20241130

 Ontem tive encontro do CoMTigo. Não saí satisfeito comigo. Não estava claro o percurso, de onde iria partir e sobretudo onde queria chegar. E quando os miúdos começaram a colocar as suas questões à procura de respostas eu patinei, transferi a minha falta de clareza para eles. Agora mesmo perguntava-me porque é que isso aconteceu. Não costumo patinar assim, não costumo não ser claro em mim para poder ser claro para os outros. Diria até que essa clareza, esse mastigar para poder alimentar é uma das minhas melhores capacidades. E percebi: eu rezei pouco isto. Certo, não tive tempo para caminhar com isto na cabeça, estive mental e espiritualmente envolvido noutras lides, tudo boas justificações, mas que são apenas isso: justificações. O que importa mesmo é que fui, de certa forma, sobranceiro, confiei excessivamente nas minhas capacidades, no trabalho sem rede, no desenrascanço. E eu não posso não rezar o que vou dizer, o que vou transmitir, o que vou rezar com os outros. E rezar o que vou dizer é pensar nisso sob o guarda chuva da fé, é deixar que acampe cá por dentro e faça caminho, é permitir que o Espírito me trabalhe e me conduza, torne as coisas mais claras em mim para que eu as possa tornar mais claras para os outros. Ontem faltou-me isto. Não acaba o mundo. Mas não pode voltar a acontecer.

20241128

Por pouco ficava encurralado. A intenção não era má, talvez nem fosse consciente, mas tentaram encurralar-me. A propósito de uma discussão que tem tanto de atual como de superficial e estúpida: a da cor dos boletins de saúde. A pergunta que me colocaram era mais ou menos esta: se isso é assim tão importante, mais importante ainda é o nome que se dá à criança. Então não se dê nome para que ela o possa escolher quando quiser. Era mais ou menos isto.

Não dei seguimento. Neguei-me a seguir com a discussão. Não que a questão de fundo não seja importante – acredito que seja motivo de sofrimento para muitos – mas porque, se é importante, deve ser discutida seriamente. E só se discute seriamente com quem não está – voluntariamente ou não – entrincheirado. 


Discutir é dirimir argumentos. E isso apenas é possível com quem não está impermeabilizado, enquistado em si mesmo, mas põe a hipótese de não saber tudo. Por isso, não discuto com quem apenas tem certezas. São extremistas. Discuto com quem, como eu, anda sempre à procura. E que, ainda que no calor da discussão se diga disparates – dizem-se sempre disparates – permite que o que foi dito faça caminho dentro de si. E que tenha consciência que cada conclusão é passível de nova discussão. 


Hoje não me deixei encurralar. Pura e simplesmente disse que os termos da discussão eram tolos e que não discuto com tolos. Correu bem, como podem calcular . Paciência.

Mais um GEP. Mais uma consciencialização que somos de etapas, não de destinos. E como é importante termos essa consciência que somos etapas! Sobretudo se nos impedir de ficarmos ancorados ou na dor ou na euforia do sucesso. Ambos são momentos que se pretendem passageiros, não são a vida comum do dia a dia. Se entendermos a dor e a euforia como uma etapa sabemos que amanhã as coisas serão diferentes e que será retomada a normalidade. É importante, então, viver o momento - chorar quando é de chorar, celebrar quando é de celebrar - mas avançar. Avançar sempre. Pôr os pés no chão, encarar a realidade e fazer dela o nosso ponto de partida rumo a uma nova etapa. Sim, o rumo é importante. Não somos da deriva.

20241127

Há expressões que não deveriam constar do meu vocabulário. Expressões como "nunca mais" ou "para sempre" pura e simplesmente não deveriam existir. Porque são sempre ditas num contexto, numa circunstância, numa situação emocional que tem tudo para ser irrepetível. O contexto muda mas o peso dessas palavras, uma vez ditas, permanece. São expressões que doem porque assim que são ditas implicam perda. O que se perde porque "nunca mais"; o que se deixa para trás porque é "para sempre". E são ilusórias. Ambas. Servem para sossegar o espírito. Por isso, quanto mais inquieto sinto o meu espírito, maior a veemência com que são por mim utilizadas. Nunca levianamente, conheço-lhes bem o peso e a exigência. Mas sempre com algum grau de mágoa, ainda que silenciosa. Porque amordaçada. Emudecida. Por isso há recuos, também magoados, que me deixam-me um amargo de boca que seria absolutamente evitável se estivesse sempre consciente que a vida é tudo menos linear. Não é linear. Eu sei que não é linear. É muito mais como as ondas do mar, num vai e vem constante, que umas vezes é suave enquanto noutras arrasta tudo o que apanha à frente. A mim, principalmente. 

