20111129



Chorar em público

Por Miguel Esteves Cardoso
Quando sair este jornal, a Maria João e eu estaremos a caminho do IPO de Lisboa, à porta do qual compraremos o PÚBLICO de hoje. Hoje ela será internada e hoje à noite, desde o mês de Setembro do ano passado, será a primeira vez que dormiremos sem ser juntos.

O meu plano é que, quando me expulsarem do IPO, ela se lembre de ir ler o PÚBLICO e leia esta crónica a dizer que já estou cheio de saudades dela. É a melhor maneira que tenho de estar perto dela, quando não me deixam estar. Mesmo ficando num hotel a 30 passos dela, dói-me de muito mais longe.
... Eu estou aqui ao pé de ti. Como tu estás ao pé de mim. Chorar em público é como pedir que nada de mau nos aconteça. É uma sorte. É o contrário do luto. Volta para mim.
http://jornal.publico.pt/noticia/28-11-2011/chorar-em-publico-23509804.htm
Não é a primeira vez que o amor entre o Miguel Esteves Cardoso e a Maria João me comove. Ao longo dos tempos tenho-o lido e acompanhado o seu sofrimento, as suas idas ao IPO, as suas cartas de amor públicas e publicadas. Parece-me incrível que este seja o mesmo MEC do Independente, dos livros com títulos desabridos, das dependências gastronómicas e alcoólicas. Um MEC que umas vezes era absolutamente genial e outras tremendamente snob, insultuosamente snob, a roçar a infantilidade. A realidade é que este amor, esta vulnerabilidade, esta capacidade de sofrer por quem se ama, pelo menos aos meus olhos,tem o condão de o humanizar e de o fazer subir uns valentes degraus na minha consideração. Não que isso tenha alguma importância para ele. Mas tem para mim. E, acredito, para todos os que sabem o que é sentir a dor de quem se ama.

20111125


Nada em mim é insignificante.
Absolutamente nada.
Nada em mim não se repercute naqueles que comigo vivem, que comigo contactam, que comigo dividem a azáfama do dia, que comigo tentam descobrir essa coisa efémera que é a felicidade. Não há gestos pequenos, não há palavras pequenas, não há atitudes pequenas, sem significado, sem consequências. Em mim tudo conta, tudo pesa, tudo significa.

E tudo me entra pelo olhar.

É espantosa a facilidade com que a vida me pode passar ao lado. Como posso passar ao lado das pessoas sem as ver, como posso passar ao lado das situações sem deixar que me salpiquem, como posso passar ao lado da vida dos outros sem que eles passem de figurantes de um filme que tem o meu próprio umbigo como actor principal.
Tudo porque, consciente ou inconscientemente, escolhi não olhar.

Acredito que o verdadeiro fundamento do AJUDA é justamente esse: educar o olhar. Fazer ver, fazer reparar, fazer notar que à nossa volta existem pessoas que vivem uma condição social diferente, que têm diferentes horizontes, diferentes limitações, e sonhos e expectativas e futuros que, à partida, sem que por isso sejam responsáveis, condicionam as suas vidas. E que, à partida, sem que por isso sejamos responsáveis, condicionam as nossas vidas. Mas que, à chegada, todos somos responsáveis pelas vidas uns dos outros.

Hoje acordei com esta vontade de reeducar o meu olhar.
Creio que é um bom desígnio para o Advento.
Talvez desta forma consiga reparar naquele que veio para me encontrar.


20111122


Há dias assim: loucos. Total e absolutamente loucos. Que normalmente se seguem a semanas igualmente loucas, que estas coisas nunca vêm sós. Acontecem sempre quando menos preciso delas, quando anseio por um pouco de tempo para fazer o que tenho mesmo que fazer sem ter que correr. Mas é inevitável. Parece que o vento assola justamente quando precisava que amainasse. E isso é sempre uma lição de humildade para mim. Quando penso que tenho tudo devidamente organizado, controlado até ao mínimo pormenor, quando vou adiando as coisas confiando que terei tempo para tudo, em suma, quando me armo aos cágados, é quando as coisas acontecem. Um telefonema, uma convocatória, um programa que não estava no programa mas ao qual não posso fugir e lá ando eu com as calças na mão, a contar os dias, as noites e as horas que vou roubar à cama.

