20161231


Nunca fui de grandes atos de coragem. Sonhava-os muitas vezes, continuo a sonhá-los algumas, embalado pelas memórias do Cavaleiro da Triste Figura, dos filmes do Zorro e do Gavião dos Mares do Errol Flyn, devidamente condimentadas pelo Major Alveja. Choro sempre nos filmes dos heróis que dão a sua vida por um bem maior ansiando pela oportunidade que a vida me dará de um dia fazer algo do género e imagino o meu funeral ao som da música de Taizé ao pormenor de pensar o que será escrito na minha lápide - dando de barato que se for cremado, como desejo, não terei direito a lápide. A verdade é que nunca fui dado a grandes atos de coragem. A pequenos talvez, ínfimos, provavelmente, aqueles que nunca são contados nas histórias nem aparecem nos filmes porque são atos banais de pessoas banais com vidas banais. Não é isso que me apoquenta. Eu gosto do pequeno. Aprecio o pequeno. Valorizo o pequeno, o quotidiano, o (apenas) aparentemente banal. 
Mas há alturas em que o pequeno não basta. Porque deixa arrastar, porque não decide, porque não escolhe, porque a única coisa que permite é ficar em mãos alheias, o que não tem nenhum mal a não ser o da demissão de ser. Que é sempre um mal maior.

A passagem do ano é um pouco como o aniversário. Ou como Julho para quem está ligado à educação. É altura de balanço, de pensar no que foi bom e mau, e prometermo-nos que desta vez será diferente. E é sempre! Porque é uma mesma vida mas mais aprendida, mais vivida, eventualmente mais sofrida, mais amada, quando temos sorte.

2016 foi ano de perdas. De lutas. De dúvidas. De abalos. Tudo em grande. À exceção de grandes conversas, de maiores caminhadas e de encontros de alma, não deixará grandes saudades para este lado. Mas já passou. Vem aí 2017. De mim, nesse ano que se aproxima, espero coragem. Segundo a definição acima. Já vai sendo tempo!

20161228


Apregoo muitas vezes que há muitas formas de amar. E de amor. Amar é tão tudo que enfiá-lo em conceitos pré definidos é limitá-lo a nós próprios e à nossa forma de amar.  Isto quando todos sabemos como o amor é muito mais que nós. No entanto, há formas de amar que dificilmente cabem no amor. Quem ama sabe que volta e meia a coisa dói. Imenso. E dói mais intensamente quanto mais se ama. Diria que faz parte, que dificilmente poderia ser de outra forma, que ou mexe com tudo em nós ou não vale a pena, e se mexe com tudo em nós não mexe apenas quando é bom. Mas apenas entendo a dor no amor quando são dores de crescimento, quando é para acrescentar, para ajustar o ser mais, que exige sempre algum tipo de poda do coração, nem sempre fácil, muitas vezes dolorosa. Será, provavelmente, a maior das ilusões deste nosso tempo, a ideia que é possível amar asseticamente, onde tudo é bom, onde nada custa. Eu incorro muitas vezes nessa ilusão  - que ainda mais vezes me acusam de eu próprio criar nos outros - e, invariavelmente, acabo por pagar o seu preço. E dói como o caraças.

20161222


Tão inevitável como eu fazer um balanço de final de ano é eu escrever aqui que é inevitável eu fazer um balanço de final de ano.

Estava agora a ler uma notícia e deparei-me com uma palavra na qual não penso muitas vezes mas que me diz muito - e porventura poderá até dar-me pistas que contribuam neste constante processo de definição pessoal: itinerante.

