20150930
De vez em quando fazem-me perceber que ando alheado do mundo que me rodeia. Mergulhado no imenso trabalho que tenho sempre, particularmente no início de cada ano letivo, esqueço-me facilmente de tudo o que pulsa uns escassos centímetros acima do ecrã do computador. Nos últimos dias, já vou em três chamadas de atenção, vindas de pessoas e lugares muito diferentes entre si. A última foi ontem, quando ia buscar os miúdos do RAIZ à escola. Estava lá o João e eu disse-lhe que já não o via há muito tempo "Ainda agora estive lá, Setor, mas não me viu. Está sempre no computador e nem sequer joga bola connosco!" Acusei o toque, claro, e anotei mentalmente: meter as sapatilhas na mala do carro. E dar-lhes uso. Todas as tardes!
Nos primeiros tempos do RAIZ bati-me fortemente para que percebessem que jogar às cartas, jogar à bola, sentar em volta de uma mesa a contar anedotas, são formas de educar tão ou mais válidas que metê-los numa sala a estudar matemática ou português. São esses os momentos em que aqueles miúdos estão particularmente abertos e atentos à forma como gostamos deles, como lidamos com eles, como os fazemos sentir nossos, e é isso, apenas isso, apenas essa ligação afetiva que irá fazer com que eles nos escutem e tomem em consideração o que temos para dizer. E o João disse-me que eu já não fazia isto. Aprende, Zé, que não duras sempre!
"Vim apenas para estar contigo". Nos últimos tempos comunicamos apenas por questões de trabalho, mergulhados nas nossas vidas, embrenhados nos nossos projetos, desabituados de estarmos juntos, a falarmos de tudo e de nada, que era justamente aquilo que os unira antes. Soube-me mesmo bem! Pouco depois falamos de trabalho, mas de uma outra forma, mais pausada, mais nossa, dando-nos espaço para apre(e)ndermos um do outro. Soube-me bem. Mesmo muito bem. Uma chamada de atenção de alguém que me conhece muito bem e que sabia que apenas dessa forma me conseguiria despertar de forma eficaz. Aprende, Zé, que não duras sempre!
"Ambos merecemos esse abreijinho". Uma alegria em forma de email durante o fim de semana. Um promessa interior, depois formulada em voz alta, que ainda não se concretizou. Já nos cruzamos, já passamos um pelo outro, já lemos nos olhos um do outro a deceção de não ser aquela a altura certa, o momento pelo qual esperamos. E continuamos a esperar. Talvez seja hoje. Há pessoas e momentos de pessoas que são demasiado importantes para correr sequer o risco de desperdiçar, sob pena de sentir que é a própria vida estou a desperdiçar. Aprende, Zé, que não duras sempre!
20150925
Adão e Eva andam cá por dentro. A fazer estragos. Lembrei-me deles hoje de manhã, de repente, quando andava à procura de uma explicação para esta necessidade que por vezes tenho de me esconder. Não dos outros. Mas, justamente, dos meus. Dos que me conhecem, dos que se importam, dos que me importam, porque os outros, nestas coisas, não me dizem nada, nem eu sinto que tenha algo a dizer-lhes. Mas os meus, aqueles que eu considero meus, sejam amigos ou familiares, esses dizem-me tudo, ou, pelo menos, a eles eu quero dizer tudo, sinto que devo dizer tudo, e por vezes não gosto nada do que lhes teria a dizer, se dissesse, ou do que teria a partilha, se partilhasse.
Adão e Eva esconderam-se de Deus, no paraíso, não porque tivessem medo do que Deus lhes pudesse dizer, não por medo do ralhete ou do imenso poder que Deus tem. Não foi do poder de Deus, que se esconderam. Foi do amor de Deus. Foi da vergonha que sentiram quando descobriram que não tinham sido capazes de corresponder à confiança, à ternura, à entrega de um mundo perfeito que Deus tinha construído apenas para eles. E isso, mais que qualquer ralhete, foi-lhes insuportável. E como eu os compreendo!
