20170928


Têm sido dias extremamente cheios.

Novas ocupações, que exigem novas responsabilidades e, sobretudo, um outro olhar, mais atento, mais decidido, com uma outra ligação ao cérebro por forma a conseguir decidir e agir da melhor maneira possível no melhor tempo possível. Uns dias passados em cima do arame, focado na permanente tentativa de manter todas as bolas no ar, tentando falhar o menos possível e, a falhar, que não seja no fundamental.

Têm sido dias de manhãs.

Com a alma a despertar novamente junto ao mar, com calma, que para correr basta o dia. Rezando a vida como eu mais gosto de a rezar, peripateticamente, tendo o frio da manhã, o mar, as gaivotas e o vento como companhia. Ganho vida e ganho fôlego para o que vem, balanceio a noite que foi e o dia que há de ser, pedindo a consciência de me sentir suficientemente amado e acompanhado para evitar asneiras recentes.

Têm sido dias de noites.

Reentrego-me aos meus, procuro neles refúgio e fôlego e serenidade. Reencontro-me com o que me é mais importante, com quem me é mais importante, redescobrindo neles o meu lugar, confirmando o seu lugar em mim, permitindo-me o alimento que brota das suas raízes que, lenta e progressivamente, voltam a ser confundidas com as minhas raízes, entrelançando-se ao ponto de formarem uma só raiz, uma só árvore.

Têm sido os meus dias

Serenamente, vou-me reconquistando. Não tenho já medo de me olhar ao espelho quando acordo, não tenho já que me esconder de mim, não tenho já que me mascarar. Visto-me de mim. De corpo e alma. Inteiros. E, assim inteiro, apresento-me à vida.

20170927


Por vezes, não temos forma de escapar ao choque. Provavelmente, nem seria bom se o fizéssemos, porque a vida é também choque.

Entrou ontem pela sala dos professores dentro "só para desejar um bom dia e um bom ano". Por acaso eu estava lá. Por acaso estava ainda disponível para lhe sorrir e acolhê-lo. Por acaso conversáramos ambos havia pouco tempo porque de vez em quando nos cruzávamos na rua. "então a reforma?" e  "cumprimentos à Dra. Isabel" faziam sempre parte dos nossos breves momentos de conversa. Por acaso, ontem, ainda não estava ainda suficientemente mergulhado no trabalho para emitir um breve grunhido e cumprimentei-o efusivamente. Uma sucessão de meros acasos que, confesso, me serviram de parco consolo quando fui abalroado pela notícia da sua morte. Ontem mesmo. Pouco tempo depois de nos ter desejado bom ano. Efusivamente.

Tenho sempre vontade de escapar ao choque da morte. Seja de uma das imensas pessoas já com alguma vida vivida com quem me cruzo, seja de um dos imensos miúdos ainda com tudo para viver com quem me cruzo. Todos têm um olhar. O seu olhar. Único e irrepetível. Que se cruza com o meu.
Que se cruzava com o meu.
E já não voltará a cruzar.

Não quero escapar ao choque da morte. Ensina-me sempre a efemeridade da vida.

20170922



Foi um grande início de manhã. A foz estava fria, nebulosa, quase deserta, como eu gosto, com o nevoeiro a esconder da vista os navios ao largo e o sol a espreitar a medo. A areia estava pejada de gaivotas, estacionadas, à espera dos primeiros raios que lhes secassem as penas e lhes retornasse a vontade de sair daquela doce modorra e lhes devolvesse a vontade de voar. Eu já tinha começado. A voar. Cá por dentro. Numa doce sintonia com o que se passava fora de mim, diante dos meus olhos. Há já imenso tempo que não amanhecia assim. Tão em sintonia. Talvez seja da semana maluca que tenho tido. Talvez seja da dolorosa cerimónia de ontem, que me abanou até ao tutano. Talvez seja da súbita consciência das enormes graças que devo. A Deus. Aos que amo. Aos que me acompanham. Aos que não gostam de mim.

Vou tendo alguns momentos destes.
Em que podia morrer. Feliz. Cumprido.
Em que em entrego à Vida.
Feliz.
Cumprido.

20170920


A grande novidade das férias deste ano foi ter passado, pela primeira vez, uns tempos em casa da minha filha. Até aqui, sempre que estou com os meus filhos numa casa, estou em minha casa, com todo o peso que "a minha casa" acarreta, e que não é, de todo, semelhante ao estar na casa da minha filha. Adiante.

Em casa dela conheci, finalmente, a Mia. Uma gata lindíssima, sereníssima, de quem tenho saudades. Sim, tenho saudades daquela gata que nos fez companhia durante dez ou doze dias.

Vem isto a propósito de um post de um amigo meu a despedir-se do seu cão, que foi seu companheiro fiel por mais de dez anos. Instintivamente, eu torço o nariz a este tipo de relações. Por muito que eu goste de cães e gatos - à partida, adoro cães, tolero gatos - são bichos, e por isso faz-me sempre muita impressão esta tendência de antropomorfizar os animais. Então os que dizem que preferem os animais às pessoas, põem-me verdadeiramente fora de mim. Uma coisa é estimar os nossos animais de estimação - maltratar qualquer animal é simplesmente inadmissível - outra é tratá-los como se fossem pessoas, com as necessidades físicas e psicológicas das pessoas, como se fossem filhos. cheira-me sempre a projeção de carências afetivas num pobre animal que não tem culpa nenhuma.

