20130130


Um dos meus problemas é que me espanto com demasiada facilidade. Na internet, então, pareço um puto no Bazar Paris (nem sei se ainda existe) que arregala os olhos a cada momento com a quantidade e a qualidade de artigos, estudos, fotos, filmes, com maior ou menor profundidade, com maior ou menor sabedoria. No princípio, nem conseguia sequer separar o trigo do joio. Com os blogues, então - que demonstram a imensa qualidade de muitas pessoas que desconhecemos, principalmente quando as comparamos com muitas daqueles que vemos nas televisões - lia tudo o que apanhava, cortava e colava, coleccionava, acumulando textos que nunca teria tempo para ler na íntegra, repetindo aquilo que fizera toda a minha vida com livros e música. Desde que me lembro que tenho livros reservados para ler na velhice e música para ouvir num tempo que nunca chegará.

Apenas fui percebendo esta minha ânsia guardar coisas quando vi os miúdos das colónias a açambarcar a comida que nunca conseguirão comer. Apenas percebi esta vontade, quase indomável, de puxar tudo para mim, de guardar tudo, de açambarcar tudo, de encontrar como que uma garantia, uma segurança, em coisas que não me davam segurança nenhuma quando me revi, como se de um espelho se tratasse, naqueles putos traquinas, reguilas, que pedem uma borracha e um lápis mal chegam ao Centro ainda que saibam que não irão precisar deles, que olham para os iogurtes e as bolachas que estão a ser distribuídos temendo que não chegue para eles, ainda que nem sequer gostem dos seus sabores. É uma ânsia de ter, completamente desligada do usufruir.

Uma das coisas boas que Ramalde teve na minha vida foi que passei a entender-me melhor. E passaram a entender-me melhor, também. Porque estas coisas colam-se-nos à pele. Podemos controlá-las, podemos torneá-las, podemos - com sorte - até esquecê-las, fazer de conta que não existem, mas estão lá e saltam cá para fora quando menos se espera.

20130129


Ando a saborear, lentamente, de há uns tempos para cá, um livro que me caiu no colo: Jesus, CEO, de Laurie Beth Jones. Tem como sub-titulo "Como usar a Sabedoria da Antiguidade para uma Liderança Visionária". Todos os dias forço-me a ler apenas um capítulo, que são muito curtos, e a percorrer o dia seguinte com as perguntas que a autora coloca no fim de cada capítulo. O livro não tem muitas novidades, nem o pretende, mas tem sobretudo uma sistematização dos olhares de Jesus que me interpela porque é muito prática, muito voltada para o aprender a ser e a fazer para os outros.

Entre uma imensidão de outras coisas, aprendi com os meus filhos que é-nos muito útil voltarmos às bases. Que podemos saber mil e uma coisas, conhecer uma determinada área na profundidade, sermos verdadeiros especialistas, mas que, justamente por causa disso, é muito bom termos que aprender a explicar as coisas simples aos simples. E tremendamente difícil. Explicar de forma simples algo que a vida nos tornou complexo é um exercício de humildade que nos ajuda a descer do pedestal e a redescobrir o nosso lugar.

Este livro faz-me isso. Não utiliza as teologias complexas, que me fascinam mas me afastam da vida, mas volta-se para a vida concreta, vivida, do dia a dia. Hoje ando a passear por um capítulo que tem como título "Ele não pontapeou a Jumenta". Fantástico!

20130122


"É engraçado! Porque fala sempre dos livros de uma forma esquisita? Mastigar as palavras, saborear as histórias, viajar pelos livros..."

Isto foi-me dito hoje mesmo no Clube de Leitura, por uma miúda do sexto ano e deu-me um gozo enorme. No Clube temos enveredado por uma série de caminhos que eles normalmente não percorrem: elaborar pistas secretas a partir de um texto de uma revista, visitar a feira do livro só para observar a forma como as pessoas escolhem (ou não) os livros, enviar-me uma notícia que tenham lido no primeiro dia deste ano, tudo serve de pretexto para os tentar agarrar à leitura, para os fazer sentir que ler é bem mais que somar letras e palavras e páginas.

