Para além de todas as teorias, de todas as homilias, de todas as liturgias, há duas atitudes fundamentais de Jesus que me levaram e levam todos os dias a tentar aderir, de corpo e alma, à fé cristã: acolher e perdoar. Nas turmas onde tenho testemunhado algumas destas coisas de viver com Deus dentro refiro sempre a profunda humanidade de Jesus. Sim, para mim, Jesus é a imagem do Pai, é o Seu filho, é aquele que une céu e terra, no sentido em que, sendo Deus, vem ao nosso encontro e, sendo homem, leva-nos ao encontro com o Pai. No entanto, para alguns daqueles a quem eu falo, dizer isto é dizer pouco mais que nada. Por isso falo-lhes da humanidade de Jesus, da maneira como Ele sentava e conversava, no olhar que fazia incidir sobre as pessoas que habitavam as margens a quem, invariavelmente, fazia recordar uma dignidade que todos davam como perdida. A começar pelos próprios. E recordo-lhes como isso é algo que todos podemos fazer. Não precisamos de ter fé, não precisamos de ter grandes teorias nem de grandes questões. Precisamos, sim, de reaprender a olhar para quem temos diante de nós, qualquer que seja a sua e a nossa circunstância, e nos recordarmos - e fazermos recordar - da sua dignidade. À fé chegar-se-à noutras alturas, porventura mais tarde, aquando da interrogação de onde provém tamanha dignidade, ou daquilo a que um padre em Taizé sabiamente chamava "dor nos ossos", referindo-se às grandes questões que nos abanam até ao tutano quando a vida nos põe à prova. Até lá, não nos fará mal nenhum recordarmos esta verdade simples e absolutamente decisiva para que o Reino possa ser já hoje, aqui e agora, ainda que não na sua totalidade: todas as pessoas têm, em si, conscientemente ou não, uma dignidade que lhes é inalienável, qualquer que seja a sua circunstância, qualquer que seja a sua história de vida, quaisquer que sejam as consequências dos seus atos. E muitos vezes só precisam que alguém lhes recorde disso mesmo. Eu que o diga!
20220330
20220329
O medo
Certa manhã, ganhamos de presente um coelhinho das índias. Chegou em casa numa gaiola. Ao meio-dia, abri a porta da gaiola. Voltei para casa ao anoitecer e o encontrei tal e qual o havia deixado: gaiola adentro, grudado nas barras, tremendo por causa do susto da liberdade.
20220324
Hoje, numa turma, tive dificuldade em fazer-lhes perceber a importância do sonho. Talvez porque são miúdos imersos numa (demasiado?) boa realidade, feita de objetivos claros, de percursos há muito delineados, onde não há grande lugar para devaneios. Muitos deles são miúdos já com muito pouco de miúdos, tal é a carga que lhes é imposta por eles próprios e pelos seus pais e pelas elevadíssimas expectativas que uns e outros têm para as suas vidas. Eu olho para eles e tenho alguma dificuldade em perceber. Naquela idade não deveriam ainda levar as coisas demasiado a sério. Deveriam ser capazes de arriscar, de viver a felicidade ao máximo, de aprender que as noites podem ser infinitas e os amanheceres irrepetíveis na melhor das companhias, com todos os sentidos bem despertos para poderem usufruir o imensamente belo e o maravilhosamente novo, tão próprios da idade que têm. E no entanto... olho-os e a muitos deles falta vida, demasiadamente preocupados com os testes e com as matérias e com as notas e com as explicações e com aquilo que os pais vão dizer quando virem o 19,2 quando a expectativa era, pelo menos, um 19,7. Falei-lhes do sonho e ficaram a olhar para mim, com necessidade de explicações extra que os fizessem perceber o que é isso de sonhar. Afinal a realidade que habitam é, aparentemente, tão boa, tão cheia de dinheiro, tão cheia de lugares da moda, de roupas da moda, de bebidas da moda, de pessoas da moda... vão sonhar para quê? vão sonhar com quê? para que realidade? com o que sonha quem acha que nada lhe falta?
Que mundo estamos nós a criar?
20220323
Um dos livros que ando a ler, Ikigai, de Ken Mogi, refere a importância do saber estar "aqui e agora" como um dos pilares fundamentais para a felicidade. Eu gosto muito desse aqui e agora, desse carpe diem, dessa capacidade de aproveitar cada momento como se fosse o último, como se nada mais importasse. Naturalmente, não pode ser tomada por si só, como se não existisse continuidade como se a vida não tivesse ou não deixasse lastro. O saber viver aqui e agora é importante quando devidamente enquadrado num percurso de vida onde cabe a memória grata do caminho percorrido, das pessoas que nos habitam e nos permitem que nelas habitemos. E a esperança, essa quase ingénua confiança que a vida nos reserva coisas boas. O aqui e agora não implica, por isso, alheamento ou inconsciência, mas o louvor. Pela oportunidade de ser feliz, pela capacidade de viver a vida até ao tutano, intensamente, completamente, sem dar lugar à ressaca da culpa do dia seguinte. E sempre na forma partilhada. Porque quem ama, quem se sente amado, nunca se sente verdadeiramente perdido, nunca se sente verdadeiramente só. Ainda que esse aqui e agora seja usufruído sozinho.