Ontem tivemos formação de monitores do RAIZ. E depois fomos jantar e jogar bowling. Juntos. Todos. Na formação, feita de partilha e escuta mútuas, eles tinham dito que querem ser monitores porque sentem que no Espaço RAIZ acreditam neles, nas suas capacidades, na sua responsabilidade, e eles sentem-se bem por isso. E por isso acreditam que são capazes de o transmitir aos mais novos, na esperança de serem para eles exemplo e testemunho de como se pode e deve ser. E que eles, pouco depois, no jantar, provaram mais uma vez que já sabem ser.
Gostarmos de alguém, confiarmos em alguém, colocarmo-nos nas mãos de alguém, confere um poder incrível: o de nos amar apesar de nós. Por isso, para mim, nada há de pior que ver a desilusão no olhar de quem se confiou a mim, de quem me amou, de quem tudo fez para que eu não falhasse... e falhei. Não é por medo que me escondo. Não é porque temo que a partir de agora deixe de confiar em mim. Não é porque tema que vá perder aquele amor, ou aquela amizade profunda que nos une. É justamente porque sei que não o vou perder que me sinto tão envergonhado e me escondo. Porque sei que, mais uma vez, não consegui estar à altura de quem me ama. Porque sei que vai olhar para o abismo em que me encontro para me dar as asas de que necessito. Ainda que não o mereça.
20150923
Não têm sido tempos nada fáceis! A vida teima em por-nos à prova. Em por-me à prova.
Sento-me e faço aquilo que me é mais fácil fazer: escolho as palavras, jogo com elas, com a sua sonoridade, com o seu ritmo, atribuindo-lhes uma cadência própria, até trazer ao de cima o que tenho cá por dentro e que muitas vezes vou descobrindo à medida que vou escrevendo. Não me é difícil. Muitas vezes basta-me deixar-me levar, sem sequer me preocupar com o sentido, lendo apenas no fim, descobrindo apenas no fim, quando leio.
Difícil é quando sou posto à prova. Quando consciencializo que tenho que transformar as palavras em atos, concretos, com pessoas concretas, que vivem situações concretas. Pessoas de quem não gosto particularmente - eu, que digo que gosto de pessoas! - e que precisam que eu seja menos como sou e mais parecido com o que escrevo. Pessoas que me trazem as parábolas à memória. Pessoas que me roubam as desculpas. Pessoas que me forçam a ver-me do outro lado do espelho. Sem artifícios. Sem subterfúgios. Sem fugas. Pessoas que me revelam a mim próprio bem melhor que todas as palavras que possa escrever. Pessoas que, por isso, me fazem gostar muito pouco de mim.
20150922
O Mundo já não é uma casa para todos
“ O Senhor disse a Caim: «Onde
está o teu irmão Abel?» Caim respondeu: «Não sei dele. Sou, porventura, guarda
do meu irmão?» O Senhor replicou: «Que fizeste? A voz do sangue do teu irmão
clama da terra até mim.”
Gen 4, 9-10
Volta e meia o mundo dá meia
volta e encarrega-se de nos colocar em causa. Pensamos que temos a vida ao
nosso dispor, como muito bem a entendemos. Escudados nas nossas certezas
absolutas, confiantes na tecnologia que carregamos nos bolsos, entendemo-nos
donos do nosso próprio destino, alegres possuidores da verdade, distintos
conhecedores do bem e do mal, pequenos grandes deuses a quem tudo e todos se
vergam à sua passagem. Espartilhados na nossa racionalidade, confortavelmente
instalados no conforto que tão arduamente fomos conquistando, esquecemos que à
nossa volta existe um outro mundo, pulsa uma outra realidade, que nada tem a
ver com a nossa, com a qual apenas nos deparamos quando estamos demasiado
preguiçosos para mudar de canal e não conseguimos virar a cara. Vemos
rapidamente, lamentamos rapidamente, esquecemos rapidamente, embrenhados nas
nossas próprias vidas e preocupações.
