20130726


Um dos principais indicadores do meu cansaço é a falta de paciência. Não com os outros mas comigo, quando estou sozinho. Quando o dia termina, o rádio incomoda-me, chego a casa e não sei o que hei de fazer com  tempo, pego num livro e largo-o, pego noutro e não me satisfaz logo às primeiras páginas, a televisão não passa nada em condições e, como se não chegasse, todas as noites uma qualquer canção perfeitamente estúpida invade-me o sono fazendo com que, invariavelmente, veja nascer o dia de olhos bem abertos. Poucas coisas me chateiam tanto como este tempo intermédio em que estas coisas ainda não acabaram mas as outras ainda não começaram. Em princípio, amanhã, esse tempo terá acabado. Afife, com as suas praias, com a sua calma, com o seu tempo nublado, com as suas noites frias, espera por mim. Amanhã, em princípio, encetarei uma nova recuperação. De mim mesmo.
Boas férias

20130723


Há uns anos descobri que há em mim um lado de advogado do diabo que me passara despercebido. Numa qualquer discussão, quando as opiniões tendem todas para um lado desconfio sempre. E descubro-me a procurar razões para que as coisas não sejam bem assim. Muitas vezes acabo até por não conseguir deixar de apresentar essas razões, mesmo contrariando o que defendera momentos antes. Confuso? Claro que sim. Se para mim o é, imagino para os outros.

E sou assim em tudo!

Aqui há uns tempos, depois de mais um titulo, cometi a estupidez de dizer em voz alta que tinha saudades do Porto quando o Porto não ganhava nada. Éramos poucos os indefectíveis, orgulhosos por pertencer a um clube que sentia na pele e no campo o contra tudo e contra todos, que na altura nada tinha de artificial. Da mesma forma, sempre preferi as segundas cidades dos países e os clubes dessas cidades, que têm que lutar contra o natural poderio da capital. Mesmo a nível partidário, tenho sempre vontade de aderir formalmente ao meu partido de sempre quando vejo a meia dúzia de gatos pingados que aparecem depois de uma estrondosa derrota. Sinto sempre que é junto deles que gostaria de estar e não na palmadinha nas costas.

Talvez por causa desta minha estranha tendência, fez-me muita confusão ver ontem o Papa rodeado por tanta loucura! Pensei logo como estas coisas nunca são lineares, nunca possibilitam apenas uma leitura, que nada é, em si, completamente bom ou completamente mau. A loucura colectiva tem uma linha muito ténue que separa o que é do que deve ser. Por isso, faz-me muita confusão o endeusamento que começa a haver em torno do Papa Francisco. Imagino-me na pele dele e a claustrofobia que sentiria, a falta de espaço, a falta de serenidade, o desconforto de ser colocado num pedestal por milhões de pessoas. A ele, que tanto apela aos pés assentes na terra e que, paradoxalmente, se vê elevado justamente por defender os pés assentes na terra.

Há muito de irracional - e eu, com a idade, começo a fugir do irracional - nestas manifestações de fé, ou de fezada, que me lembram sempre, sempre, a forma como Jesus foi acolhido em Jerusalém. E desta vez nem sequer faltou o jumento, que, nestes nossos dias, corresponderá ao carro familiar que transportou o Papa Francisco.

Como sempre me acontece nestas manifestações de massas apanho-me a interrogar-me: Quantas destas gargantas que gritam hossanas ficariam junto à cruz?

20130717


Tenho andado a saborear, lentamente como convém com as coisas importantes, o Lumen Fidei, do Papa Francisco. Logo no início, uma curta frase que me chama a atenção: a fé nasce no encontro com o Deus vivo.

Nunca entendi muito bem aqueles que dizem que, com muita pena sua, não foram abençoados com o dom da fé. Provavelmente nunca a procuraram, ou melhor, nunca se disponibilizaram a não ser para que a pudessem ter.

