamente, descobrindo uma empatia que também é imune ao tempo, porque nunca existiu passado e tudo é futuro. Um futuro que muitas vezes se fica pela expectativa e nunca chega a concretizar-se, sem nunca, contudo, perder o sabor. É menos amigo por isso? Sinto-o menos por isso? Estaria menos pronto a estar por isso?

Um dia destes, estava eu a tentar explicar uma matéria de história a uma miúda do Centro, e aproveitei para lhe falar de Jesus, de como foi tão importante que até dividiu o tempo. Ela, na sua inocência de menina, disse que era uma pouco como nós os dois, que agora a escola era muito diferente do que era antes porque percebia melhor as coisas.

"Não tem nada a ver" e rimo-nos os dois, mas eu fiquei a pensar nisso. Um bom amigo é mesmo aquele que nos divide o tempo, que nos interrompe o tempo, que provoca um antes e um depois na nossa vida sempre que nos encontramos. Pode ser um encontro breve, um cruzar no corredor; pode ser uma conversa mais séria ou outra de coisa nenhuma; pode ser um café rápido ou uma refeição prolongada; pode ser um dia de festa ou um velório... pode ser tudo isso e muito mais, mas o que é certo é que o nosso dia muda. Naquele dia houve um antes e um depois, houve alguém que nos roubou ao nosso tempo e se apropriou dele e de nós e se tornou encontro nem que seja apenas nos nossos pensamentos, naquele lugar onde apenas encontramos quem queremos encontrar, onde apenas está quem queremos que fique.

Ainda hoje não sei muito bem o que afere um amigo. Penso em Isabel, que quando recebeu a visita de Maria, sentiu o menino a saltar-lhe no ventre. Eu, na ausência de menino, meço estas coisas pelo sobressalto do coração.

É o melhor indicador de todos. Diz-me o Tempo.

20130506


A palavra latina cor (ou cordis), que significa coração, deu origem a várias palavras da nossa língua. Veja alguns exemplos: concordar é palavra formada do latim con + cordis, isto é, com coração. Quando duas pessoas concordam é porque seus corações estão juntos ou unidos. Discordar, por outro lado, é o oposto. Vem do latim dis (separar) + cordis. Quem discorda, portanto, afasta-se do coração do outro. Recordar, por sua vez, quer dizer "trazer de novo ao coração". A expressão "saber de cor" também vem diretamente do latim: saber de coração, isto é, de memória. E, por último, vamos destacar a palavra coragem, que também deriva de cor. Para os antigos romanos, o coração era a sede da coragem. 

http://www.dicionarioetimologico.com.br/searchController.do?hidArtigo=5747DD9B09FCF4BC1BDF8E2BA2B8D09B

Na eucaristia de ontem, o meu pároco referiu, a propósito do Evangelho, a origem etimológica da palavra recordar. E disse, naquele seu tão típico tom assertivo, que todos deveríamos saber um pouco de latim. E grego, acrescento eu.

Eu tenho uma tendência especial para aquelas coisas que não servem para mais nada a não ser para nos tornarem mais ricos. Quando disse à minha avó que ia voltar à faculdade para voltar a estudar Ciências  Religiosas, o comentário que ela fez foi aquele que muitos amigos calaram: "Que bom, filho. Vais ganhar mais?"

Uma das minhas filhas não seguiu o conselho que lhe dei na altura de escolher o curso superior. Sempre lhe disse que seria mais feliz a limpar bosta de cavalo e a ganhar pouco que a fazer qualquer outra coisa na vida. No entanto ela, como é uma miúda do seu tempo e vivemos um tempo de medo (qualquer dia volto a isto, à nossa cultura do medo) ela preferiu um outro curso mais convencional, teoricamente mais seguro, embora, estou convicto, o seu futuro passe pelos cavalos.