Primeira lapalissada: a dor dói. Não há dor que não doa. Não há dor que provoque alegria, ou risos, muito menos gargalhadas. Não há dor que seja felicidade, ou agradável, nem sequer bem disposta. Por isso não a procuramos, por isso a evitamos, tentamos fugir dela a sete pés. Segunda lapalissada: não adianta fugir. Não adianta escondermo-nos da dor, esconde-la de nós próprios, fazermos de conta que não existe, imaginarmos uma qualquer outra realidade onde ela não esteja. Quando a dor vem, faz-se sentir. Muitas vezes sem se fazer anunciar, sem avisos prévios, sem preparação, sem conjecturas. Quando chega, é. E quase sempre é, impedindo que qualquer outra coisa seja. Quando dói, e dói mesmo, dói que se farta. Por isso, o melhor mesmo é acolhe-la. Sem reservas nem pudor. É para sofrer? Sofre-se. É para chorar? Chora-se. É para rasgar vestes? Rasga-se. Terceira lapalissada: a vida não é dor. Não é para ficar por aí. Então, acolhe-se a dor, vive-se o momento, mas avança-se. Lentamente, se possível com a ajuda de alguém - é fundamental deixarmos-nos ajudar - vai-se colocando os pés no chão e parte-se dai: da realidade, por muito nua que seja, por muito crua que seja, por muito dolorosa que seja. Quarta lapalissada: a dor não se esquece. Quando a coisa corre bem, identifica-se a sua origem, cataloga-se, arquiva-se, sabendo que na fragilidade ela se encarrega de aparecer. Com intensidades variáveis, mas está sempre lá. Fica sempre lá. Se tiver sido corretamente identificada, devidamente catalogada, vale pelo que é: aquela dor. Não cresce em nós, não provoca angústias, medos das possibilidades do futuro: é aquela, tem nome próprio, tem lugar próprio, tem circunstâncias próprias e, ainda que tudo se conjugue para que se volte a manifestar, já a conhecemos. E porque a conhecemos já sabemos lidar um pouco melhor com ela. Faz parte de nós. Tão parte quanto os momentos felizes. E podemos avançar.

20241126

No outro dia alguém disse-me que me lia. E que gostava de me ler. Assusta-me sempre. Nunca escrevo para ser lido. Escrevo para escrever. Para organizar as ideias, os sentimentos, para me confrontar comigo. Para tentar descortinar um qualquer sentido no desejo quase secreto de descobrir esse sentido em mim e no que faço. Às vezes resulta. Às vezes descubro o Ahhh!!! por entre as palavras que vão aparecendo no ecrã do computador. Um Ahhh!!! tão genuíno que às vezes desconfio que essas palavras não foram escritas por mim mas por um dos vários eus que me habitam (como eu entendo o Dr Jekyll and Mr Hyde!) Mas lá está. Para que isso aconteça não posso estar preocupado com a construção das frases, com a correção linguística, com as normas a que devo obedecer para que a coisa seja bonita. Não é para ser bonita. Ou clara. Muito menos para quem lê. É para escrever. Só isso. Por isso nunca regresso. Nunca releio. Nunca corrijo para além daquilo que o computador sublinha a vermelho - sublinhasse ele a azul e provavelmente ficaria orgulhosamente evidenciado. 

20241120

Chegou aqui a pedido institucional. Dez anos, e a vida já num emaranhado de complicações: maus tratos, impedimento judicial de aproximação dos pais, mudança de lugar, de casa, de escola... Como é possível! O nosso primeiro embate não foi famoso. Não reagiu bem a mim. Não reagi bem a ele. É normal. em casos destes o equilíbrio é tudo menos fácil: fica algures entre o mimo, o cuidado e a exigência. É um triunviriato precioso que precisa ser administrado com parcimónia para que nenhum nem ninguém se perca algures no caminho. Passado o primeiro embate, com muitos mais gestos que palavras, lá nos fomos entendendo. A custo, muito devagar, mútua cedência aqui e acolá, e vamos fazendo caminho. Hoje, pela primeira vez, falávamos um pouco mais e ele olhava para mim com aquele ar que conheço bem. Sorri e disse-lhe: sabes que gaguejo, certo? Ele nem pestanejou: não tem problema,stor. Eu percebo bem o que diz.

Acredito que todos somos habitados por uma humanidade que o tempo e a vida muitas vezes se encarrega de distorcer. Infelizmente, conheço os suficientes para saber que aos dez anos essa humanidade se vai esboroando à força de pancada, de maus tratos, de abandonos. Mas por vezes percebo que em alguns casos - alguns deles bem improváveis - vai permanecendo, contra todas as evidências, contra todas as expectativas, contra todas as pancadas. E essas vezes são sempre motivos para sorrir. E dar Graças pelos milagres que todos os dias acontecem. Mesmo aqui. Ou sobretudo aqui.