Lembra-me o que aconteceu na minha primeira experiência de Taizé. Nos primeiros dias a cabeça não parava, andava constantemente às voltas, numa ensurdecedora gritaria que me frustrava qualquer tentativa de silêncio. Às tantas, cansado de tanta gritaria, rendi-me a mim mesmo e aceitei a imensidão de imagens e sons e problemas que me assaltavam mal me sentava naquele chão abençoado. Progressivamente, de forma muito lenta, fui-me apercebendo que se era eu, inteiro, com tudo o que sou, não podia não aceitar tudo o que me vinha à cabeça, não podia fazer uma espécie de interregno entre o que verdadeiramente sou, suspendendo temporariamente tudo o que me aflige só para aproveitar o silêncio. Progressivamente, de forma muito lenta, fui-me apercebendo que o que me era oferecido naquela altura não era ainda o tão desejado silêncio mas a oportunidade de o poder construir bem dentro de mim, e que para isso não adiantava tentar iludir a realidade, fazer de conta que eu estava de bem comigo e com a vida, mas que, pelo contrário, era o momento de me apresentar tal como era, sem fugas ou fingimentos, àquele que por mim esperava. Progressivamente, de forma muito lenta, fui-me apercebendo que, à medida que me ia esvaziando de mim, me ia dando a possibilidade de me encontrar, na mais completa interioridade, no silêncio que se torna fonte de sabedoria.

Creio que a fé é um dom. Mas já não acredito que seja apenas de alguns, que seja distribuída aleatoriamente por um deus que se diverte a confundir aqueles que ama. Acredito que o pecado originante (parafraseando o Frei Ventura) não tem nada a ver com a maçã mas com a ausência de resposta à primeira pergunta feita por Deus ao homem. Acredito, por outro lado, que nunca é fácil deixarmos que outro seja em nós, deixarmos que nos conduzam, ainda que por amor, deixarmos que outro assuma o controlo, ainda que por momentos, da nossa vida. Mas acredito que o único encontro que vale a pena é justamente esse: aquele que acontece por amor e se transforma em amor cá por dentro para que possa ser amor para os outros.

20130716


Lentamente, muito mais lentamente do que eu desejaria, vamos voltando a ter o nosso tempo.

Ainda na semana passada, numa das reuniões de um dos grupos de trabalho aos quais pertencemos, tive que recordar que, apesar de sermos casados, apesar de irmos e virmos juntos, apesar de ambos estarmos envolvidos em alguns projectos comuns, não somos um só. Para efeitos de trabalho, claro. Que as coisas não passam por osmose ou proximidade enquanto dormimos só porque nos amamos. Que o facto de se comunicar algo a um de nós não implica necessariamente que o outro o saiba. Até porque temos muito mais do que conversar, muito mais do que partilhar, muito mais do que construir e resolver, todos os dias, que não passa por trabalho. Volta e meia lá se misturam as duas coisas, mas confesso que isso não me agrada nada. Se, no que à vida diz respeito, fazemos por ter uma visão comum, no que ao trabalho diz respeito nem sempre queremos que assim seja. Nem sempre seria bom que assim fosse.

Em boa verdade, também não nos sobra muito tempo para discutirmos trabalho fora do trabalho. Apesar de os nosso filhos irem sendo cada vez mais autónomos, ainda temos todos demasiado gozo em partilhar uns com os outros aquilo que é verdadeiramente nosso para estarmos a meter estranhos lá pelo meio. As nossas horas de refeições são momentos de partilha do quotidiano e, curiosamente, nestas alturas sempre relevamos mais os sentimentos que os acontecimentos. O que nos interessa saber e discutir é o que fomos sentindo ao longo do dia, a forma como fomos lidando com as pequenas e grandes questões quotidianas, como fomos conseguindo, mais ou menos, ir superando desafios. No final, o que importa mesmo não é o que aconteceu com a pessoa a ou b, mas o que aconteceu connosco.

Agora, no entanto, acabadas as aulas, (quase) acabados os exames, abrandando o trabalho, já começa a cheirar a Afife. E Afife quer dizer um tempo só para nós, para as nossas loucuras, para as nossas brincadeiras e chatices e mornices e passeios e churrascos e piscinas e dolce fare niente, que nos é tão querido.
E vai sendo também o nosso tempo, um tempo a dois, feito de noites cada vez mais longas, de passeios à beira mar, de conversas cada vez mais nossas, recheadas de coisa nenhuma, que nos revigoram a paixão e aprofundam a identidade de onde brota o amor.

20130712

À revelia (uma daquelas revelias com que eu, como pai, estou sempre a contar e até, num e noutro caso, vou permitindo), o meu filho mais novo criou conta no Facebook. Como sou amigo dele, volta e meia passo por lá e dou-lhe uma vista de olhos. E nem sempre gosto do que vejo. É natural. É esquisito ver o meu filho através da impessoalidade do Facebook. Principalmente a ele, a quem começam agora a despontar as primeiras borbulhas, e que vai rapidamente deixando de ser "o pequenito" para assumir o João que em si desponta.