Mas volta e meia o mundo dá meia
volta e encarrega-se de dizer presente. Já não se passa do outro lado do mundo,
já não é assim tão distante a tragédia, já reconhecemos alguns daqueles lugares
- porventura até passamos por lá há pouco tempo! - e descobrimos que afinal as
pessoas se vão acumulando á nossa porta, desorientadas, perdidas, fugidas de
uma realidade que afinal não se passa apenas nos noticiários mas se vai
tornando mais visível, mais próxima, mais nossa. E estremecemos. Bem fundo de
nós, estremecemos. Porque intuímos que, pelo menos tão cedo, nada voltará a ser
como antes. Que, pelo menos tão cedo, não adiantará desligar as notícias. Que,
a não ser que fechemos os olhos, “eles, os outros”, estarão por aí.
É justamente esse o efeito que “eles,
os outros”, têm em nós. Destapam-nos, descobrem-nos, abanam as nossas pretensas
seguranças, as nossas convicções, e desinstalam-nos e questionam-nos e ao nosso
mundo e a tudo aquilo que tão laboriosamente nos empenhamos construir. E
confrontam-nos. Com as nossas escolhas, com as nossas perguntas, com as nossas
pequenas grandes questões para as quais temos que encontrar novas respostas. E
isso incomoda-nos, desinquieta-nos, impele-nos para fora do nosso quotidiano
tão rotineiro, tão conhecido, tão previsível, tão saboroso!
E é justamente essa a fresta pela
qual Deus nos interpela. E é justamente por isso que a presença dos “outros”
nos é tão fundamental! Porque Deus fala a todos, mas apenas os inquietos, os
desacomodados, os que andam a caminho, O escutam.
“O nosso Deus também é o Deus dos
outros, incluindo daqueles que andam á procura e daqueles que não O conhecem.
Sim, Deus é, acima de tudo, o Deus dos buscadores, das pessoas a caminho.”
Tomas Halik, Paciência com Deus
Volta e meia somos
confrontados com grandes questões que para nós, os que seguimos a Cristo, que O
escutamos, juntos, todos os domingos, que O acolhemos, deveriam ser
não-questões. Mas não são. E somos maus testemunhos, por isso. Porque os outros
não entendem como alguns de nós questionam o acolhimento de quem nos bate à
porta em situação de desespero e depois escutamos, embevecidos, a parábola do
Bom Samaritano. Não entendem aquele “sim, mas…” com que nos pretendemos
defender do desconhecido, e depois nos colocamos pronta e visivelmente do lado
de Jesus no convite que ele faz a Zaqueu. Não entendem como é possível abrirmos
a boca até ao teto para falarmos do acolhimento ao filho pródigo e, na primeira
oportunidade, comportamo-nos como o irmão mas velho, cheio de ciúmes, cheio de
medo, cheio de amargura, porque o seu irmão voltou para usurpar aquilo que
levou tanto tempo a conquistar.
«Servir significa, em grande parte, cuidar da fragilidade. Cuidar
dos frágeis das nossas famílias, da nossa sociedade, do nosso povo. São os
rostos sofredores, indefesos e angustiados que Jesus nos propõe olhar e convida
concretamente a amar», afirmou o Papa Francisco, este mês, quando visitou o
antigo líder cubano, Fidel Castro.
