Enquanto nos debatíamos com uma sandocha de leitão, perguntou-me se eu eu não achava que o que acabáramos de ouvir desmistificava Jesus.

Passáramos a tarde com Juan Ambrosio, numa daquelas formações a que todos os homens de boa vontade deveriam participar sob pena de viverem a vida menos vivida. E menos percebida. De desconstrução em desconstrução, foi dando nomes às coisas, conduzindo-nos e ao nosso raciocínio como apenas um mestre sabe fazer. Não admira, portanto, que já a caminho de casa, as suas palavras fizessem ainda caminho dentro de cada um de nós. Calculo que nos habitarão ainda por algum tempo!

Como me acontece muitos vezes, à medida que fomos conversando sobre a desmistificação de Jesus, fui fazendo a minha própria descoberta, fazendo o meu próprio percurso, fui empalavrando Jesus, para utilizar a expressão do Juan. Recordei-me de algo que ainda há pouco tempo escrevi aqui, da desmistificação dos autores bíblicos, que afinal eram pessoas simples. Como também nós somos chamados a ser simples. Da mesma forma, a quem serviria termos um Jesus distante, completamente divino, completamente nas alturas, longínquo, intocável, distante? Afinal não era esse o deus dos nossos antepassados? Afinal, não foi para isso que Jesus veio? Para se fazer um de nós? Para, fazendo-se um de nós, nos fazer um de Si, para nos catapultar e nos sentar, juntamente com Ele, à direita do Pai? "Podes ter a certeza que hoje mesmo estarás comigo no paraíso." Lc 23, 43

O que perdemos em divindade de Jesus, ganhamos em humanidade com Jesus. E essa é uma responsabilidade que nem sempre desejamos. É-nos muito mais cómodo um deus que opera de cima para baixo, que nos deixa sem alternativa, sem possibilidade de escolha. Dessa forma, as coisas acontecem na nossa vida por imposição divina, nós somos pobres marionetas nas suas mãos e, como pobres marionetas, desresponsabilizamo-nos. "Foi vontade de Deus".

Falávamos ontem da Samaritana, assim como falamos anteontem do Bom Samaritano, assim como falamos já muitas vezes de Zaqueu e do Filho Pródigo e de Madalena e do Bom Ladrão e do Centurião e de tantos outros que, com a sua humanidade - não com a sua divindade - com a sua pequenez, com as suas falhas e a sua humildade são caminho para todos nós. Assim como falamos também de Gandhi ou Luther King ou Mandela ou a Tia Micas, que toda a vida viveu para os outros. É sua humanidade que nos faz desejar ser mais humanos, que nos faz sentir - ainda que brevemente, enquanto não deixamos que a vida nos atropele - que também nós somos chamados a ser mais humanos, que também nós podemos e devemos ser mais humanos, mais cuidadores, mais atentos, mais construtores de um mundo melhor. Há, nos diálogos que Jesus estabelece com as pessoas, uma proximidade com o nosso quotidiano, com a nossa forma de podermos ser pessoas que nos obriga - ainda que contra a nossa vontade - a questionarmo-nos porque não fazemos nós o mesmo, porque não paramos nós junto ao poço e não pedimos de beber, porque não dizemos nós também às samaritanas e aos zaqueus que connosco partilham os dias que também eles são visceralmente amados pelo Pai, que o que verdadeiramente importa é este amor no qual somos fundados e que a vida e os outros e nós próprios teimamos em fazer esquecer? Mais difícil ainda: conhecendo nós Jesus e o Amor do Pai, porque teimamos nós em nos roubarmos a nós próprios esse Amor escondendo-o na nossa vergonha, escudando-nos na nossa pequenez? Queremos não ver que há, nesta forma de ser e de fazer de Jesus uma possibilidade de sermos nós próprios a ser e a fazer que nos rouba as desculpas e as justificações, tal é a sua simplicidade, tal é a sua humanidade, tal é a sua proximidade com cada um de nós.

A quem serviria um Jesus inteiramente divino?  

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