“ O Senhor disse a Caim: «Onde
está o teu irmão Abel?» Caim respondeu: «Não sei dele. Sou, porventura, guarda
do meu irmão?» O Senhor replicou: «Que fizeste? A voz do sangue do teu irmão
clama da terra até mim.”
Gen 4, 9-10
Volta e meia o mundo dá meia
volta e encarrega-se de nos colocar em causa. Pensamos que temos a vida ao
nosso dispor, como muito bem a entendemos. Escudados nas nossas certezas
absolutas, confiantes na tecnologia que carregamos nos bolsos, entendemo-nos
donos do nosso próprio destino, alegres possuidores da verdade, distintos
conhecedores do bem e do mal, pequenos grandes deuses a quem tudo e todos se
vergam à sua passagem. Espartilhados na nossa racionalidade, confortavelmente
instalados no conforto que tão arduamente fomos conquistando, esquecemos que à
nossa volta existe um outro mundo, pulsa uma outra realidade, que nada tem a
ver com a nossa, com a qual apenas nos deparamos quando estamos demasiado
preguiçosos para mudar de canal e não conseguimos virar a cara. Vemos
rapidamente, lamentamos rapidamente, esquecemos rapidamente, embrenhados nas
nossas próprias vidas e preocupações.
Mas volta e meia o mundo dá meia
volta e encarrega-se de dizer presente. Já não se passa do outro lado do mundo,
já não é assim tão distante a tragédia, já reconhecemos alguns daqueles lugares
- porventura até passamos por lá há pouco tempo! - e descobrimos que afinal as
pessoas se vão acumulando á nossa porta, desorientadas, perdidas, fugidas de
uma realidade que afinal não se passa apenas nos noticiários mas se vai
tornando mais visível, mais próxima, mais nossa. E estremecemos. Bem fundo de
nós, estremecemos. Porque intuímos que, pelo menos tão cedo, nada voltará a ser
como antes. Que, pelo menos tão cedo, não adiantará desligar as notícias. Que,
a não ser que fechemos os olhos, “eles, os outros”, estarão por aí.
É justamente esse o efeito que “eles,
os outros”, têm em nós. Destapam-nos, descobrem-nos, abanam as nossas pretensas
seguranças, as nossas convicções, e desinstalam-nos e questionam-nos e ao nosso
mundo e a tudo aquilo que tão laboriosamente nos empenhamos construir. E
confrontam-nos. Com as nossas escolhas, com as nossas perguntas, com as nossas
pequenas grandes questões para as quais temos que encontrar novas respostas. E
isso incomoda-nos, desinquieta-nos, impele-nos para fora do nosso quotidiano
tão rotineiro, tão conhecido, tão previsível, tão saboroso!
E é justamente essa a fresta pela
qual Deus nos interpela. E é justamente por isso que a presença dos “outros”
nos é tão fundamental! Porque Deus fala a todos, mas apenas os inquietos, os
desacomodados, os que andam a caminho, O escutam.
“O nosso Deus também é o Deus dos
outros, incluindo daqueles que andam á procura e daqueles que não O conhecem.
Sim, Deus é, acima de tudo, o Deus dos buscadores, das pessoas a caminho.”
Tomas Halik, Paciência com Deus
Volta e meia somos
confrontados com grandes questões que para nós, os que seguimos a Cristo, que O
escutamos, juntos, todos os domingos, que O acolhemos, deveriam ser
não-questões. Mas não são. E somos maus testemunhos, por isso. Porque os outros
não entendem como alguns de nós questionam o acolhimento de quem nos bate à
porta em situação de desespero e depois escutamos, embevecidos, a parábola do
Bom Samaritano. Não entendem aquele “sim, mas…” com que nos pretendemos
defender do desconhecido, e depois nos colocamos pronta e visivelmente do lado
de Jesus no convite que ele faz a Zaqueu. Não entendem como é possível abrirmos
a boca até ao teto para falarmos do acolhimento ao filho pródigo e, na primeira
oportunidade, comportamo-nos como o irmão mas velho, cheio de ciúmes, cheio de
medo, cheio de amargura, porque o seu irmão voltou para usurpar aquilo que
levou tanto tempo a conquistar.
«Servir significa, em grande parte, cuidar da fragilidade. Cuidar
dos frágeis das nossas famílias, da nossa sociedade, do nosso povo. São os
rostos sofredores, indefesos e angustiados que Jesus nos propõe olhar e convida
concretamente a amar», afirmou o Papa Francisco, este mês, quando visitou o
antigo líder cubano, Fidel Castro.
A frase que serve de título deste
artigo foi dita pelo nosso Padre Rosas, em conversa. O mundo, de facto, já não
é uma casa para todos. Escreve-o por outras palavras Kaled Yeslam, ilustrando
uma das imagens mais medonhas do nosso século: o da criança afogada no mar da
nossa indiferença “O inferno é a realidade em que vivemos.” Se isto não nos interpela
é porque, como as cinco virgens imprevidentes, deixamos apagar o fogo que nos
devia queimar a alma e somos vazios de amor, de humanidade, inconsequentes! Não
podemos continuar a ser cristãos medrosos. Não podemos continuar a afirmar que
olhamos cheios de confiança para os lírios do campo para depois tratarmos com
afinco da nossa vidinha. Não podemos olhar para Jesus, escutar Jesus, louvar
Jesus e depois, no nosso quotidiano, quando somos chamados a ser como Jesus,
arranjarmos mil e uma desculpas, mil e uma justificações, negá-lo prontamente,
antes sequer do galo cantar. Impõe-se-nos uma outra atitude, uma outra forma de
estar, de ser e de fazer. Impõe-se-nos interromper o nosso caminho,
debruçarmo-nos sobre quem está caído e cuidar. Sem medos. Sem justificações.
Sem desculpas esfarrapadas.
“Sempre que deixastes de fazer isto a um destes pequeninos, foi a mim que
o deixastes de fazer.” Mt 25, 45
Artigo escrito para O Poço de Outubro
Sem comentários:
Enviar um comentário