20160229


Quando somos novos, por mais que leiamos, por mais que estudemos, por mais que nos digam, acreditamos sempre que a vida se processa em linha reta. Podemos até calcular que os momentos não serão sempre bons, escutar as dificuldades que os outros sentiram e tomar nota mental disso mesmo, mas no fundo no fundo temos sempre a certeza que connosco tudo irá ser diferente. Porque sabemos mais, porque acreditamos mais, porque sentimos mais e juramos a pés juntos que estamos muito bem preparados para aquelas alturas que as coisas correrão menos bem. E depois admiramo-nos da nossa falta de preparação para os momentos menos bons da vida.

Há já algum tempo que deixei de medir os meus ciclos em anos. Quando muito, a minha medida são os acontecimentos. O que aconteceu desde aquela caminhada? O que se passou desde aquela nossa conversa? Cresci? Crescemos? Caminhei? Caminhamos? A vida vai-se tornando vidas, em função das relações, dos sofrimentos, das conquistas e derrotas, das alegrias partilhadas. Às tantas os anos são apenas formas de organizar os calendários que nada têm a ver com aquilo que experienciamos, que é muito mais a vida vivida. O calendário deixa de pesar, de fazer sentido, perante a nossa extraordinária habilidade em fazer valorizar de forma nova aquilo que antes até nos passava despercebido. Tudo leva mais tempo mas descobrimos que temos mais tempo para tudo. E que até saboreamos melhor a vida quando a aprendemos a mastigar melhor, mais demoradamente.

Vou aprendendo que a sabedoria terá a ver com a aceitação da vida com os braços e a alma aberta. Que há sempre coisas que correm bem e que há sempre coisas que correm mal, que por muito que nos esforcemos haverá sempre motivo para crítica, para sermos apontados a dedo - inclusivamente por nós próprios - e que a angústia que me rouba a serenidade vem dessa minha arrogância de querer ser perfeito como apenas o Pai é perfeito. Esse pecado original e originante precisa ser ainda muito trabalhado em mim. Já tenho a consciência dele. Falta-me agora transformá-lo em realidade. Palpável. Por todos. Todos os dias.

20160222






Fui visitar a minha avó. Ontem. Domingo. Já há algum tempo que não o fazia. Não me é natural. Lembro-me perfeitamente de, há cerca de cinco anos, me ter apercebido que provavelmente não terei avó por muito mais tempo e me ter imposto passar a visitá-la. Intencionalmente, de quinze em quinze dias. Quase nunca, de quinze em quinze dias. Nunca me é fácil decidir-me visitá-la. De todas as vezes tem que ser uma decisão auto-imposta, porque é minha avó, porque tem que ser, porque fica mesmo feliz quando chego, porque conversamos bastante, apesar da sua memória começar a falhar, porque é minha avó e não tenho outra, por que é minha avó e eu sou neto... É uma decisão sempre muito mais racional que afetiva, embora a afetividade venha ao de cima logo que velho aqueles olhos ainda vivaços e o seu sorriso aberto me acolhe. Nunca fico muito tempo. Apenas o suficiente para conversarmos, perceber que ela está bem, para ela se recordar que eu fui lá, para me livrar da culpa de não a visitar.

Poderia estender tudo isto aos meus pais. Que ainda não visito de quinze em quinze dias, talvez porque são muito mais novos e acredito que ainda os terei por muito tempo. Talvez, quando chegar a altura da minha avó, eu substitua a visita dela pela visita deles. Que irá ter, inevitavelmente, o mesmo caráter auto-imposto, a mesma preocupação de ver e ser visto, a mesma frugalidade temporal, o mesmo desejo de libertação da culpa de não ter uma vontade forte de os visitar.

Não sei o que aconteceu, algures no meu percurso, que me roubou esta vontade de estar por perto. Apesar do percurso algo atribulado, tenho algumas boas memórias da infância, e nos dias bons até chego a pensar que me deixaram um legado bom. Mas há qualquer coisa que não está, que não ficou, que não existe, que tem que ser auto-imposta para que sossegue a alma. Provavelmente, quando partirem, chorarei baba e ranho e lamentar-me-ei do tempo que não nos dedicamos. Até porque não tenho qualquer dúvida que eu amo os meus pais e a minha avó e sei que eles me amam.

Apenas não somos muito próximos.

20160218


O mesmo dia que começa, a mesma manhã gelada e ainda não aquecida pelo mesmo sol da manhã, lindo, o mesmo som do mar, agora furioso, de encontro ás rochas, devidamente matizado pelo arrastar dos seixos e pelo constante grasnar das gaivotas que se revoltam contra o vento que as empurra para onde não querem ir, o mesmo Damien nos ouvidos, arrastando-me consigo: "what i am to you, you do not need", o mesmo estado de espírito, que me é tão familiar, demasiadamente familiar, diria, a mesma vontade de meter meia dúzia de coisas na mochila e arrancar sem destino nem hora marcada "my mother always said life was like a box of chocolates"...

