20161130


Por muito que espere e goste de esperar, por muito que eu pense que a minha vida é um quase permanente advento, por muito que me ache preparado para as curvas da vida, não consigo deixar de ser surpreendido. Por vezes acho que esta esperança constante, este fazer e refazer permanente, esta ausência de planos pré-definidos não passam de uma defesa mal amanhada para tentar lidar com a imponderabilidade da vida. Se não consigo controlar coisa nenhuma, porque não render-me ao nada que sou? Abro os braços, metaforicamente ou não, e preparo-me para o embate. Talvez por isso as botas de caminhar e a mochila sejam uma presença constante no meu imaginário consciente. Sinto-me sempre preparado para partir, lutando permanentemente para me libertar das amarras de cada vez que me tentam prender. Imaginem agora esta forma de sentir a vida num casamento de mais de vinte e cinco anos. Apenas posso imaginar como será para a Isabel - que nisto como em muitas coisas é o oposto de mim - lidar comigo e com a minha permanente vontade de me libertar. Evidentemente, já não peço desculpa. Posso lamentar esta forma de ser, posso até carregar a culpa, mais ou menos declaradamente, mas já não peço desculpa. Não adianta. A cada promessa, feita de vontade e alma aberta, de não voltar a acontecer, sucede sempre a vontade de partir.
Desta vez fui surpreendido da forma mais definitiva possível. e voltaram as questões, as imponderabilidades, as inevitabilidades, as angustiantes perguntas que me acompanham desde sempre. E se fosse eu? Hoje? Aqui? Agora? Que legado deixaria? Que legado apresentaria ao Pai?  

20161124


A verdade tem como hábito ser desagradável. Qualquer que ela seja. Por vezes chega cedo de mais, outras não aparece quando mais precisamos e, pelo menos a mim, surge frequentemente na forma de bofetada na cara.
Nunca fomos muito íntimos, eu e a verdade. Nunca entendo aquela coisa que a minha sogra diz de peito cheio "a verdade acima de tudo, custe o que custar, doa a quem doer", particularmente quando a vejo atirar a verdade como quem dispara uma arma. Há verdades que escondo, outras que adio, outras que suavizo. O mal é que todas acabam por dar à tona da vida respeitando a fatídica Lei de Murphy, na pior altura possível.
No mundo de fantasia que me acolhe quando estou atrapalhado a verdade fica de fora, como quem descalça os sapatos com que anda na rua para não conspurcar o ambiente. Aí, nesse mundo só meu  - muitas vezes mais real que o mundo real - não existem problemas, confusões, trapalhadas, dores ou sofrimentos. Na verdade, não existe nada. absolutamente nada. Nem eu próprio. Por isso acabo por não conseguir ficar lá muito tempo e de lá saio ainda mais atrapalhado porque a vida tem essa mania estranha de não esperar por mim.

20161123


Nesta manhã atarefada, vinha a subir as escadas em passo rápido mas ele quase me obrigou a parar. Estava lá em baixo, na arena, rodeado de miúdos muito miúdos, e sorria e metia-se com eles, e brincava e utilizava a sua sonora voz para os impressionar e intimidar... na brincadeira.
Por vezes gostava de ter o tempo e a coragem de fazer mais coisa nenhuma a não ser isto: observar aqueles que, a cada momento, me rodeiam. Apanhá-los assim, como ele estava, completamente desprevenidos, e poder apreciar o seu lado bom, aquele que o cargo ocupado força a permanecer quase escondido talvez pelo medo de se contagiar na alegria e se perder a autoridade das coisas sérias. Olhar as pessoas assim, seja num breve espaço de tempo seja num tempo mais demorado, conduz-me sempre a novas perspectivas, a novidades, a traços até então desconhecidos ou esquecidos de tão pouco vistos. Não me é nada raro alterar a minha percepção sobre alguém a partir de um momento destes. Um brilho no olhar, um gesto de atenção, uma meiguice escapada, que pode acontecer numa qualquer altura inesperada, com alguém inesperado, mas que me fazem redescobrir essa centelha de bondade que todos carregamos mas que por vezes esqueço que existe.
Talvez um dia decida andar de pernas para o ar.
Só para ver a realidade dos que me rodeiam.

