20150129


Se, como canta Sérgio Godinho, a vida é feita de pequenos nadas, tudo o que envolve a vida afetiva é feito de ainda mais pequenos nadas. Pequenos pormenores, pequenos hábitos, que se vão instalando, e às tantas constituem o que verdadeiramente somos como pessoas... e como famílias!
Quem tem filhos sabe que vivemos tempos desafiantes. Antes, quando os miúdos eram pequenos, era fácil: uma cassete vídeo, todos no sofá, e tínhamos mais uma coisa em comum. Consigo cantar todas as canções dos filmes da Disney - e, garanto, faço-o com um enorme gozo - contar as suas histórias e até tenho as minhas personagens favoritas e filmes favoritos e canções favoritas... Quando vieram os telemóveis e os computadores a coisa complicou-se mais um bocadinho. A tentação de cada um - a começar por mim - se refugiar no seu mundo privado é maior e evitar que isso aconteça requer algum jogo de cintura. Mas complicado mesmo foi quando instalamos a internet sem fios lá em casa. Agora não tinha que estar ligado um computador de cada vez, ou um telemóvel de cada vez, mas cada um de nós podia estar no seu quarto contactável com o mundo mas incontactável em casa. Confesso que, mais por brincadeira que por outra coisa - daquelas brincadeiras que sendo-o, são um pouquinho mais que meras brincadeiras - já enviei sms aos meus filhos, que estavam nos seus quartos, para virem jantar. Só para eles perceberem a mensagem... Ah - mas isto não se diz - também as recebi deles.
Há já muito tempo que, lá em casa, a única eletrónica permitida na cozinha é a do micro-ondas. Isto torna as nossas refeições muito partilhadas e naturalmente ruidosas. É muita gente a falar ao mesmo tempo, e no final é comum termos alguém a cantar, e a tocar guitarra ou djambé, ou tudo ao mesmo tempo.
E depois temos outros complementos, juntos. Nesta altura, em que temos óscares, retomamos as sessões cinematográficas das sextas à noite, com uma forte participação do sofá, das mantas, do chá ou chocolate quente e biscoitos - ou bolachas, ou sandes, ou redon (restos de ontem) conforme o apetite de cada um. Há sempre quem adormeça a meio ou no princípio do filme, há sempre quem se recuse a ir para a cama e fique no quentinho da sala, há sempre quem prefira outro filme, mas lá vamos conseguindo, algumas vezes a custo, articular toda esta dinâmica para que possamos estar mais tempo juntos.
Todos sabemos, sem nunca o dizer, que daqui a um ano as coisas serão diferentes. Duas das filhas acabam o seu curso, terão o seu futuro, os seus próprios sofás e as suas próprias companhias para as sessões de sexta à noite. Mas enquanto isso não acontece, vamos saboreando o enorme prazer destes pequenos nadas, como é ver um filme em família.

20150128


"O controlo de nós mesmos por amor aos outros mantém-nos alerta. A paz do coração, para os outros e para nós mesmos, pode implicar este esforço: não nos deixarmos levar pelas emoções ou pelas impressões que a imaginação frequentemente amplifica. "
http://www.taize.fr/pt_article183.html

Descubro frequentemente que a minha irritação exterior é apenas uma manifestação da minha zanga interior. Comigo mesmo. Sempre que as coisas não me correm bem - e, para mim, as coisas não me correrem bem é eu ficar aquém do que eu próprio exijo de mim - começo por me zangar com o mundo e depois, só depois, descubro que é comigo que ando zangado.

Hoje cheguei lá por dois caminhos, os melhores caminhos que eu sempre percorro para chegar a mim: primeiro, a voz de quem me ama; depois, a reflexão, sozinho, peripateticamente, no silêncio ensurdecedor que reconhece a razão a quem a tem. A seguir, um terceiro momento, muito importante: ok, tens razão, vou alterar o meu percurso.

Esta é a minha forma de crescer.