A frase que serve de título deste
artigo foi dita pelo nosso Padre Rosas, em conversa. O mundo, de facto, já não
é uma casa para todos. Escreve-o por outras palavras Kaled Yeslam, ilustrando
uma das imagens mais medonhas do nosso século: o da criança afogada no mar da
nossa indiferença “O inferno é a realidade em que vivemos.” Se isto não nos interpela
é porque, como as cinco virgens imprevidentes, deixamos apagar o fogo que nos
devia queimar a alma e somos vazios de amor, de humanidade, inconsequentes! Não
podemos continuar a ser cristãos medrosos. Não podemos continuar a afirmar que
olhamos cheios de confiança para os lírios do campo para depois tratarmos com
afinco da nossa vidinha. Não podemos olhar para Jesus, escutar Jesus, louvar
Jesus e depois, no nosso quotidiano, quando somos chamados a ser como Jesus,
arranjarmos mil e uma desculpas, mil e uma justificações, negá-lo prontamente,
antes sequer do galo cantar. Impõe-se-nos uma outra atitude, uma outra forma de
estar, de ser e de fazer. Impõe-se-nos interromper o nosso caminho,
debruçarmo-nos sobre quem está caído e cuidar. Sem medos. Sem justificações.
Sem desculpas esfarrapadas.
“Sempre que deixastes de fazer isto a um destes pequeninos, foi a mim que
o deixastes de fazer.” Mt 25, 45
Artigo escrito para O Poço de Outubro
20150915
Tenho recebido várias queixas. Por não ter respondido às sms, aos facebooks, porque não ter escrito aqui, por desaparecer do mapa. Foi voluntário. Foi de propósito. E, a determinada altura, foi inevitável. Não consigo ainda lidar convenientemente com aquela foto do miúdo a dar à costa, com a cara mergulhada na água. Comparado com aquela imagem, que não me sai da cabeça, tudo me parece vão, tudo me parece supérfluo, tudo me parece ofensivo. Na eucaristia que se seguiu à divulgação daquela foto eu só pensava que se fosse padre apresentava aquela foto no início da eucaristia e calava-me, não dizia absolutamente nada, porque deveríamos todos estar envergonhados por aquilo ser possível. Não sou ingénuo, eu sei que com aquela criança morrem muitas outras pessoas, antes e depois, e continuam a morrer no silêncio, na obscuridade, no mais profundo anonimato, sem contar para quem quer que seja. Mas nós também sabíamos de Timor, sabíamos o que lá acontecia, e ainda assim deixamo-nos comover com aquela gente que era baleada ao som do terço.
E agora?
Nada!
Um rotundo e desesperante nada!
20150902
Mochila feita, tudo devidamente acondicionado, com a peso a mais, como eu. Ainda não é amanhã que partimos. Mas já falta pouco. O Caminho já me sobressalta a noite, já o antecipo, já sinto na boca o sabor do cedo da madrugada, já vejo o amanhecer e com ele a descoberta dos lugares por onde passamos, passo a passo, mergulhados ora em nós próprios ora nos que mergulharam connosco.
Tive que apresentar o caminho a dois novatos. Explicados os procedimentos básicos - o que levar, o que calçar, o que esperar - não consegui transmitir mais coisa nenhuma. O que há de tão especial no caminho? O que há de tão especial naquele "não consigo" que me acontece sempre no início e que se vai transformando em alegria partilhada, tão intensamente vivida por todos e cada um de nós? Não sei. Sei que cada vez mais me sinto melhor a caminho, sinto cada vez mais que estou a caminho. E nem sequer é apenas espiritualmente, é fisicamente mesmo, como se precisasse daquela sucessão de passo para ser quem sou.
Subscrever:
Mensagens (Atom)
Bambora
Não é estranho que nos digam que «ser homem é muitas vezes uma experiência de frustração». Mas não é essa toda a verdade. Apesar de todos ...
-
Somos bons a colocar etiquetas, a catalogar pessoas, a encaixá-las em classes e subclasses organizando-as segundo aspetos que não têm em c...
-
"Guarda: «Temos menos sacerdotes e, por isso, precisamos de valorizar, cada vez mais, os diferentes ministérios e serviços laicais nas ...
-
Sou contra o aborto. Ponto. Sou-o desde sempre. A base da minha posição é simples: acredito que a vida começa com a conceção. Logo, não é lí...