20161121


Lá em casa, a discussão sobre a fé, a religião, o papa, cristianismo e afins está sempre tão aberta como qualquer outra sobre a democracia, homossexualidade, casamento, direitos e afins. A partir da altura em que os meus filhos usam a cabecinha para pensar - e fazem-no desde muito cedo - não me recordo de alguma vez ter dito aos meus filhos que "isso" não se discute. Todos encontramos espaço para discutir o que quer que seja, desde os temas mais pacíficos - onde estamos quase todos em sintonia - aos aparentemente mais fraturantes - sem a presença da avó, claro, para não lhe dar um xelique - porque para nós sempre foi muito importante discutirmos abertamente para podermos saber o que cada um pensa e aprendermos uns com os outros.
Nas discussões sobre a Igreja é frequente aperceber-me como os meus filhos andam aparentemente perdidos. Apesar do seu sentimento de pertença - para alguns apenas por causa do caldo cultural onde nasceram - são fortemente contestatários das posições mais conservadoras e, para eles, inexplicáveis. Ainda ontem, nas habitais conversas do pequeno almoço de domingo - que são quase uma instituição lá em casa - me diziam que eram cristão sem duvida nenhuma mas católicos com reservas. recordei uma conversa que tive com o meu filho há uns meses, em que ele me dizia que às vezes ficava preocupado com a sua falta de sintonia para com a Igreja. Dizia-me ele que o que o preocupava era ser o melhor que conseguia ser enquanto pessoa e fazer o melhor que podia e sabia pelos outros, e que isso era para ele muito mais importante que aquilo que a Igreja dizia. Respondi-lhe para não se preocupar, que estava no caminho certo, e que eu, como pai, apenas ficaria preocupado se ele ligasse mais às coisas da Igreja que às coisas da vida.

20161118

Há palavras ou expressões ou ditos que me perseguem desde que tenho consciência de mim. Um destes dias estava numa eucaristia e o sacerdote falava daqueles que, mesmo sem terem disso grande consciência, se servem dos outros como combustíveis para si próprios. A minha memória de elefante teletransportou-me imediatamente várias décadas, levando-me de volta a uma outra conversa. igualmente com um sacerdote, que me acusava sub-repticiamente de utilizar as pessoas como quem come laranjas: aproveitando o sumo, deitando fora a casca. Na altura eu era demasiado novo e a imagem do sacerdote tinha ainda um peso específico que me impedia de o contestar. Se um padre me dizia aquilo - apesar de não me conhecer de lado nenhum e saber mais tarde que estava a satisfazer encomendas - só podia ser verdade. E deixou marcas.
Esta hipótese assalta-me muitas vezes. Até porque a verdade é que eu me alimento das pessoas que me rodeiam: da sua sabedoria, da sua capacidade, da sua disponibilidade, do seu imenso que me falta e me faz falta. É nelas e com elas que me encontro, com alguma dor umas vezes, com muita facilidade outras, com imensa alegria sempre. Não conheço melhor forma de tentar crescer a não ser bebendo a vida a partir dos que me rodeiam. Nem sempre tenho a certeza de "desaparecer" da forma mais conveniente. Tendo a temer ser demasiado, quase sempre ilusoriamente, e ocasionalmente sinto a tentação de me esconder da responsabilidade de cuidar. Quando mo dizem e mo fazem sentir corrijo a rota mas isso não é bem aceite por todos. A minha única hipótese é ir tentando aprender sempre, continuar atento aos meus sinais e aos sinais dos que me rodeiam, medindo-me constantemente, recordando sempre a história das laranjas. E rezando para que não encontre nela motivos de verdade na minha vida.