Acompanha-me a sensação que estou exatamente no mesmo lugar de há meses atrás, mas agora com um maior conhecimento, agora com uma maior consciência, agora com uma maior clarividência que, no entanto, nem sei bem se será bem vinda porque nada faço com ela.

De que serve aprender-me se nada faço com o que aprendo?

20160217


Não se trocam almas como quem troca cromos. Não se vê o que me faz falta, troco este por aquele, isto por aquilo, e meto ao bolso, vou para casa, colo na caderneta para ficar mais bonitinha e fecho-a com a sensação que está mais completa. Aliás, é-me frequente perceber que é o oposto, o que acontece. Trocamos almas, tocamos almas, permitimos que nos toquem a alma, e quando permitimos que a vida nos afaste, sentimo-nos menos cheios, menos completos. Porque trocar almas não é trocar cromos. É ir perdendo, é ir deixando pedacinhos de nós próprios na imensidão dos outros. A vida é perda, como diz a Marta.

Mas não sei perder almas. Nunca o soube. Volta e meia ainda cedo à tentação de as tentar esquecer, de as varrer para debaixo do tapete, na vã tentativa de fazer de conta que nunca existiram, que nunca as trocamos, que nunca nos tocamos, mas depois acontece essa coisa chata de ter que dormir e ter que sonhar e recordar-me invariavelmente do que sonho e que recupera essa sensação que há algo que está debaixo do tapete e vou lá ver e lá estamos nós outra vez a tocar almas, a trocar almas, como se nada de permeio tivesse existido.

E não existiu mesmo. Porque o tempo das almas não é o tempo dos homens. Por isso às tantas, quando nos apercebemos, estamos a conversar como se não tivesse havido durante, como se tudo fosse aqui e agora, porque para quem se ama apenas o aqui e o agora constitui o tempo.

Hoje tenho uma alma no bolso. Não a irei colocar sob o tapete. Não o conseguiria, ainda que o quisesse. Conservá-la-ei, com todo o cuidado, com todo o mimo, até que o seu tempo coincida com o nosso tempo.

E aí poderei amar novamente.


20160216


Não é fácil encontrarmos um sentido para a vida.

Não é fácil enfrentarmos o desespero do vazio, o medo que nos subtrai à vida, aprisionando-nos no passado e roubando-nos o futuro. Não é fácil não termos a quem servir, quem nos espere, no silêncio da noite, contando os minutos até à nossa chegada. Não é fácil depararmo-nos com o nada que brota da escuridão, dia após dia, noite após noite, apesar do sol - que brilha sempre lá fora, nos outros e para os outros - que nos fere porque nos confronta na nossa própria insuficiência.

Por vezes converso acerca de linhas. Separadoras. Do tudo e do nada. Que são sempre ténues, demasiado ténues até para serem observadas a olho nu, mas que estão lá, sempre, ainda que despercebidas, ou então não estão lá, nunca, justamente quando precisamos delas. Aquelas linhas que separam o sensato do louco, o bem sucedido do indigente, o solitário do popular, o sábio do ignorante. Tudo aparentemente, claro, porque a interioridade de cada um é que vai marcando o ritmo do sofrimento de cada um, que os fantasmas são sempre individuais e personalizados.

"... fazei que eu procure mais consolar que ser consolado..." recordo-o instintivamente os momentos mais difíceis. Porque quando nada mais faz sentido, nada dá mais sentido que precisarem de mim.

20160215


"Quando eles iam separar-se de Jesus, Pedro disse-lhe: «Mestre, é bom estarmos aqui. Façamos três tendas: uma para ti, uma para Moisés e outra para Elias.» Não sabia o que estava a dizer." 
Lc 9, 33

Tempo de chegada, tempo de partida. 
Foi um tempo de chegada e um tempo de partida. 
Simultâneamente. 
É sempre tempo de chegada e tempo de partida. 
Simultâneamente. 

Vou a Taizé como quem vai a uma ótica: para arranjar as lentes. As minhas lentes. Vou focar, outra vez, porque o meu olhar, ao longo do ano, vai perdendo acuidade. Lentamente, progressivamente, vai adormecendo, arrastado pela vida, que me vai cozendo em lume brando. Lentamente, progressivamente, vou deixando de ver, passando a apenas olhar. Lentamente, progressivamente, vou deixando de valorizar a extraordinária beleza das coisas simples, a fundamentalidade das coisas simples, e vou ligando-me ao complicador. Lentamente, progressivamente, vou deixando de apreciar os pequenos gestos, os pequenos sorrisos, as pequenas partilhas, embrenhado num quotidiano que me pede sempre mais e melhor e mais rápido e mais eficaz, roubando-me a mim próprio o tempo de parar, avaliar, apreciar, encontrar, silenciar, rezar. Lentamente, progressivamente, vou desfocando o olhar que lanço sobre mim, principalmente sobre mim, e vou permitindo que os tantos que me habitam se sobreponham uns aos outros, lançando a confusão, alimentando-se da dúvida, da dívida, do medo, do anseio. Lentamente, progressivamente, começo a sentir a falta, de mim, de parar, de me encontrar, no amor e do amor, de Deus, dos outros, de mim.