Este ano foi um ano de itinerâncias. Tantas que às tantas já me perdia de mim. Ontem disseram-me que o que me vale é que as pessoas que me rodeiam - e me amam - são adultas por mim e, à força de amar, me vão quase forçando a escolher os caminhos que eu deveria escolher se tivesse o hábito - que não tenho - de manter a cabeça em cima dos ombros e o coração no lugar certo. A verdade é ao longo deste ano me descobri a querer sol na eira e chuva no nabal, reconciliar o inconciliável e ficar de bem com Deus e o Diabo. Nessa mesma conversa de ontem lá fui concluindo, a custo - acontece-me muito ir descobrindo conclusões à medida que a conversa flui - que raramente tomo decisões, que vou esticando as cordas até que todas elas rebentem e eu não tenha mais alternativa.

Gosto de pensar que sou bom a acolher o que a vida me vai dando e péssimo a decidir o que quero que ela me dê. Talvez seja melhor a erguer velas e a confiar no vento que a traçar rotas. Até porque dá muito mais trabalho, convenhamos. Talvez por isso esta itinerância constante que me vai mostrando novos mundos enquanto me rouba a serenidade.

Apesar de tudo, gosto muito mais da ideia maluca de tentar abraçar a chuva que da seca de evitar a molha. Mesmo que seja justamente isso que me faça perder.

20161219


Uma das coisas mais ou menos boas de se ter filhos adultos é escutar o que eles têm a dizer de nós próprios. Uma das minhas filhas é muito crítica em relação a tudo. A começar por ela própria, esticando-se, não raras vezes, para além dos seus próprios limites. Já lhe disse que penso que irá longe em termos profissionais, embora tenha algumas dúvidas se alguma vez terá paz. No entanto, paz para ela tem um significado um pouco diferente do meu. Ela fica em paz quando consegue fazer o possível e o impossível para alterar uma qualquer situação com a qual não concorda, seja aqui ou na conchichina.
A minha paz é algo de muito mais pessoal e interior. E difícil de alcançar. E proporcionar à minha volta. E era justamente a propósito disso que conversávamos ambos no outro dia. Eu tenho andado mais silencioso, mais metido comigo mesmo, no meu mundo, como eles dizem. Os meus filhos têm muitas memórias de um pai sempre às cambalhotas com eles, sempre a rebolar pelo chão, muito físico, muito presente, muito tudo. E por isso agora estranham bastante os meus silêncios e os meus refúgios interiores. Que são cada vez maiores, mais presentes e mais evidentes. E muito estranhos, aos seus olhos.
Neste fim de semana, numa outra conversa familiar (parece que eu ando na ordem do dia lá de casa), eu tentava-me justificar alegando que sempre fora assim. E recordei os primeiros dias de Moçambique quando o pessoal de casa estranhou bastante que eu não estivesse sempre aos saltos e me perguntava insistentemente porque estava chateado. E eu lá respondia que não estava chateado, mas não era apenas aquela faceta pública que eles reconheciam mas que tinha e precisava de momentos longos de silêncio.
Nesta conversa recordaram-me que eu tenho responsabilidades para com os outros. Que fui eu quem vendeu essa imagem de poço de alegria e que agora não podia defraudar quem a espera de mim. Fiquei sem saber o que dizer. À autenticidade com que sempre fiz as coisas - quando salto apetece-me saltar, quando me recolho apetece-me o silêncio - não me apetece nada suceder com a artificialidade de quem representa um papel. O pormaior da coisa está no viver para os outros. Não tenho nada a certeza que o recolhimento me faça mais feliz que o voltar-me para os outros. Mas também o oposto me levanta sérias questões.  
Provavelmente, o melhor é nem pensar muito nisso e tentar continuar a ser autêntico. Se não entenderem... paciência!

20161215


rasgo-me. e arrependo-me. volto a rasgar-me. e a arrepender-me. não porque  tenha um melhor retrato. apenas porque não tenho outro. e este, com todos os remendos, continua a ser o único que tenho. não me custam os remendos passados. prefiro-os à fantasia de uma perfeição que nunca me atraiu por aí além. e são a minha história. ou as minhas histórias. e a dos meus fracassos. e a dos sucessos que sempre lhes seguiram. o que me custam são os remendos novos, ou os novos rasgares. que implicam remendos novos. e às tantas não há retrato que resista. até porque há partes de mim que eu já nem sei se me pertenciam ou se foram emprestadadas por outros. que me remendaram, quando me remendaram, com pedaços seus. eles, mais pobres de pedaços. eu, mais remendado. mais rico de pedaços mas mais remendado. cada vez mias remendado.