Entendo bem a saudade que um animal pode provocar. Nós, que sempre tivemos animais, falamos com imenso carinho e saudade dos nossos cães - já morreram todos - recordando as suas peripécias, as suas personalidades e até a dor que nos provocaram quando morreram - uns nos nossos braços, outro no veterinário.

A verdade é que não tenho que etiquetar o amor. A verdade é que entendo que se possa amar um cão ou um gato que fez parte da nossa vida e que deixa uma tremenda saudade. A verdade é que amar é amar. Assim. Sem etiquetas. Sem comos ou porquês. Sem racionalidades, se quisermos. Sem qualquer outro instinto que não seja fazer feliz.

20170917


Vi um bom filme, ontem, com um casal homossexual no papel principal mas sem ser sobre gays. Love is Strange é um filme sobre amor, sobre envelhecer juntos, sobre o casamento, sobre família e amizade e tantas outras coisas que poderão acontecer a cada um de nós e nas quais a homossexualidade é um factor como outro qualquer.

Quando eu era muito novo fui a várias entrevistas de emprego. Invariavelmente, iniciava a conversa por declarar uma evidência ao meu interlocutor: eu gaguejo. Parecia-me uma boa maneira de ou começar a conversa ou acabar por ali. Fazia-o sempre com as raparigas que ia conhecendo, no que constituía um bom barómetro para perceber em quem valia a pena investir ou não, e aplicava a mesma receita com os meus entrevistadores. Numa dessas entrevistas, obtive uma resposta que nunca mais esqueci: "O dia em que deixares de sentir necessidade de iniciares as conversas dessa forma será o dia em que assumes a tua gaguez como normalidade".

Recordei isso ontem. Pareceu-me que aquele filme ia no sentido certo. Apenas poderemos ver a homossexualidade como algo normal à medida que a formos dispensando de tratamentos especiais. Compreendo que num dado momento teve que ser dessa forma - a primeira vez que me comovi com um filme gay foi com o Filadélfia - mas creio ser chegado o tempo de os próprios homossexuais se verem naturalmente. Talvez dessa forma deixemos todos de nos apontar o dedo, seja por despeito seja por respeito excessivo. Qualquer uma dessas formas apenas serve para os separarmos da normalidade.

20170905



Invariavelmente, fico muito triste e desiludido comigo mesmo quando me apercebo que dou o menos de mim. Então quando isso acontece justamente com aqueles que me são mais queridos e ainda por cima por desleixo, apetece-me insultar-me. E insulto-me.

O menos de mim acontece sempre que eu baixo a guarda. Quando me deixo envolver por uma certa superficialidade, quando crio ou alinho em brincadeiras parvas que me focalizam mais na piada que possa eventualmente ter que em quem tenho diante de mim. Contrariamente ao que por vezes eu e outros pensam, sou um péssimo habitante da superficialidade. Claro que muitas vezes sorrio e aceno, a maior parte das vezes para evitar perguntas incómodas, outras para evitar pessoas incómodas, mas rapidamente me deixo desmontar por quem me conhece e, sobretudo, confio. Mas prefiro, de longe, uma boa conversa profunda e reveladora, de dádiva e descoberta mútuas, de dois sentidos. Crescemos mais, semeamos mais e, sobretudo, cuidamos e curamos melhor. Mutuamente!

20170904



Recomeçar. Uma das minhas palavras preferidas e um dos temas a que volto frequentemente. Tão frequentemente quanto a minha necessidade de recomeçar. Hoje vinha no caro a escutar a oração da manhã da Renascença, depois as notícias da TSF, de seguida a caminhada junto às praias da Foz. Já antes acordara à hora do trabalho, seguiu-se o duche ao som das primeiras notícias, o pequeno almoço, a viagem... tudo devidamente condimentado pelo cheiro da manhã, os bons dias aos filhos que, à vez, vão chegando para  pequeno almoço, o até logo aos que estão quando saímos, a viagem a dois, feita de partilhas e silêncios partilhados... as saudades que eu tenho da rotina!

Recomeçar. A sensação que tenho é que este ano recomecei antes do tempo, com um retiro que, vou descobrindo (e acreditando), me permitiu fechar um ciclo e iniciar outro. As viagens interiores permitiram uma outra maneira de viver as férias que, desta feita, foram mesmo férias. Recomeço assim com um outro estado de espírito, cheio de vontade e força e algumas ilusões e expectativas para um ano que se adivinha árduo. Como todos os anteriores, aliás.

Eu preciso de recomeçar. Sempre. Preciso de saber que posso recomeçar. Não como se não tivessem existido antes mas podendo ainda construir por cima desses antes, que constituem fundamentos sempre renovados para o que há de vir, para o que há de ser, para o que hei de conseguir construir.

Bora lá recomeçar.

Bambora

  Não é estranho que nos digam que «ser homem é muitas vezes uma experiência de frustração». Mas não é essa toda a verdade. Apesar de todos ...