20161117


Pelo segundo dia consecutivo a caminhada não foi junto ao mar mas no parque, a escassos metros, mas verdadeiramente um outro mundo. Uma mistura de cores e cheiros verdadeiramente avassaladores, tendo apenas o barulhos dos passos e dos patos como companhia. É muito fácil começar o dia a louvar a Deus, ali, naquele lugar, que me recorda sempre o Tozé que, provavelmente sem sequer se aperceber disso, foi quem me despertou para esta presença de Deus no belo da natureza.
Dois mundos completamente diferentes fora de mim, dois mundos ainda mais diferentes cá por dentro. A paisagem exterior ontem fora a mesma, mas a interior estava radicalmente diferente! O desassossego deu lugar à tranquilidade, o tumulto, à serenidade. Objetivamente nada mudou de um dia para o outro, não foram tomadas decisões para além das de todos os dias, não aconteceu a descoberta da cura para o cancro (e como a vou pedindo!) e o que estava por resolver continua por resolver. Não se trata de universos exteriores mas dos outros, dos que permitem ou roubam a felicidade, própria ou alheia.
Frequentemente procuramos espaço bucólicos ou entusiasmantes na esperança que eles nos contagiem, compensando o que tanta falta nos faz. Frequentemente esquecemos que esta paisagem interior tudo determina. O calor do sol até pode ser da física mas a forma como nos aquece, não. As cores do outono podem ser depressivas ou belas, a noite, assustadora ou reconfortante, o caminho, duro ou desafiante. Não é o que nos envolve que nos impõe o estado de espírito. Pode ajudar, pode atrapalhar, pode até realçar. Mas habitamos todos um mundo apenas nosso. Quando mais não seja, no segredo da nossa intimidade.

20161116


Por esta altura já devia saber que a uma bacorada saída desta boca se segue um ensinamento tendo-me como destinatário.
Face a uma crise de estômago até então por mim desconhecida, confidenciei a algumas pessoas que não sei lidar com a minha fragilidade física. "com a psicológica já estou habituado, agora a física..." Esquecera-me que enquanto a fragilidade física tem uma repercussão quase exclusivamente pessoal, os meus devaneios deixam, não raras vezes, marcas em vidas alheias. E que na verdade, isso me é ams insuportável que uma dor de estômago, por muito má que ela possa ser.

20161114


Andamos todos à procura de paz. Daquela paz que nos permite dormir à noite, andar de cabeça erguida, olharmo-nos ao espelho, falarmos com quem quer que seja sem pensarmos no que aí vem. Era eu ainda miúdo e recordo-me que essa paz não passava de uma miragem. Vivia como que temeroso, envergonhado, a sentir-me constantemente devedor dos outros e do mundo. Depois acabei por me refazer mas aprendi cedo que de uma paz assim é muito mais fácil falar que conseguir. E que, mesmo para mim, que segundo alguns dos que me rodeiam tenho uma consciência por vezes muito pouco consciente, esta é uma paz que não conheço muitas vezes. Tenho essa mania de me perscrutar quase quotidianamente, quase obsessivamente, tentando perceber quem magoei desta vez, a quem é que disse o que não devia ou deixei de o fazer a quem o devia, revendo cada gesto e cada palavra que saíram de mim. A maior parte das vezes acabo por me render à evidência do que sou, num mal conseguido exercício de baixar a fasquia, e arranjo as melhores desculpas, as mais criteriosas justificações, com o intuito de me safar de mim próprio por entre os pingos da chuva. Mas, nestas como noutras coisas, a noite não tem piedade e, por entre digladiações de eus, lá se vai o sono retemperador.
No entanto, e apesar de tudo, não acho que valha a pena a paz a todo o custo. Por vezes temos mesmo é que viver, mesmo sabendo que provavelmente nos iremos meter numa carga de trabalhos. O direito ao erro anda muitas vezes de mãos dadas com o direito à vida vivida que apenas é pacífica nos livros de contos infantis. E temos mesmo que nos incomodar, desacomodar, e avançar, por vezes mesmo contra toda a nossa racionalidade, que nos grita para que permaneçamos quietos... e em paz.
Tenho muitas vezes saudades daquela paz interior, imensa, tranquila, serena e plena. Temo muitas vezes aquela paz podre, feita de concessões e perdas de verdade.

