20180228
Como tenho a sorte de, por volta desta altura, estar sempre em Taizé, apenas sinto a Quaresma quando prepara a Via Sacra para a Uma Noite ComTigo. Há, naquele último percurso de Jesus, muitos dos nossos caminhos, muitas das nossas falhas, muitas das nossas dores.
Quando, com cerca de quinze anos despertei para estas coisas da fé, tive uma primeira abordagem à Palavra através da Bíblia em imagens, uma espécie de banda desenhada, que eu devorei de ponta a ponta. Lembro-me de me ter impressionado a história de Job, que desde logo assumi como minha, ou como uma das minhas mais fortes possibilidades de futuro. Desde então, quando as coisas apertam, lembro-me dele, da sua resiliência, da sua firmeza na fé contra tudo e contra todos, e esforço-me - em vão, mas esforço-me - para seguir o seu exemplo.
Confesso que não nasci para sofrer. Prefiro, de longe, viver o lado B da vida, voltar-me para o sol, para a luz, escolhendo quase sempre tentar ignorar a vida nas minhas costas. À custa disso sublimei quase tudo quase sempre, esperando que desaparecesse. Não desaparecia, apenas impregnava a vida, acinzentando o colorido, tornando-o mais baço, mais triste, menos vivo.
Na via sacra sinto sempre que sou crucificado com Jesus, que faço o seu percurso, que as suas dores são as minhas dores, que o seu sofrimento é o meu sofrimento, que o seu abandono é o que eu próprio sinto na escuridão da dor infligida. Tenho que estar muito consciente para perceber que estou do lado de fora da cruz: que sou eu quem condena, que sou eu quem insulta, que sou eu quem vocifera e que, na melhor da hipóteses, sou eu quem, no último momento, Lhe peço para se lembrar de mim.
20180227
Durante imenso tempo, achei que era tremendamente inútil aquele silêncio provocado nas eucaristias para nos recordarmos dos que nos tinham morrido. Não percebia para quê. Ontem, na eucaristia, dei comigo a não ter tempo para me recordar de todos aqueles que gostaria de recordar e que me morreram no último par de anos. Familiares, amigos, companheiros de noites despertas e testemunhas oculares de amanheceres inolvidáveis. Progressivamente, vão-me ocupando não apenas as memórias dos vivos mas aquelas que se associam à nostalgia do irrepetível.
Desde sempre que temo o para sempre. Recordo-me que antes de casar era isso o que mais me assustava. Para sempre é muito tempo, implica muitas variáveis, pressupõe a aceitação definitiva de demasiadas incertezas, alicerçadas numa confiança que, na maioria das vezes, tem tanto de fanfarronice como de inconsciente. Por isso há bem pouco tempo, numa daquelas alturas em que me pedem para discursar e lhes sai o tiro pela culatra, disse a dois recém casais que não acredito em casamentos para sempre mas em casamentos de todos os dias.
Para sempre é muito tempo. Demasiado tempo! Um tempo que, na verdade, pela fé, nem acredito que exista por estas bandas. Um tempo que é recortado de cada vez que, nas eucaristias ou em tantos outros momentos da vida, trago à memória as conversas, as noites mal dormidas, os amanheceres e os caminhos percorridos com aqueles que estão já junto do Pai. Um tempo que é muito mais um por agora que um para sempre. Porque acredito que daqui a pouco (a vida passa num pulo) o para sempre será, esse sim, o nosso tempo.
20180226
Eu gosto da Quaresma. Gosto do deserto, do silêncio do olhar para dentro, do voltar a medir-me e a afinar-me pela Palavra, pelo que disse e fez Aquele que eu tento seguir. Gosto da possibilidade de recomeçar, do seu interesse genuíno em saber para onde quero ir, onde quero chegar, sem que para isso tenha que desfiar um rol de justificações que muitas vezes apenas soam bem e evitam perguntas incómodas. Gosto de me sentir mais um, incluído, amado, desmarcado, sem qualquer outro peso que não aquele por vezes tremendo que a própria consciência me impõe. Gosto da leveza, da profundidade, da escuta, da perscruta, do respirar fundo enquanto a vida me aquenta, e me ampara, e me desarma, e me entrega. Gosto de me reconhecer assim, pequeno, impuro, incapaz, e de me sentir reconhecido e amado assim, inteiro, apesar de pequeno, impuro, incapaz, sem qualquer fingimento, sem qualquer escondimento, sem qualquer medo, de corpo inteiro mas numa incompletude que me ultrapassa, sempre, e me deixa esfomeado, sempre, e me impele à busca, sempre. Gosto do provisório, do caminho, da procura, da novidade, ainda que sirva de desculpa para gostar do regresso, para apreciar o regresso, para me recolher no regresso.