Respondi-lhe que assim como a comida vem para dentro de nós para nos dar energia, um livro bem mastigado, bem saboreado, sem ser lido à pressa, vem para dentro de nós para nos ajudar a ser o que somos. São conceitos que eles não aprendem nas aulas, com muita pena dos meus colegas professores, que têm que dar a parte chata (mas fundamental) da matéria. Eu aproveito a ausência de obrigatoriedade para que eles possam encontrar nos livros os amigos que ainda hoje me acompanham. É (apenas) um dos (muitos) privilégios do meu trabalho.

20130117

"Talvez devêssemos ouvir Mozart juntos"


Sugere Tolentino Mendonça, Mozart como um dos caminhos para a redescoberta na amizade. Pessoalmente, prefiro Bach, mas não foi isso que me assaltou o pensamento.

Provavelmente de forma abusiva, veio-me logo à cabeça aquela cena de uma das melhores séries que já vi vária vezes e levei os meus filhos a ver: Band of Brothers.  Dessa vez, quis ver toda a série com os meus filhos. Tratando-se de uma série da Segunda Guerra Mundial, ao fim de dois episódios as raparigas desmobilizaram. Mas os rapazes não e vimos, juntos, todos os episódios pouco antes do Natal.

Durante o episódio em que os aliados descobrem, atónitos, o campo de concentração nazi, aparece várias vezes um conjunto de cordas a tocar uma peça de Beethoven sobre os escombros da vila destruída. Como no Titanic, a banda continua a tocar no meio da catástrofe, enquanto o regime se afunda.Como se trata de uma série e não de um filme, os episódios dão-nos o tempo necessário para nos questionarmos várias vezes e esse mesmo episódio anda cá por dentro desde que o vi na primeira vez, já lá vão alguns anos. Como foi possível que um povo assim, tão culto, tão mergulhado na música, na filosofia, na ciência, na arte, conseguiu escolher alhear-se ao sofrimento alheio, conseguiu escolher não ver, não reagir, não se indignar? Nesse mesmo episódio os aliados, no dia seguinte à descoberta do campo de concentração, forçam os habitantes da vila a limpá-lo, a remover os corpos mortos espalhados por toda a parte, a encarar a realidade que eles, se não construíram, permitiram que fosse construída junto de si.

Neste, mais que noutros episódios da série, o nosso silêncio enquanto assistíamos gritava.

Há muitas formas de educarmos os nossos filhos.
Deixar que o silêncio fale é apenas uma delas.
Fundamental.

20130110

A ajuda humanitária é agir e testemunhar. É, em primeiro lugar, uma questão de homem a homem, de mulher a criança perdida, de jovem a velho isolado, de reformado a desempregado desesperado. De humano a humano...

Abbé Pierre, 1993

Foi uma das coisas que mais me chocou em Moçambique: "Sabe, Pai Zé? Aqui só vive bem quem pertence ao partido do governo ou a uma ONG. Os outros vivem do que sobra." Lembro-me que estávamos a vir do Hospital com o Miguel e, como sempre, conversava com o Teófilo, que me ia mantendo a par de como as coisas eram em Quelimane. 

No entanto, não precisava que ele mo tivesse dito. A ostentação das carrinhas com um qualquer símbolo de uma ONG na porta, a atitude vergonhosamente colonial de muitos dos funcionários das ONGs que se servem da população como se fossem carne para canhão, entrava-me pelos olhos dentro desde que lá chegara. Lembro-me da única vez que almoçamos fora, no Hakuna Matata, em Zalala, em que chegaram duas pickups de ONGs e os seus ocupantes, brancos, que viajavam dentro da carrinha, saíram e foram almoçar deixando os seus acompanhantes, pretos, que viajavam na caixa aberta, ao sol, à sua espera como se fossem animais de estimação. 