20241106

 0751 Viver o despojamento que Jesus viveu é viver de acordo com uma convicção profunda acima de tudo. A convicção profunda de Jesus era a do Reino dos Céus: somos filhos amados pelo Pai. Esta era a sua convicção e foi em nome dela que viveu e morreu. Viver assim pressupõe uma escolha profunda e uma certeza capaz de combater todas as noites escuras. E Jesus também as teve, como no Getsémani, também rezou para não ter de as enfrentar e também se resignou a ter de o fazer. Até nisso partilhou da nossa humanidade. Uma humanidade em que o único verdadeiro privilégio é ser filho do Pai. Se até a mim, que tento viver mergulhado na fé, o sentido de tudo isto se me escapa tantas vezes, como não há de escapar àqueles para quem a fé não é mais que uma vaga ideia? Sobretudo quando o despojamento que nos é pedido nos toca naquilo que nos é mais fundamental: a necessidade absoluta de sermos reconhecidos. Note-se como também nisto a vida e morte de Jesus foi absolutamente paradigmática: Jesus só fez o bem e até pelos seus (exceção feita à Mãe, a Maria Madalena e a João) foi abandonado. E não foi só por medo, mas pela certeza que o reconhecimento de que seriam alvo - seria tudo menos positivo: “Nós pensávamos que…” diziam quando regressavam a Emaús. Quando perceberam que afinal não havia lugares à Sua direita mas perseguições, apressaram-se a negá-lo. É deste despojamento que nos falam as leituras do próximo domingo. O despojamento da viúva de Sarepta, o despojamento do sacerdote que apenas serve, o despojamento da viúva anónima que entrega o seu único garante de sustento - e de existência social. É este o despojamento que eu não consigo ter. Na verdade, se não tiver os meus do meu lado, o que vale a pena?

20241105

Deus está no leme poderia ser uma boa alegoria para a minha vida. E assim evitar o pânico. Ainda esta noite acordei às 4 e tive dificuldade em voltar a adormecer por causa do pânico provocado pela imensidão de coisas que tenho de fazer. E tudo para ontem! Mas preciso acalmar, serenar-me interiormente e confiar. Nada tenho de fazer que não seja capaz de fazer. Essa é a constatação do meu limite, da minha vulnerabilidade, da minha humanidade. Eu sou limitado. A minha medida é a do possível. Do irremediavelmente pequeno. Desde que por Amor.

 A propósito de Lc 14, 15-24: a única coisa que posso fazer é convidar. E não posso fazer outras coisas: ficar zangado se não participam; duvidar das suas justificações; deixar de convidar. O convite deve existir sempre, o acolhimento deve existir sempre, o aliviar da carga da culpa deve existir sempre. Mesmo sabendo que, se alguém escolhe não participar, ficarei e ficaremos todos mais pobres. Mas não sei, de todo, as dinâmicas familiares de cada um. Não sei de “estás sempre fora de casa”, não sei de “preciso de ti aqui”, não sei de “estou tão esgotado”, não sei de “se hoje for, rebento”. Não sei, não posso saber, e, francamente, não adiantaria de nada saber. A não ser para consolar. E para dizer “fica. Sem problema. Não faltarão oportunidades”

20241101

Acabo de chegar do cemitério. É tradição, cá por casa. Anos houve em que me custava imenso estar lá de pé, no meio de uma multidão da terra, durante a eucaristia ao ar livro. Á medida que os anos vão passando, a sensação é que me vai custando menos. Antes, junto à campa, éramos imensos. Agora já passaram bastantes para o outro lado. Ou melhor, para uns palmos mais abaixo. Mas continuamos a estar juntos neste dia. No final, o padre disse para rezarmos pelos que tínhamos diante de nós. Não consegui deixar de sorrir. Acredito muito que o contrário acontece: são os que estão junto do Pai que rezam por nós, pela nossa cegueira, pela nossa apetência, persistência e competência para a asneira. Não precisam que rezemos por eles. Parece-me sempre muito esquisita esta ideia de um Deus que precisaria que rezemos pelas almas para que Ele se lembre delas. Esquisita e muito contra tudo aquilo que Jesus testemunho: por acaso o Pai se esquece do Seu filho? Enfim! São coisas mais da mentalidade humana, viciada na recompensa, que do Amor. Talvez seja por isso que, pelo menos até aqui não temo a morte. Porque confio inteiramente no amor do Pai. Se assim não for, se estou à espera que sejam os meus méritos a fazer alguma coisa para me garantir a salvação, o melhor é despachar já a coisa: quanto menos viver mesmo asneiras faço. 

Bambora

  Não é estranho que nos digam que «ser homem é muitas vezes uma experiência de frustração». Mas não é essa toda a verdade. Apesar de todos ...