Em Taizé permito-me. O abandono, a entrega total, a partilha, a alegria, a serenidade, a paz. Porque em Taizé tudo é o meu desencontro a dar lugar ao meu encontro. Tudo é o meu destempo a dar lugar ao meu tempo, Tudo é a minha inquietude a dar lugar à minha quietude. Tudo é o meu barulho profundo a dar lugar à serenidade profunda. Tudo é o meu velho a dar lugar ao meu novo, que brota desse encontro profundo comigo e com Deus nos outros e através dos outros. Taizé abala-me as estruturas como quem sacode a toalha antes de a colocar sobre a mesa para que a refeição possa ser servida. Taizé é o tudo no nada ensinando-me sempre a ser nada no tudo. É regressar à casa do Pai para que O possa levar de volta comigo, para a minha casa.

20160204



"Vivo rodeado de sábios!"

Pretendia ser apenas um comentário com o seu quê de satírico a algo que vi no facebook. Mas fiquei com essa na cabeça. Vivo mesmo rodeado de sábios. De pessoas que sabem viver a vida, que sabem fazer as escolhas certas, que gostam de aprender e de continuar a crescer, que se preocupam em ser um bocadinho mais no final de cada dia. Rodeado de gente assim, só não aprendo quando estou demasiado cheio de mim. Burrice pura!

Ontem aconselharam-me a esquiar. Isso mesmo. A esquiar. Não na neve - havia de ficar bonito num daqueles fatos coladinhos ao corpo! - mas na vida. Como quase todas as coisas importantes, foi dito meio em tom de brincadeira, mas o que é facto é que hoje, enquanto caminhava, dei comigo a aprender a esquiar. Na vida. Tentar respirar, tentar manter o equilíbrio, tentar preparar-me para conseguir sair do sítio, apesar de não fazer a mínima ideia de como o fazer sem me espalhar ao comprido - já referi que tenho um doutoramento em espalhanços ao comprido? E como a minha cabeça tem alturas em que é um cerejal, rapidamente saltei para os AAs, ou melhor, para o HAA, como forma de aprender a esquiar: Hoje, Aqui e Agora, como estou? O que devo agradecer? O que devo alterar?

Vivo, efetivamente, rodeado de sábios. Que partilham, que ficam felizes por partilhar, que, tal como eu, se sentem maravilhados com os dons alheios, que se sentem sempre pequenos, que estão por isso sempre prontos a beber da sabedoria que é posta em cima da mesa, tal como lá em casa colocamos a travessa da comida para que todos se possam servir, cada um à sua medida, cada um de acordo com as suas necessidades, cada um com a certeza que chega sempre para todos.

HAA, já só me falta esvaziar-me de mim.

20160203


Como me acontece em momentos de decisão, escrevo e apago, escrevo e apago, no processo que melhor espelha o que me vai na alma. Taizé vem aí e chega na melhor altura. Em Taizé reencontro-me sempre, ajusto as imagens que me habitam, e ganho fôlego para uma nova temporada. Anseio o calor acolhedor daquela capela, as caminhadas a sós mas nunca solitárias, o doce embalar dos cânticos, o encontro profundo na oração, o repouso do meu olhar naquela paisagem junto ao lago, plena de um Deus que se reencontra em cada vida orante. Revisitarei conversas, percorrerei os mesmos caminhos com outros passos, inundar-me-ão as memórias e chorarei. E reconstruirei velhas ruínas, repararei brechas e restaurarei ruas destruídas. As minhas ruínas, as minhas brechas e as minhas ruas. Serão os meus próprios escombros que confiarei a Deus. E como estou a precisar de o fazer!


"Se retirares da tua vida toda a opressão, o gesto ameaçador e o falar ofensivo,
se repartires o teu pão com o esfomeado e matares a fome ao pobre,
então na escuridão em que vives brilhará a luz,
a tua obscuridade transformar-se-á em meio-dia.

O Senhor será sempre o teu guia,
até em pleno deserto saciará a tua fome e dará vigor ao teu corpo.

Serás como um jardim regado! Como uma fonte abundante, cujas águas nunca secam.

Reconstruirás as velhas ruínas, levantá-las-ás sobre as antigas fundações.
Vão chamar-te "Reparador de brechas e restaurador de ruas destruídas"

Isaías 58, 9-12

Bambora

  Não é estranho que nos digam que «ser homem é muitas vezes uma experiência de frustração». Mas não é essa toda a verdade. Apesar de todos ...