Nestes dias assim, loucos, a minha adrenalina dispara para valores pouco aconselháveis. Sinto-me capaz de caminhar daqui até aos confins, sabendo contudo que meia dúzia de passos depois já não posso com uma gata pelo rabo, porque a adrenalina não mata mas mói e sei que daqui a pouco vai-me doer tudo.

Neste preciso momento anseio por um pouco de calma, por acabar o meu curso e me permitir ler um bocado ou fazer coisa nenhuma sem sentir culpa alguma por fazer coisa nenhuma. Anseio pelos meus livros, pelos meus filmes, pelos meus podcasts, pela minha música, pelos meus inúmeros artigos que, todos eles, me esperam impacientemente enquanto eu ando ocupado com outras coisas. Anseio por poder caminhar ou correr ou vegetar no sofá no final de cada dia de cabeça livre para a libertar ainda mais. Anseio por namorar, de mão dada, junto à Foz ou no Parque da Cidade. Anseio por umas boas sardinhas assadas - que este ano, por causa de Moçambique, foram escassas - na Casa Serrão, recheadas por uma boa conversa e seguidas por um excelente filme "arrebenta corações".

Anseio por isto tudo e muito mais. Mas ansiar mais não faz que me indicar o norte. Porque o caminho, esse, é sempre em frente. E, espero, sempre a subir.

20111117


Estou habituado a semear. É das coisas que mais gozo me dá, aliás. Colocar uma semente aqui, outra acolá, deixando a eventual germinação ao cuidado de cada um e do Mestre Tempo. Sempre que posso vou acompanhando - se possível à distância - a evolução da cultura. Sempre que o consigo, sem interferir. Às vezes é complicado não interferir, particularmente com aquelas pessoas de que mais gosto, ou que me são mais fundamentais. Noutras vezes descubro que é mesmo importante que interfira, que corrija, que é esse o meu papel, como com os meus filhos, por exemplo. A responsabilidade pela sementeira é toda nossa e até uma parte da colheita será também nossa.

O que já não estou muito habituado é a ser terreno para sementeira alheia. Pelo menos não por alguém mais novo que eu. O que aprendo com a malta mais nova - e aprendo muitíssimo, Graças a Deus! - advém mais da minha observação da sua atitude generosa e confiante perante a vida que propriamente da sua preocupação em semear. Por isso, dá-me sempre um gozo extraordinário conhecer alguém que gosta de semear e tem a capacidade de o fazer com inteligência, sensibilidade e, sobretudo, sagacidade. Que não revela tudo, vai deixando peças soltas, uma palavra, uma frase, um sorriso, que acabam por acampar cá por dentro e me incomodam, no sentido que me tiram do comodismo que me paralisa.

Apercebo-me que estou perante um semeador quando, depois de estarmos juntos, há algo da nossa conversa que me inquieta,  me desassossega,  me provoca ao ponto de me levar a questionar o próprio sentido da vida, ainda que seja para confirmar os valores que defendo. Dou por mim a tentar encontrar as minhas razões de acreditar, a justificar as minhas opções, a identificar os meus defeitos e qualidades e o que fazer com eles.

Durante todo este processo sorrio. Sempre. Porque alguém se preocupa em me fazer crescer.

20111116


Nunca fui adepto da repetição de momentos de felicidade. Vivo sempre muito intensamente as coisas na altura em que as devo viver e por isso tenho sempre alguma dificuldade em voltar a sentir o mesmo tipo de felicidade em contextos diferentes. Normalmente o que sinto é que essas alturas são pouco menos que flops: muito boas intenções, expectativas demasiado altas, mas depois um intenso sabor amargo na boca.

Mas há sempre excepções.
Raras.
Hoje aconteceu uma delas.

Estávamos todos. Nós. Apenas nós. Formalidades rapidamente ultrapassadas e revisitámo-nos a todos por algumas (escassas) horas. Juntos voltamos a rir e a chorar, juntos voltamos a rezar e a cantar, juntos voltamos a ser lobos e cordeiros, ainda que na maior das confusões.Voltamos a conseguir estar juntos sentindo-nos juntos, como se o tempo tivesse parado, como se nada tivesse mudado.

Já levo muitos anos disto, de convívios, de retiros, de momentos e acontecimentos especiais e contudo não é muito frequente acontecer o que aconteceu hoje.

Hoje foi, de facto, um dia diferente dos outros (Meu Deus! Há quanto tempo não cantava isto!!!)