Também eu tive um tempo assim na minha vida. Estava farto de contar tostões, de ficar cada vez com mais mês no fim do dinheiro, e quando apareceu uma oportunidade de alterar as coisas, agarrei-a com tudo o que tinha. Aconteceu o que, comigo, apenas poderia acontecer: fui um desastre total. Por pouco, por muito pouco, esta minha ânsia de assegurar o secundário abdicando do primordial não deitou tudo a perder. Não valeu a pena. Fui infeliz e fiz infelizes aqueles para quem, estupidamente e contra os seus conselhos, renunciei de mim.

Aquela pequena frase de ontem dita pelo meu pároco foi um dos momentos altos do meu dia. Porque me permitiu recordar pessoas, situações e momentos, porque percebi que isso era voltar a metê-los no coração, era voltar a tê-los cá por dentro. Porque, pouco depois, deu origem a uma deliciosa conversa com um dos meus filhos, que também gostou da frase e com ela viajou... e viajamos...

Não Vó. Estas coisas não me fazem ganhar mais. Mas se tiver sorte, fazem-me ser mais.

20130503


Recordo-me bem de uma discussão que tivemos, há cerca de um ano, acerca do Facebook, Twitter, Blogues e outros que tais. De como seria imprescindível, para fazer catequese, hoje em dia, utilizar estes meios de comunicação. De um lado estavam os defensores das redes sociais e do outro, em aparente oposição, aqueles que privilegiam o olhos nos olhos. Claro que as coisas não são excludentes. Não é pelo facto de eu alimentar o meu blogue ou de colocar pequenas questões no Facebook que acho que o contacto pessoal é dispensável. Será mais uma porta, mais uma janela, mais um meio de iniciar a conversa, como quem não quer a coisa, mas de forma alguma substituirá o que apenas o cruzamento dos olhares permite.

Desde que comecei a minha actividade mais assídua no Centro que os pedidos de amizade no Facebook aumentaram exponencialmente. Com eles veio toda uma série de pedidos de jogos, de aplicações, de fotos, de gostos, que têm o condão de me incomodar profundamente. Ainda esta semana, enquanto acedia ao pedido de amizade de um dos miúdos, pensava que se calhar era chegado o momento de abrir uma nova conta no Face só para estes casos. Assim, de alguma forma, a minha privacidade estaria salvaguardada e apenas os escolhidos por mim poderiam ter acesso às minhas opiniões, às minhas fotos, aos meus comentários mais pessoais.

No entanto, pouco depois, fez-se-me um click. Se eu lhes retirar aquilo que eu sou, o que fica para lhes transmitir? Se eu os impedir de ver as minhas fotos, se lhes cortar o acesso à minha família, aos pequenos pensamentos e orações que normalmente publico, se lhes esconder aquilo de que mais me orgulho, como lhes poderei transmitir, com naturalidade, o que torna os meus dias mais dias?

O que me deixa profundamente triste comigo próprio nisto tudo é que apenas considerei esta possibilidade quando as solicitações do Centro começaram a surgir. Porque antes, quando vinham de outro tipo de pessoas, as solicitações até me deixavam feliz. Lembrei-me dos convites de Jesus para partilhar a mesa com os pecadores e o medo que isso originava. Para que mesa gostaria eu de ser convidado?Terei eu assim tanto medo do contágio? Terei eu assim tanto medo de me conspurcar? Então encenava a partilha com uns, para que ficassem contentes com a aparência de mim, enquanto partilhava verdadeiramente com outros? É feio. É muito feio.

Volta e meia acontece-me isto: apercebo-me que tenho ainda uma capa que resiste à comunhão com aqueles para quem a comunhão é mais necessária. Não é algo de consciente, que me venha à cabeça todos os dias, mas é algo que por vezes, felizmente, se vai revelando, e me permite desconstruir-me e descer do pedestal em que me coloco a mim próprio.

Há bastantes coisas em mim, coisas grandes, coisas profundas, quase ineludíveis, que tenho mesmo que mudar. E que se manifestam assim, por vias travessas, por coisas pequenas.

Bambora

  Não é estranho que nos digam que «ser homem é muitas vezes uma experiência de frustração». Mas não é essa toda a verdade. Apesar de todos ...