20161110


Ainda na semana passada, a propósito de anjos e encontros e vozes de Deus, perguntava como é que sabemos que as voz de quem nos fala vem de Deus ou se estamos a ser endrominados por uma qualquer pessoa com jeito para falinhas mansas. Não importa para aqui a origem da voz. Conheço pessoas da Igreja a quem não daria ouvidos de forma alguma e outras dos bairros que escuto atentamente. Não é uma questão de proveniência, portanto. Também não dou particular interesse à idade ou condição social, que pouco ou nada têm a ver com a sabedoria que procuro. Mas então, como saber? Tivesse eu uma personalidade forte e provavelmente esta questão nem sequer se colocaria. Não que as personalidades fortes não tenham duvidas mas porque encontram sempre forma de lhes responder. Nós, os que se questionam permanentemente, é que temos mais dificuldade. Até porque a cada nova resposta entrevemos rapidamente uma nova questão. Nesse encontro, enquanto ia colocando questões, ocorreu-me que a forma de o sabermos será compararmos a voz que escutamos com a voz de Jesus. Se coincidirem, de alguma forma, na intenção, no conteúdo, na bondade e abertura e espaço, se não for atropelo para o que cada um livremente é, então estaremos no bom caminho. Provavelmente, aquela será mesmo uma voz de Deus. Mas depois temos a verdadeira prova dos nove. Olhando para as pessoas que gravitam aquela voz. Como se sentem? Como se movem? O que as move? Como são os seus olhos? Como é o seu sorriso? Como se comportam quando estão longe?
Os outros são mesmo um bom termómetro para percebermos as pessoas que somos.
E isto, esta semana, assustou-me.
Bastante!

20161109


Por vezes - sempre dolorosas vezes - descubro-me pródigo em balelas. Por vezes são os meus mais próximos que mo dizem, por vezes carinhosamente, outras de forma ríspida, provavelmente porque mereço bem o que me dizem. Uma das mais pródigas balelas saídas da minha boca tem amar como temática. É que eu normalmente acredito mesmo na imensidão de amar. Amar, não amor. Amar, um ato vivido, sentido, propositado, com destinatário concreto e definido, e não Amor, essa coisa demasiado global indefinida que pode ser tudo e nada. Encho muitas vezes a minha boca - a minha vida - com o Amar, tentando conjugá-lo com verdade, com disponibilidade, com abertura e concessão de espaço. E deixo-me enredar nas minhas próprias palavras, na minha forma muito minha  - não são todas as nossas formas muito nossas? - de amar. A tal ponto que às tantas são-me ditas muitas vezes e feitas sentir outras tantas e mais ainda que amar não chega. Que amar é pouco. que amar, mesmo vivido ou tentado na sua plenitude não chega. e que a forma balélica como amo estilhaça. E o meu mundo estilhaça. E a paisagem que me rodeia é já totalmente outra, e o que vejo a seguir nada tem a ver com o que via antes e tenho de refazer uma outra paisagem, interior, feita de estilhaços, tentando descobrir neles um outro sentido, um outro refazer, se possível sem recomeçar, sem baralhar e dar de novo. Ainda que sabendo que construir a partir de estilhaços não é construir. É, quando temos sorte, reconstruir; é, quando não temos sorte, tapar o sol com a peneira, é viver com a aparência de construir, rezando para que não haja momento, pelo menos tão cedo, em que a água entre.

Bambora

  Não é estranho que nos digam que «ser homem é muitas vezes uma experiência de frustração». Mas não é essa toda a verdade. Apesar de todos ...