20150127


Um dos meus maiores defeitos é a minha falta de pachorra para choradinhos. Não posso com o discurso do coitadinho, sobretudo quando tem como base a comparação com outros que vivem realidades distintas e ainda mais sobretudo quando passam por cima das suas próprias realidades.
Numa destas últimas semanas, num dos dias de reflexão, um aluno veio-me com um choradinho qualquer que me fez logo torrar a paciência. Disse-lhe logo para ir comigo 15 dias a Ramalde que aquilo passava-lhe. Curiosamente, uns dias depois, foi um dos miúdos de Ramalde que se tentou justificar com as suas circunstâncias. Disse-lhe para olhar para o outro lado da avenida, mesmo em frente ao nosso Espaço, e comparar a sua situação com a de quem já não estava lá porque dias antes houvera uma rusga policial que prendeu meia dúzia de colegas dele. Na semana passada sentei-me com o meu mais novo e disse-lhe justamente isso, que não viesse com choradinhos porque ele tem todas as condições para ser o que quiser ser desde que tenha a coragem e o compromisso suficientes para se fazer à vida. E que a autonomia que ele reivindica cada vez mais traz apegada a si a responsabilidade e a cada vez maior dificuldade em se justificar quando as coisas não correm bem. Ontem foi a minha filha, hoje foi...

O que eu vivi deu-me, naturalmente, muito e tirou-me outro tanto. Tal como disse a uma turma na passada sexta feira, não compro estas coisas dos choradinhos. Na altura falava-lhes do Gusto e de tudo o que fizemos juntos e das coisas que não fizemos juntos, fruto das escolhas dele que o conduziram à morte prematura. Eu acredito muito que, tendo as circunstâncias um peso importante nas nossas vidas, não são no entanto decisivas, que a última palavra é nossa, a última decisão é nossa, particularmente se tivermos a sorte de ter ao nosso lado quem conheça o caminho e nos ame o suficiente para nos alertar e dar na cabeça as vezes suficientes e necessárias até atinarmos. São incontáveis as vezes que eu levei e continuo a levar na cabeça e ainda assim, por vezes, continuo a persistir na asneira. Mas assumo que a responsabilidade de viver com as consequências dos meus atos  é minha e não peço - e muito menos exijo - seja a quem for que seja condescendente. E são-no, muitas vezes, e quando isso acontece fico grato porque me é dado de borla.

Ainda ontem disse: se soubesses como perdes sempre que fazes o choradinho!

20150121


Todos os dias tenho alturas em que me divido entre o que sou e o que quero ser, ou sou chamado a ser, que para mim é o mesmo.
Fruto de todas as circunstâncias da minha vida, esta é uma batalha muito presente, muito sentida, muito vivida, e nada fácil. Tendencialmente, sou muito fechado, muito metido em mim mesmo, muito fechado no meu canto e o que mais quero é que me deixem em paz. Este meu lado de eremita, muito egoísta, é muito constante e persistente. Basta que eu esteja um pouco cansado ou chateado coma  vida para que baixe a guarda sobre mim próprio e ele toma conta da situação. Nestas alturas tudo em mim é mau, e não raras vezes os que me amam dizem-me que estou irreconhecível. Nessas alturas, alertado justamente por aqueles a quem não quero desiludir, apercebo-me do meu estado de espírito e entro em ação. E dou lugar a um outro eu, que escolhe sorrir e cantar e colocar-se à margem para que os outros possam ter espaço dentro de mim.
Nas minhas catequeses - formais ou informais - coloco muitas vezes a questão "quem sou eu quando ninguém olha para mim?". Como sempre acontece quando falo de Deus e da vida, o que digo vem de dentro, as questões que eu coloco são as que eu próprio me vou colocando nas diversas situações. Por isso, quando faço essas perguntas não as faço apenas aos jovens que tenho diante de mim: continuo a fazê-las, no meu recolhimento, a cada momento. E, pelas suas reações, pelo seu silêncio, pela sua participação, acredito que eles sentem-no, de alguma forma. Provavelmente, quando nos cruzamos nos corredores, pensam em mim como alguém que sabe o que quer, cuja construção está acabada, cuja única preocupação agora é a de manter o rumo. No entanto, quando desenvolvemos uma relação de maior proximidade, nas orações, nos dias de reflexão, nos projetos ou peregrinações, essa é uma ideia que eu tento desmontar. E partilho as minhas preocupações, as minhas inconstâncias, as minhas fragilidades. Por várias vezes, alguns adultos me disseram que preferiam que eu não o fizesse, que os jovens precisam de referências sólidas. E eu concordo. Também eu gostaria de ser uma referência sólida e absoluta. No entanto, quando o que eu tenho a partilhar é o que eu sou, com todas as minhas fragilidades e inconsequências, com todas as procuras e confianças, não me peçam para inventar histórias da carochinha. Como digo muitas vezes nos dias de reflexão, quando colocamos o que somos no altar não vale inventar, é o que somos, o que colocamos, não o que idealizamos ser. Esta autenticidade que eu procuro ter na vida, não pode ser outra junto ao altar. Pelo contrário, é junto do altar, confronto o que eu sou e o que sou chamado a ser, que encontro a força, a motivação e a coragem para me ultrapassar todos os dias. Se o consigo fazer, já é outra história.