20161214



Devo estar mesmo fragilizado. Nos últimos dias escutei de várias bocas que somos um todo, e por isso o corpo reflete o que nos vai na cabeça. Sei que têm sido muitos os acontecimentos nestes últimos tempos, que têm sido tempos de despedidas. E eu sou péssimo em despedidas. Mas daí a existir alguma repercussão no corpo espero que vá uma longa distância. Senão então não antevejo grande descanso corporal para o que aí vem.

É destes tempos, com certeza, mas ainda ontem via esta foto e invejei o velhote.Ter tamanha liberdade e paz - que acredito que mesmo para o velhote existirá no momento da foto mas não será permanente - será um privilégio que eu quero ir conquistando à medida que o tempo vai passando. Como conciliar essa paz e essa liberdade com as minhas conquistas até aqui é que por vezes me tira o sono. Por um lado, amo o que faço e tenho e construí até hoje. Um longo percurso feito, como todos os percursos, de algum sacrifício mais ou menos apagado pelo sabor da felicidade, e que também por isso não me apetece muito deitar borda fora. Por outros lado, parece-me muitas vezes estúpido ficarmos amarrados ao que somos apenas porque o conquistamos.

Pelo meio, vai-se respirando e amando e sonhando e, fundamentalmente, deixando as portas entreabertas. Nem que seja para não deixar de poder sonhar com uns montes, uma guitarra e uns pássaros em cima da cabeça.

20161202


Eu orgulho-me de, regra geral, respeitar o espaço de cada um. Nem sempre acontece, ou melhor, nem sempre consigo que aconteça, particularmente com aqueles que me são mais importantes. Talvez pela proximidade (física, afetiva, emocional), em determinadas alturas não consigo discernir com clareza o que é demais e chego até a ultrapassar limites que em situações normais eu próprio me imporia com todas as escassas certezas que me habitam. Ainda recentemente me disseram que eu sou naturalmente transgressor, o que - como acontece com todas as verdades verdadinhas que apenas aqueles que me amam me dizem - a princípio estranhei mas depois entranhei tentando averiguar da veracidade da afirmação (acusação?).

Era verdade.

Um dos meus maiores anseios - creio que de toda a humanidade - é poder voltar atrás. Recuar. Refazer, Conseguir que o que aconteceu nunca tivesse acontecido. Que o que se perdeu nunca tivesse sido perdido. Que o que se ganhou permanecesse ganho. Não tanto porque não tivesse sido bom, ou memorável, não porque não tenhamos aprendido nada com isso, não porque eventualmente sintamos agora alguma culpa, ou rebates de consciência... mas apenas porque deixou marcas. E provocou afastamentos.

E, a mim, pelo menos a mim, os afastamentos doem como o caraças!

Volta e meia penso no que faria perante a possibilidade (agora estranhamente mais palpável) de me ser dito que me restaria pouco tempo de vida. Imagino-me sempre a convocar um jantar com todas aquelas pessoas com quem, em determinada altura da vida, transgredi, e se afastaram, e a reatar o contacto com elas. Valha a verdade que não seriam tantas como isso - e provavelmente algumas delas nem se recordariam dos motivos do afastamento - mas de certeza que eu partiria mais descansado.

Regresso à base. "Ao que queres ser", que é bem diferente do que vou sendo. Tentando respeitar os que amo e, sobretudo, tentando recuperar o seu respeito.

Que não seja tarde!

Bambora

  Não é estranho que nos digam que «ser homem é muitas vezes uma experiência de frustração». Mas não é essa toda a verdade. Apesar de todos ...