Foi também uma das mais duras e surpreendentes contestações: há muita gente que ganha muito dinheiro a fazer "voluntariado" por aqueles sítios. E se não fossem aqueles homens e mulheres que lá estão em missão, entregando-se ultrapassando os seus próprios limites, as coisas seriam ainda bem piores. 

Fazer as coisas tendo a pessoa como ponto de partida mas devidamente alicerçados pela fé tem disto: quando são mal feitas são muito mal feitas, mas quando são bem feitas, o bem que fazem é inultrapassável. É que não é uma questão de dinheiro, mas de entrega pessoal. Trata-se de servir e não de se servir. 

O que é facto é que desde que cheguei nunca mais consegui contribuir para uma ONG. 

Prefiro fazê-lo aos missionários.

20130107


As circunstâncias da minha vida levaram a que fosse Jesus a vir ter comigo. Por volta dos meus quinze anos, servindo-me do meu proverbial (e precoce) encanto pelos elementos do sexo feminino, Ele descortinou um meio para me desviar do caminho que estaria traçado. Como a minha casa estava inserida num Bairro Social, tinha por companheiros de aventuras (grandes tempos!) os amigos do Bairro. A partir de determinada altura convivi por isso frequentemente com droga, prostituição, roubos e coisas similares. Se nunca nelas participei, a verdade é que também até àquela altura nunca as condenei porque me pareciam quase normais.

Foi neste contexto que, perto de minha casa, começou a ser construída uma capela, que era para os outros, para os betinhos que lá iam e que eram gozados por nós. No entanto, sempre que havia ensaios, ou eucaristia, passava no cimo da rua uma miúda muito gira por quem me embeicei. Rapidamente comecei a ir à Capela para a conhecer e com isso fui descobrindo um mundo inteiramente novo, onde me encaixava na perfeição e onde tive a sorte de ser acompanhado por amigos extraordinários naquela que foi a primeira das fases cruciais da minha vida desde que sou gente. Entretanto a miúda gira deu-me com os pés (casou com um amigo meu e hoje somos amigos) e eu fiz o meu percurso.

A minha experiência é assim a de um Jesus que arranja forma de Se encontrar connosco e a quem apenas temos que abrir as portas para que isso aconteça. Provavelmente de forma errada, faz-me por isso alguma confusão quando as pessoas confiam mais nas coisas dos homens que nas coisas de Deus. Quando pensam que são necessárias condições muito especiais para que se possa rezar: um clima de silêncio, uma posição confortável, um musiquinha de fundo... Acredito que a única coisa necessária é abrirmos espaço em nós próprios para que Deus possa entrar. Por isso o silêncio interior é, creio eu, o melhor caminho: eu calo-me para que Deus possa falar, eu falo para que possamos ambos dialogar. E este silêncio interior depende muito mais da minha "fome" de Deus, da minha "sede" de encontro que das condições que me são exteriores.

Voltarei a isto...

20130105

Alain-Laboile-Reflexion-Photography10

Não estou a atravessar uma fase particularmente feliz. Não tanto o eu total, mas a parte de mim que vive voltada para fora não está a atravessar uma fase particularmente feliz. Irrito-me com demasiada facilidade, agarro-me em demasia às minhas próprias ideias, e, pior que tudo - no que constitui o meu verdadeiro sinal de alerta - não me consigo aperceber sozinho que isso acontece. Preciso que o meu grilo falante - que seria de mim sem o meu grilo falante! - me alerte. E isso é terrível para mim, Ainda ontem, numa das minhas reuniões, ela me disse que isso tinha acontecido. E eu nem me apercebi.