20180222
Nunca tive um Taizé assim. Sem desespero. Sem baba e ranho. Sem vontade de me reconstruir, de me refazer, de me sentir perdoado. Sem aquela necessidade premente de me sentir acolhido, amado, recolhido nos braços do Pai que me ama. Foi calmo. Extraordinariamente calmo. Inusitadamente calmo. Como se já pertencesse. Como se já fosse amado. Como se já fosse completo. Talvez seja. Talvez a enorme convulsão que me habitou todos estes anos, que me levou ao desespero total e absoluto, que me roubou noites e dias e semanas e meses, tenha chegado, finalmente, ao fim. Taizé foi muito presente. essencialmente presente. Hoje. Aqui e Agora. E passado. Muito passado. Revisitado. Nas pessoas, nas conversas, nos passeios, nas partilhas íntimas, nas mútuas entregas e descobertas. Num recordar sem dor, sem lamento. Integrador. E futuro. Ânsia de futuro. Projeção de futuro. Construção de futuro.
O meu Deus em Taizé, este ano, foi, por tudo isto, um Deus diferente. Não um Deus que me acolhe no desespero, que me pega ao colo e me dá o amor de que tanto necessito, mas um Deus que se sentou ao meu lado, me ajudou a revisitar a minha vida e me permitiu relançá-la com outros olhos, com outra confiança, com outra determinação.
Há, na minha vida, um antes e um depois de Taizé. Claramente. Não do Taizé deste ano mas dos Taizé dos últimos doze anos. Claro que não foi Taizé que me permitiu a transformação. Taizé tornou possíveis as condições, os olhares, as partilhas, o tempo, a intensidade do amor sem vergonha, a autenticidade do amor sem vergonha, a transformação operada pelo amor sem vergonha. Taizé tornou possíveis as pessoas. Que, desde que foram comigo a Taizé, nunca mais foram para mim as mesmas!
20180208
Não percebo porque tanto tememos. Porque confiamos tão pouco. Não percebo porque teimamos em chamar a atenção para o acessório como se fosse o importante. Não percebo porque gostamos tanto de dar tiros nos pés. Eu não acredito numa Igreja de portas fechadas. Se temos que ter portas, que as escancaremos, que deixemos vir todos, os que querem e os que não querem, os que precisam e os que desdenham, os que vêm por bem e os que querem recolher algo para si, os que crêem e os que julgam que não crêem. Porque eu acredito que, se de entre todos "os que não" houver um homem justo, foi para ele que as portas foram abertas, e não para "os que sim". Tardamos em aprender o mais básico do básico de Jesus: todos têm lugar. Todos. Absolutamente todos. Dá confusão? Claro que sim. Temos montes de relatos no evangelho que manifestam a confusão e o aglomerado das pessoas que se juntavam para ver Jesus. Não temos condições para as acolher? Claro que temos! Bastam cinco pães e dois peixes. Será o regabofe? Espero que sim! O regabofe de quem sabe que encontra sempre um lugar na Igreja. Seremos mal frequentados? Graças a Deus! Não entendo a teimosia em se por condições, no privilégio dos eleitos, na obsessão do controlo. É a Igreja. De Cristo. Por amor de Deus!
20180207
Quem me conhece sabe que, no que toca a pessoas, eu não gosto de catalogações, de etiquetagens, que mais não fazem que limitar e fechar o que deve ser ilimitado aberto à vida. Provavelmente por habitar todos os dias em meios quase diametralmene opostos, apercebo-me com facilidade que, uma vez despidos os preconceitos, descascadas as camadas com que laboriosamente nos cobrimos e nos servem de proteção, não há muito de diferente nas pessoas, que na sua essência são mais parecidas umas com as outras que aquilo que gostariam de admitir. A mesma necessidade de amar e ser amado, de reconhecer e ser reconhecido, de pertencer e sentir-se digno de pertença, os mesmos medos, as mesmas fragilidades, as mesmas grandezas, diferindo, uns e outros, apenas em intensidades, como ramos que seguem caminhos diferentes mas permanecem dependentes da mesma árvore. E alimentados pela mesma raiz.