Eu sou um completamente babado pelos meus filhos. Conheço-os muito bem - mesmo quando se tentam esconder, e tenho um tal orgulho neles que por vezes me pergunto como cabe tanta coisa cá por dentro (o que, pelo menos para mim, explica perfeitamente o meu porte, que alguns, erradamente atribuem à gula. Nada de mais errado: tudo isto é amor.) Sei que eles já são muito mais do que eu alguma vez serei, o que me deixa perfeitamente feliz acerca do meu papel de pai: se fosse para eles serem tanto quanto sou, não valeria a pena.

Apesar de serem cinco, uma das minhas principais tarefas foi permitir que eles se fossem crescendo autonomamente, dando espaço para que eles se fossem encontrando e construindo. E isso devo-o ao meu pai. Lembro-me de ser pequenito e de o perceber, pelo canto do olho, a acompanhar-me como quem não quer a coisa. Suficientemente perto para que eu soubesse que ele estava ali; suficientemente distante para que eu me sentisse livre. Creio que foi das coisas mais importantes que me transmitiu, e que eu, em certa medida, tentei copiar para os meus filhos. É um equilíbrio que não é fácil manter, que volta e meia me levanta muitas interrogações, que me obriga a por constantemente em causa. Certamente seria mais cómodo impor-lhes um rumo, um caminho, muito bem definido e balizado, por forma a não se desviarem.

Certamente sentir-me-ia mais seguro se o fizesse.

Mas quando temos filhos, a questão nunca somos nós mas eles, o que é o melhor para eles, ainda que a custo próprio, ainda que à força de noites mal dormidas e medos mal contidos.

20130709

pontes


Um dos meus maiores prazeres é observar. Pessoas. Lembro-me de, muito miúdo, ir para a Praça da República, ou para a Avenida dos Aliados, e entreter-me a ver as pessoas a correr, esbaforidas, ensanduichadas nos autocarros, em hora de ponta. Imaginava como seriam as suas casas, o que fariam quando chegassem a casa, as suas famílias, a sua solidão ou alegria. Ainda agora, quando estou no meio de muita gente, normalmente refugiado num qualquer canto, são coisas dessas que me passam pela cabeça.

Por isso, é-me extremamente gratificante ver a evolução dos miúdos nas colónias. Quando lá chegam, apesar de todo o trabalho em comum que acontece ao longo do ano, há vários grupos que se olham com alguma desconfiança. As conversas ou são tímidas ou aparvalhadas (que é uma outra forma de lidar com a timidez), os olhares são inquisidores, e há, sobretudo, uma enorme quantidade de eus. Nesse primeiro dia, normalmente lido com todos eles de forma um tanto ou quanto abrupta: preocupo-me mais com o estabelecimento e cumprimento das regras que com outra coisa, para que seja possível construir-se relação em cima de algo sólido. Diz-me a experiência que as colónias se ganham ou se perdem justamente nesse primeiro dia. O estabelecimento de regras comuns a todos, miúdos e monitores, permite que todos se sintam no mesmo barco e que, lentamente, vão deixando cair a imensidão que os separa e construam o que os irá unir. É fantástico poder observar este processo, como ao segundo dia já falam entre si normalmente, ao terceiro lidam uns com os outros como se não existisse "lá fora" e, quando chega a hora de partir, a despedida é penosa. Basta dar uma olhadela aos seus facebooks para ver como ficarão a recordar aquela experiência, curta mas intensa.

Numa das muitas conversas que fui tendo com uns e com outros, fui referindo a importância do que fazemos nas colónias. Não são apenas um tempo em que os miúdos dos bairros têm acesso ao que lhes falta noutras ocasiões: regras básicas de postura em comunidade, regras básicas de higiene, regras básicas como o pedir por favor, ou agradecer, ou poderem contar, com toda a certeza, com refeições seis vezes por dia. Tudo isso é importante mas é pouco. O que importa mesmo é a construção de pontes. É que uns e outros se apercebam que não há nada de decisivo que os separe, que se as circunstâncias de uns e outros fossem diferentes, os seus papéis poderiam ser invertidos com a maior das facilidades. É que uns percebam que há pessoas que estudam e conquistam e se dispõem a gostar de alguém aparentemente tão diferente; e que outros se apercebam que há mais mundo para além das férias e das discotecas e do bem estar em que vivem. É que ambos percebam que há mais mundo para além do mundo fechado em que vivem.