Obrigado

O "nós" já se instalou há alguns dias, desde que a data ficou definida. Mesmo nos corredores, quando nos cruzamos, a atitude é outra, o sorriso é outro, também porque a cumplicidade é também outra, agora que foi revivificada.
E como eu gosto disto!

Nestas alturas tenho sempre O Principezinho como companhia: deitei-me ontem a pensar no reencontro, acordei a pensar no reencontro, e mesmo na eucaristia que, coincidentemente, tivemos juntos, já lá estava o reencontro e as trocas tinham ganho um novo sentido.

Esta antecipação do reencontro é o que mais nos tornará uns dos outros. Irá com certeza haver um tempo em que mal nos recordaremos, em que a vida vivida açambarca o presente relegando o passado para o passado, de tão preocupados estaremos em preparar o futuro. Irá haver um tempo em que parece que tudo passou e este "nós" não foi mais que mais um dos imensos grupos que em alguma altura fizeram parte da nossa vida. Irá haver um tempo em que pensaremos que o que passou passou e ficou definitivamente passado.

Mas iremos ter momentos. Sempre. Iremos ter memórias. Sempre. Iremos ter alturas em que fecharemos os olhos e recordaremos aqueles dias como fazendo parte do Top Ten da nossa vida. E agarrados a essas memórias virão olhos e sorrisos e lágrimas e dádivas e entregas e partilhas e corações infindáveis com orações infindáveis e até a saudade daqueles dias em que nos faltavam tudo e todos... excepto o "nós". Porque ninguém vive o que vivemos, ninguém partilha o que partilhamos, ninguém é de alguém como nós fomos de todos sem que se conquiste o privilégio de habitar para sempre algures dentro de cada um de nós. Num lugar apenas nosso.

20111114


Parece contraditório para quem me acompanha mais assiduamente na vida, mas para mim é muito importante estar. Pode não ser fisicamente perto, ao alcance da vista, mas estar, partilhar, ser, para as coisas boas e menos boas, é fundamental.

Há uma frase no filme preferido da minha maisquetudo que explica isto, onde a intérprete principal afirma que as pessoas se apaixonam porque precisam de quem testemunhe a nossa passagem por cá.

É verdade: ter com quem conversar, com quem partilhar, ter alguém com quem temos passado, vivemos o presente e sonhamos o futuro, é absolutamente fundamental para a minha sanidade mental e sentimental. É uma sorte, eu sei, ter alguém com quem a vida a dois seja possível, com todas as suas vicissitudes, as suas cedências e os seus compromissos. É uma sorte ter ao nosso lado alguém com a inteligência, a sensibilidade e a capacidade de amar necessária para superar o que nos vai acontecendo na vida, que muitas vezes divide o bom e multiplica o mau.

É uma sorte mas também convenhamos que não é apenas sorte: é paciência, é calma, é trabalho, e é, fundamentalmente, amar muito, ainda que não incondicionalmente. É amar assumindo um compromisso necessariamente recíproco, caso contrário é doença e faz mais mal que bem.

Eu tenho essa sorte. Deus seja louvado!

20111111



É sempre má ideia quando penso que sou a medida de todas as coisas. Sem o saber, inicio uma querela que me coloca contra o mundo, contra todos os outros, e convenço-me que apenas eu marcho com o passo certo.
E quando dou por mim...

Desde que me lembro que gosto muito de desporto. Qualquer que seja a actividade. Já pratiquei futebol, voleibol atletismo, judo, karaté, natação, musculação, de tudo gostava e em tudo tinha um desempenho mediano, como sempre acontece com quem não se dedica a sério a uma especialidade. Mas era inconcebível para mim que não aproveitasse todos os momentos para "puxar pelo cabedal". Quando me casei causava-me alguma impressão que a minha maisquetudo não estivesse para aí voltada. Mais: que preferia passar esse tempo a mexer na terra, a cuidar de plantas e a enfeitar jarras. E eu insistia que o desporto é que lhe fazia bem. Com o tempo, foi-me fazendo perceber que aquilo que o desporto me dava, ela conseguia-o à sua maneira e que forçá-la a fazer o contrário era reduzi-la a mim.
E percebi que sou a medida de coisa nenhuma.