Não tenho dificuldade nenhuma em escolher ser feliz. Escolher, sim, porque acredito que temos a capacidade de escolher a forma como vivemos os nossos dias. Basta apelar ao que de bom nos rodeia, basta educar o olhar, dar importância ao que nos puxa para cima e relegar para segundo plano tudo o que nos limita. Um pouco como quem varre para debaixo do tapete. Isso não elimina a sujidade, claro, mas permite que a sujidade não invada o nosso quotidiano. Então respiro fundo, olho à volta, sorrio, e preparo-me para absorver o imenso que a vida tem de bom. Então para quem vive os seus dias rodeado de gente genuinamente boa, como tenho a sorte de viver, este torna-se um processo muito fácil de concretizar.

No entanto, nem sempre tenho a capacidade de o fazer. Quando estou mais ocupado, mais envolvido no ruído dos afazeres do quotidiano, quando estou mais cansado, acabo por me ir afastando do que quero ser. Os meus dias vão-se sucedendo em catadupa, numa sofreguidão de vida que, em vez de me fazer chegar, me afasta, me remete para a espuma dos dias, me força a manter-me à tona, longe das águas profundas que são, indiscutivelmente, o meu habitat natural. Ainda ontem verifiquei, através do que fui escrevendo nestes últimos tempos, como por vezes posso ser amargo. E eu detesto ser amargo!

É nestas alturas que ela chega e, porque me conhece melhor que ninguém, porque me ama como mais ninguém, me desinquieta, me questiona, me põe em causa, criando em mim a necessidade de eu próprio o fazer, naquilo que constitui, para mim e para nós, o princípio do retorno à normalidade.

É por estas e por outras que um casamento, uma relação, tem muito que se lhe diga.
E é também por estas e por outras que anseio por Taizé.

20130102


Em dois dos maiores diários fomos submetidos, nos últimos dias do ano passado, a dois olhares da esquerda: Carvalho da Silva no DN, Jorge Sampaio no Público. O primeiro com um olhar muito mais radical, como a sua vida, o segundo com maior qualidade, como eu, pessoalmente, lhe reconheço. Mas são sempre dois olhares da esquerda. 

Se, por princípio, o que a esquerda é, muitas vezes, o alvo predilecto do meu próprio olhar, é indesmentível que vemos nos entanto coisas muito diferentes. O meu olhar está calibrado pela Doutrina Social da Igreja, essa coisa que para muitos católicos é perfeitamente desconhecida, mas que eu tenho como uma das bases sólidas do meu agir. é um olhar que coloca a humanidade e a dignidade da pessoa, de qualquer pessoa, acima de qualquer ideologia, de qualquer discurso de boas intenções, de qualquer programa político. é um olhar que, tendo necessariamente em conta a condição específica de cada homem ou mulher, promove as condições para que possam ser, eles próprios, a restaurar as condições da sua dignidade, por si esquecida algures no tempo. 

O meu olhar DSI tem muitos mais pontos de contacto com o olhar da esquerda que com o da direita. Por isso nunca foi difícil para mim trabalhar com pessoas da esquerda. No entanto, qualquer olhar que tenha a sua origem no olhar de Jesus tem que ser inclusivo, E aí é que por vezes as coisas se complicam entre nós. Eu não acredito que o dinheiro sirva para aferir o que quer que seja de alguém. Mas se não o serve para separar quem tem menos, também não pode servir para o fazer com quem tem mais. E esse é um erro recorrente da esquerda.

Sempre acreditei que não se pode mudar nada nem ninguém sem sujar as mãos. Que não se pode alterar o rumo de um barco que avança, desgovernado, num rio, gritando a partir das margens mas que é necessário ir lá para dentro, correr riscos, fazer parte da tripulação viver os seus perigos, sentir os seus medos, e depois, aí sim, tentar alterar o rumo das coisas. 

É sempre melhor olhar por dentro. É disso que a esquerda se esquece muitas vezes. E a direita, já agora. Mas isso são contas de outros rosários.

Bambora

  Não é estranho que nos digam que «ser homem é muitas vezes uma experiência de frustração». Mas não é essa toda a verdade. Apesar de todos ...