Contrariamente ao que muitos pensam, nas colónias não fazemos férias, construímos pontes. Não creio que haja melhor forma de construir uma outra realidade.

20130705

colónia


Mapas preparados, muitas coisas embaladas, tudo para que não falte nada. Na bagagem interior, no entanto, é que vai o essencial: uma tremenda dose de boa disposição, uma tremenda dose de paciência e, fundamentalmente, uma tremenda dose de improviso.

Pelas minhas conta, este é o meu décimo terceiro ano consecutivo de colónias. Cheguei aqui como chego sempre a estas coisas: contrariado, arrastando os pés, mas lá vou chegando por afinidade, por amor,  por quem tem a arte e o engenho de o fazer: a minha mais-que-tudo. Aos dessa primeira colónia, já quase lhes perdi o rasto. Sei que alguns são já pais e mães, sei que alguns estão ou estiveram na prisão, sei que alguns vingaram na vida e são cidadãos como todos os outros: com maiores ou menores dificuldades, com maiores ou menores sonhos cumpridos. Quando passo por qualquer um deles é sempre uma festa. Qualquer que tenha sido o seu percurso, é sempre bom revermo-nos. Mesmo aqueles que se portavam mal e eram mandados para casa, hoje cumprimentam-me efusivamente e recomendam as colónias aos seus filhos, primos, irmãos ou vizinhos, como uma das melhores experiências das suas vidas.

É um mundo estranho, este. Que não é fácil conquistar, mas, uma vez conquistado, não e fácil largar. Contrariamente ao que muita gente pensa, este é um mundo de afectos fáceis, exacerbados, onde ora se revolta e se insulta, ora no momento seguinte se é capaz da maior doçura. É um mundo onde o futuro é já no dia seguinte, pois não se sabe o que virá a seguir. É um mundo onde tudo é precário: o emprego, o dinheiro, a comida, a casa, as pessoas com que se partilha a casa, os afectos, as famílias. Aqui, raras são as pessoas que têm uma vida estável, ainda que com sacrifício. Raros são os miúdos que chegam ao 9º ano e menos ainda são aqueles que aí chegam sabendo efectivamente alguma coisa. Raros são aqueles que se preocupam com o futuro, que a maioria assume já como previamente definido de tal forma está plasmado no que encontram todos os dias diante dos seus olhos.

Mas uma das coisas que, invariavelmente, mais me marcam, é a enorme disponibilidade dos nossos alunos. A facilidade com que estabelecem pontes com um mundo completamente estranho para si, a facilidade com que abdicam  do conforto, que normalmente consideram fundamental, a facilidade com que dormem no chão, tomam um duche gelado e lavam loiça atrás de loiça e limpam casa de banho atrás de casa de banho, é impressionante. Tenho a convicção profunda que se fossem visto pelos seus pais eles ficariam chocados: uns porque não andaram a criar filhos para isto, outros porque não pensavam que os filhos fossem capazes de tanto!

É também a eles que devo a minha vontade de ir, todos os anos, às colónias.

20130704

Olhadela

Poder acordar bem cedo, caminhar por entre as árvores tendo como fundo o barulho do mar e o canto dos pássaros é um excelente motivo para dar Graças.  Se sou acolhido por uma manhã esplêndida no seu brilho, na sua cor, no seu silêncio recheado de sons naturais, as Graças ganham uma nova razão de ser. Se me encontro com as memórias de uma colónia que agora termina e que não podia ter corrido melhor, as Graças encontram a vida vivida que as devem justificar. Se, ao mesmo tempo me preparo para a colónia que hoje vai começar, e que prevejo com maiores dificuldades, as Graças ajudam na superação.  Se, enquanto faço estas viagens, dentro e fora de mim, me deparo com um inesperadamente belo espaço de oração, as Graças encontram o seu lugar de louvor. Resta-me, então, saber agradecer todo o amor.

Obrigado, meu Bom Pai.

Bambora

  Não é estranho que nos digam que «ser homem é muitas vezes uma experiência de frustração». Mas não é essa toda a verdade. Apesar de todos ...