Daqui advém uma enorme dessacralização de cargos e títulos, e uma maior atenção a quem posso ter, realmente, diante de mim. Este desassombro, que me é natural - ao ponto de, em determinadas alturas, ter que me recordar para me por nos meus tamanquinhos - é propenso a dissabores, nos quais eu me enfio alegremente como pato na água.
O meu pai - com quem vou descobrindo que sou muito parecido - gosta de dizer às pessoas que as ama. Fá-lo várias vezes quando estamos em família - com o consequente gozo meio envergonhado dos netos e filhos - e fá-lo noutras ocasiões, sempre com extraordinária facilidade. Eu recordo-me de uma vez, há muitos anos, que o fiz em cima de um palco, ao microfone, a algumas dezenas de pessoas com quem tinha acabado de fazer - e orientar - um retiro. E recordo-me da verdade autêntica e intensa desse "amo-vos" porque me fizeram perceber que amar deveria ser algo único, especial e exclusivo.
Tenho uma dívida de gratidão com o Bento XVI por causa da sua Deus caritas est. Logo no princípio enumerou as várias formas de amar, e com isso me sossegou a alma. De certa forma caucionou que eros, philia e agape podiam e deviam coexistir numa só alma, num só corpo, numa só pessoa. Em mim. E de repente, aquele "amo-vos" dito num microfone não me parecia tão descabido assim.
Ontem foi. também, um dia desses. Em que o amor foi dito e feito sentir. Com alegria, com dor, com chegadas e partidas, com ganhos e perdas. Com recordações e acontecimentos, com palavras e gestos, com proximidades e distâncias. Etiquetar o que sinto, o que me fazem e faço sentir, parece-me muito estúpido. Limito-me a deixar que o amor flua. Me invada e me transborde. Qualquer que seja o nome que lhe queiram dar.
Sempre, sempre, com uma imensa gratidão!
E maior assombro!
20180202
Eu gosto de mulheres. Muito. Fortes, discretas sensíveis, inteligentes, multifacetadas, extraordinárias. Admiro-as. Bastante. A sua capacidade de adaptação, a sua resiliência, a sua natural dádiva de si, como leoas a tratar dos seus. São destemidas, extraordinariamente argutas, desarmantes. Nada como nós, homens, bacocos ostentadores de capacidades que não temos, exibidores de plumas e cores e músculos apenas para podermos desfrutar da atenção daquelas que verdadeiramente admiramos. Digo-lhes muitas vezes em tom de (mais ou menos) brincadeira, quando se queixam de nós, que elas é que escolhem mal porque eu jamais me apaixonaria por um homem.
Vi o filme The Post. Que não é sobre um jornal nem sobre a liberdade de imprensa nem sobre o controlo político. É sobre uma mulher. Uma dondoca que a determinada altura tem que assumir uma vida que não escolheu e nunca pensou vir a ser a sua. Uma mulher que vivia num meio masculino numa época em que elas eram pouco mais que bibelots. É fdabulosa a cena em ela desce a escada do tribunal coma comunicação social do outro lado, e passa por entre as mulheres que têm os olhos postos em si. Muito género, isto: os holofotes nos homens por algo que as mulheres coseguiram.
Há uma imensidão que nos separa. Há uma imensa complementaridade que nos une. Tenho por isso dificuldade em entender as mulheres que querem ser e fazer o que os homens são e fazem. Na minha opinião, estão apenas a baixar a sua própria fasquia.
Subscrever:
Mensagens (Atom)
Bambora
Não é estranho que nos digam que «ser homem é muitas vezes uma experiência de frustração». Mas não é essa toda a verdade. Apesar de todos ...
-
Somos bons a colocar etiquetas, a catalogar pessoas, a encaixá-las em classes e subclasses organizando-as segundo aspetos que não têm em c...
-
"Guarda: «Temos menos sacerdotes e, por isso, precisamos de valorizar, cada vez mais, os diferentes ministérios e serviços laicais nas ...
-
Sou contra o aborto. Ponto. Sou-o desde sempre. A base da minha posição é simples: acredito que a vida começa com a conceção. Logo, não é lí...