20220316
Não tenho desculpas. Não me adiantam justificações. Não é por falta de interesse, ou de conhecimento, ou de vontade. Começo os meus dias a rezar, a procurar na Palavra do dia o sentido, a motivação, o desejo, não para viver mas para viver melhor, para ser melhor. Invariavelmente, chego ao fim do filme do dia com um sabor amargo na alma: aqui e ali, num ou noutro momento, não consegui, não fui capaz. E nem sequer é um sentimento vago de dever ser melhor, de conseguir ser outro. São momentos definidos, palavras concretas, conversas ditas e escutadas, atitudes testemunhas e exercidas, no concreto do meu dia, da minha vida, daquilo que vou sendo, com os outros. Diria que este amargo sabor a pouco é profiláctico. Que me restitui ao lugar a que pertenço, que me impede de deixar ainda mais a desejar, que é um incentivo a que eu nunca deixe de, pelo menos, tentar, de conseguir ser um bocadinho melhor a cada dia que passa. É azeda, contudo, esta sensação de não chegar. É cansativa esta constante tentativa, este constante propósito de tentar, ainda assim, chegar. Pelo menos já não arranjo desculpas, já não invento justificações. Pelo menos já vou conseguindo olhar e perceber, com alguma clareza - por vezes com muita dureza - onde fiquei aquém. Pelo menos tenho a sensação que estou a caminho. Num caminho que apenas tem princípio - a cada manhã que desponta - mas a caminho. Será apenas isso o que importa?
20220314
De entre os inúmeros aspetos da minha personalidade que, pudesse eu, seriam rifados com uma alegria imensa, há um que me mete sempre em trabalhos. Não sei bem porquê, mas não sou muito dado a unanimidades. Quando está toda a gente de acordo, com um olhar monofocado sobre o que quer que seja, eu descubro-me a, instintivamente, procurar a falha e a alterar a forma como eu vejo a coisa. Nesta altura com a guerra na Ucrânia, passa-se um bocadinho isso. Claro que sou contra a estupidez do Putin, claro que é uma agressão bárbara, claro devemos fazer tudo para acolher os refugiados, claro que estamos todos de acordo que nestas alturas quem se lixa é o mexilhão e é para ele, fundamentalmente, que devemos olhar e, sobretudo, acolher. No entanto, isso não me faz tecer loas nem à Ucrânia nem ao seu presidente. Nem me predispõe grande coisa a embarcar nas inúmeras campanhas de solidariedade que nesta altura abundam por esta europa fora. Por um lado por causa do excesso de emotividade - que me põe sempre de pé atrás nestas coisas; por outro, por insuficiência de racionalidade da forma de apoio. Mas isso eu até entendo: nós comovemo-nos com facilidade e, ainda que o efeito não seja totalmente cumprido, pelo menos é sinal que não estamos ainda inteiramente adormecidos. O que tenho mais dificuldade em entender é este preto e branco absolutamente distintos, este culpados e inocentes absolutamente claros, esta diabolização do Putin e glorificação do Zielisnki. Talvez seja porque a história já me ensinou à saciedade a não acreditar em homens providenciais. Talvez seja por saber que é "apenas" política. Talvez seja por saber que enquanto nos movemos pelas imagens da televisão, não ligamos puto ao que se passa noutro ponto do globo... ou ao fundo da rua. Não que isto nos deva impedir de acudir a quem precisa. Seja quem for. Mas porque não sou tão otimista que acredite que. logo que o fogo passe, voltemos a atenção para outra coisa completamente diferente. A começar por mim.
20220301
Quando fui para a faculdade estudar Ciências Religiosas, uma amiga fez-me um aviso que nunca mais esqueci: "Tem cuidado. Num curso desses ou a tua fé tem raízes e sai fortalecida ou corres o risco sério de a perder." Ao longo dos vários anos da faculdade tive sempre bem presente este aviso. Que se revelou verdadeiro. Quando estudava a História da Igreja, a Eclesiologia e outras disciplinas deste género, deparei-me com muitos acontecimentos nossos, da Igreja, que estavam bem longe de Jesus. E isso pode ser verdadeiramente perturbador. Afinal, eu estou completamente imerso na Igreja, faço parte dela, quero fazer parte da sua história, da sua realidade, e nem sempre o legado é aquele que eu gostaria que fosse. Recentemente, isso tornou-se gritantemente evidente com os inúmeros casos de pedofilia que ocorreram no nosso seio. Perante esses acontecimentos, só me resta a vergonha - que nem sequer é alheia mas também minha porque não me posso por de fora quando me é convenientemente - e o silêncio dorido e respeitoso por todos aqueles que sofreram. E, naturalmente, impedir que volte a acontecer. Mas nem tudo é mau. E com este Papa posso até afirmar que tudo é um pouco melhor. Confesso que não acolhi particularmente bem a sua chegada. Eu tenho um fascínio pela erudição - aliás, tenho um fascínio por tudo aquilo que eu sou incapaz de alcançar - e deliciavam-me as horas dedicadas à leitura de tudo o que saía do Papa Bento XVI. Adorava a sua batalha por recuperar o lugar do sabedoria católica junto dos meios eruditos, junto das faculdades e das ciências. E no início o Papa Francisco parecia-me um passo o sentido oposto, do simplismo, do superficial. E era, em parte. Na realidade, o Papa Francisco é um passo em sentido oposto ao que temos tido, mas apenas porque é um passo de regresso a casa. Por isso, à medida que o fui lendo e, sobretudo, fui testemunhando o desassombro com que nos faz regressar aos que habitam as margens e afronta os que se atravessam no caminho do evangelho, fui admirando cada vez mais aquele homem que não hesita nem revela medo. E fico genuinamente feliz quando vejo como são justamente esses que habitam as margens que valorizam mais as suas palavras e os seus gestos. Bastaria isso para ter a certeza que estamos de volta ao caminho certo.
Bambora
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