20150119


Hoje voltei à minha caminhada matinal. Sozinho, sem música, sem rádio, sem outra coisa que não o amanhecer gelado, o sol que desponta e embeleza o já belo mar, o choro das gaivotas e a suave companhia do barulho das ondas a embater nas rochas. As condições ideais para começar uma semana que, como as antecedentes, se apresenta com um ritmo complicado. No meu espírito, Taizé já tomou as rédeas do futuro. Enquanto caminho não estou já na Foz mas lá, com aqueles com quem gosto de estar nestas coisas, partilhando o que adoro partilhar nestas alturas, vivendo o que recordo mais tarde ter vivido tão intensamente na serenidade do encontro. Por fora digo-me que não sei ainda se vou, cá por dentro rezo a todos os santinhos para que não consiga encontrar desculpas para não ir. Não preciso delas, em boa verdade. Taizé é o meu lugar e voltarei a ele sempre que proporcionar. Mas nesta altura não sei se é o melhor para aqueles que comigo vivem, e essa é sempre uma decisão dolorosa. No entanto, como estou a preparar tudo para Taizé, a minha ida ou não é irrelevante para que me deixe habitar por dentro. Como muitas vezes me acontece, à medida eu caminho construo cenários, articulo discursos, encontro alternativas para caminhos que sei provavelmente nunca serão percorridos. Imagino encontros e conversas, luares e terraços que apenas existem noutros hemisférios, e momentos que, de tão intensos, se tornam quase irreais. Mas que são meus, inteiramente meus, como se corpo e alma pudessem ser independentes e terem, ambos, vidas autónomas. Desde quem me recordo que vivo noutro mundo com os olhos abertos, como se o sonho se impusesse à realidade, ao ponto de como que acordar de repente e ficar mais surpreendido com o lugar onde verdadeiramente me encontro que com aquele em que me encontrava. A realidade nestas alturas torna-se um pouco difusa e dificulta-me a memória: estive lá, realmente, ou imaginei-me lá? Isto aconteceu fora de mim ou existe apenas na correspondência dos meus anseios? O curioso é que, à medida que o meu tempo avança, à medida que a idade me sobrecarrega os ossos, aumenta a minha convicção que ainda me falta muito para viver. Como o irei viver, não sei. Se com o corpo, se com a alma, se com ambos, em simultâneo, em cordialidade, em consonância, não sei. E não é importante. Sempre tive a convicção que a distinção entre fantasia e realidade é sobrevalorizada.