Vou aprendendo esta lição. Ainda cometo as minhas camelices neste campo. Quando me distraio, ainda me arvoro em descobridor da pólvora seca debaixo de água e falo como se fosse dono da verdade e possuidor da forma certa de fazer todas as coisas. Mas vou caindo em mim com maior frequência e vou aprendendo a concluir que a minha é apenas uma das formas de ver as coisas e nem sempre é a mais correcta.

Nem sequer para mim próprio.


20111104


Ainda anda cá por dentro o que me disseram: "a frase "estamos juntos" é mesmo a tua cara."

Acredito muito que o nós, quando temos a sorte de encontrar as pessoas certas, vale muito mais que a soma dos eus. São incontáveis as vezes em que me deixei levar pela confiança dos outros, pela sua aposta, pela sua certeza - que era apenas sua, não minha - que não as deixaria ficar mal. Acredito mesmo que o amor nos leva para lá do nosso horizonte, como cantam os Santos e Pecadores.

Mas em mim nada é assim tão linear. Apesar de viver em função do nós, são muitos os momentos em que anseio estar só, comigo e com os meus devaneios, desfrutar sem culpa do enorme prazer que é para mim caminhar sozinho enquanto a cabeça passeia sem destino. São muitas as alturas em que procuro afincadamente a tranquilidade, a paz de espírito, o poder ser eu e apenas eu como se apenas eu contasse para mim. São muitas as ocasiões em que me apetece armar-me em Forrest Gump e sair não correndo como ele porque já não dá para isso, mas caminhando sem me preocupar com o que vem a seguir, e andar, andar, andar...

E no entanto...

Hoje a minha mais-que-tudo tem Dia de Reflexão e dorme fora de casa. E eu, totó, apesar de ter os filhos todos em casa, sinto a falta da sua voz, do seu cirandar, da sua manifesta incapacidade de descansar enquanto não está tudo devidamente organizado e que, quase sempre, me irrita solenemente.

Afinal, parece que todo aquele desejo de estar só, comigo e com os meus devaneios, se esfuma assim que tenho a oportunidade de o fazer e que apenas é bom enquanto desejo, possibilidade, nunca enquanto realidade.
Afinal, parece que aquele desejo de estar só é muito bom conquanto tenha alguém para quem voltar, para me acolher, para me levar para além do meu horizonte.
Afinal, parece que o "estamos juntos" é mesmo a minha cara.

20111102


Sempre que eu digo a alguém que não sinto uma necessidade particular de estar fisicamente junto das pessoas de quem gosto ninguém me entende. Se calhar nem eu próprio, mas enfim. O que é um facto é que não é muito importante para mim falar todos os dias com as pessoas, acompanhar os seus passos minuciosamente, estar permanentemente com elas para alimentar esse amor.

Com os meus pais e os meus irmãos, por exemplo. Vivemos a poucos quilómetros uns dos outros e no entanto quase que nos encontramos apenas nas festas de aniversário uns dos outros - ou dos nossos filhos. Isso não quer dizer que não gostemos da companhia uns dos outros, ou que não acompanhemos - mais ou menos - como uns e outros estão. Nem que sintamos que em caso de necessidade basta um toque para nos juntarmos e sofrermos juntos ou rirmos juntos. Sabemos apenas que as nossas vidas seguiram caminhos na essência semelhantes mas paralelos e que por isso poucas vezes se encontram.

Gosto muito de conversar com pessoas inteligentes, que me interrogam, que me confrontam com as minhas próprias ideias e convicções e me obrigam a desmontar os lugares comuns nos quais me refugio demasiadas vezes. Aprendo sempre, quanto mais não seja a desmistificar-me e a não me levar demasiado a sério. Ainda agora, numa dessa conversas, perguntava-me se relativamente aos meus filhos também sentia esse desprendimento da distância. Respondi que não, que os filhos são um caso à parte, que todos sabemos que ter filhos é viver com o coração fora do corpo. Contudo, agora que a conversa terminou mas, como qualquer conversa que se preze, continua a vaguear cá por dentro, dou por mim a recordar que já disse aos meus filhos que não faço a mínima tenção que eles vivam lá em casa depois de adultos ou que eu viva em casa deles depois de velho.

Amo-os demasiado para impor a minha presença quando ela já não for necessária.

Bambora

  Não é estranho que nos digam que «ser homem é muitas vezes uma experiência de frustração». Mas não é essa toda a verdade. Apesar de todos ...