20150114


Acabei de receber a notícia que uma amiga está grávida. E não o queria. De todo! E o marido também não. De todo! E disse-lhe que a culpa era dela. Como se, em tudo o que acontece numa relação, a culpa pudesse ser apenas de um só. Estúpido! Não há outra palavra. Estúpido! Ela, que tem uma idade em que ter um bebé já acarreta riscos superiores ao normal, teve que ir fazer a amniocentese sozinha. Estúpido! E parece que as coisas não correram muito bem. Estúpido! é a prova provada que o tremendo sucesso profissional, o desafogo financeiro, a inteligência operativa, pode acontecer mesmo entre a mais estúpida das pessoas.
Estou mesmo irritado. Não entendo como é que alguém pode ser tamanha bota da tropa. Ainda por cima quando tem uma boa casa, uma boa profissão, condições de vida muito acima da maioria de nós e no entanto consegue ter uma atitude deste tipo que, aliás, soma a muitas outras que vai tendo. Não entendo como não se consegue dar graças por uma nova vida, qualquer que seja a circunstância em que ela aparece.
Sempre que esperávamos um filho havia festa lá em casa: chamava os meus pais, os meu sogros, os meus amigos e brindávamos todos juntos, escolhendo a alegria, a confiança, a fé, a certeza que o mais importante era quem vinha. E não permitia sequer que questionassem a oportunidade, as condições de vida, o dinheiro, o trabalho, a imensidão de desculpas que é moda apresentar-se para se justificar o injustificável. E sempre disse aos meus filhos e filhas que, solteiros ou casados, se chegassem lá em casa com uma notícia dessas, faríamos a festa juntos, ainda que algumas pessoas engolissem em seco. Nestas alturas não tenho qualquer dúvida ou hesitação: um bebé é sempre uma boa notícia. Ponto final.
Quando nos casamos uma amiga deu-me um dos presentes mais simples mas mais significativos que já recebi, e que continua lá em casa, ao contrário de outras coisas. Era uma pedra pequenina, pintada à mão, onde se lia: "não pode haver tristeza quando nasce a vida." Assim. Simples. Sem luzinhas a acender e a apagar, sem grandes desenhos. Simples. E sempre esteve muito presente no nosso casamento. Apetecia-me mandá-la à cabeça de alguém que conheço. Se não gostasse tanto dela! Estúpido!

20150113


É recorrente, em mim. Cíclico até, diria. Volta e meia apetece-me desaparecer, acizentar-me, passar despercebido, refugiar-me na minha insignificância para poder dizer, escrever, fazer, o que quiser, sem que ninguém disso me possa pedir responsabilidades. E isso, hoje, é muito fácil de fazer: abre-se um qualquer email, um qualquer blogue, e envia-se uma série de patacoadas sem deixar rasto. Nem sequer para mim próprio, que me esqueço poucos dias depois. Um pouco como a speaker's corner, em pleno Hyde Park, mas muito mais cobarde, porque ninguém sabe de onde vem aquilo tudo, mas também, em abono da verdade, muito mais insignificante, porque o que ali é escrito fica depositado algures nessa coisa inexistente que é o arquivo morto da internet.
Andava eu nestas andanças típicas de férias quando estalou aquela aberração de Paris. E todos vimos lá em casa, todos discutimos o que aconteceu, todos demos a nossa opinião e a nossa visão dos acontecimentos, nem sempre coincidentes, como acontece quando a discussão acontece entre pessoas inteligentes, mas nenhum de nós se escondeu no anonimato nem deixou de tentar defender aquilo em que acreditava. Houve discussão a sério entre uns que defendiam o primado da liberdade e os outros que aconselhavam o bom senso, ainda que movido a receio das consequências. Não importa. O que importa mesmo é que todos demos a cara numa altura em que eu estava armado aos cágados à procura de ser cinzento.
Ao fim destes anos todos eu até entendo que tenho cumprido bem a minha paternidade. Naturalmente, cometi montes de erros, fiz e disse barbaridades, mas em boa verdade, prefiro ter feito isso a dar ouvidos ao que ainda esta semana ouvi na rádio: "não perca a opinião do pedopsiquiatra x - devemos contar aos nossos filhos o que aconteceu em Paris? Como o fazer sem os traumatizar?" Eu fiz-me pai com os meus filhos. Fui dando sempre, às vezes em demasia, noutras em escassez, sempre com muitas incertezas, fui caminhando com eles, à medida das suas necessidades, tentando aplicar apenas o bom senso como forma de contrabalançar o facto de eles serem tudo para mim. Acho ridícula esta nova moda de termos que ter especialistas para tudo, que mais não fazem senão criar inseguranças tolas e fantasiosas, que seriam apenas ridículas se não tivessem consequências nos filhos e nos pais. E, como pai, aprendi sempre. Com os meus filhos. Tenho plena consciência que nos fizemos juntos, à medida que caminhávamos juntos, que nos descobríamos juntos, com as nossas discussões, as nossas batalhas, com as nossas cedências mútuas, silenciosas e tácitas.
Quando estávamos a discutir o que aconteceu em Paris, enquanto eles diziam que não eram Charlie, enquanto aprendíamos todos com os diferentes pontos de vista, percebi que era tempo de voltar a dar a cara.

Bambora

  Não é estranho que nos digam que «ser homem é muitas vezes uma experiência de frustração». Mas não é essa toda a verdade. Apesar de todos ...