20150228


Desde muito cedo que aprendi que é Deus quem vem ao nosso encontro e que nos preocupamos em demasia em sermos nós a proporcionar esse encontro com Deus. Provavelmente terá sido isso que Deus me queria dizer sempre que aquela miúda giríssima interrompia o nosso jogo de futebol de rua e passava, como se todos fossemos invisíveis, a caminho do ensaio que iria inaugurar a capela nova. Tantas vezes ela passou, tantas vezes tivemos que interromper o jogo por sua causa, que acabei por ir atrás dela tentar a minha sorte, e apaixonar-me, numa espécie de dois em um, porque através dela descobri uma outra forma de vida, até então perfeitamente inacessível a todos os meus sentidos. Apaixonei-me por essa miúda, teria catorze ou quinze anos, e apaixonei-me por Jesus e a minha vida mudou. Ela foi a árvore que Deus colocou no meu caminho à qual tive que trepar para ver o meu Deus que passava diante dos meus olhos.

Pensava nisto enquanto, numa daquelas belíssimas manhãs cheias de sol, caminhava pelo parque do lago, em Taizé. Por todo o lado se viam miúdos, sozinhos, em silêncio, nas suas multiplicidades de encontros. Não tinham ninguém junto deles, a vigiá-los, a mandá-los calar, a ensinar-lhes a ficar em silêncio, a dizer-lhes no que deviam pensar, em quem deviam pensar, como deveriam rezar. Eram eles e apenas eles... e Deus!

Lembrei-me do que Deus disse a Moisés quando este Lhe perguntou em nome de quem ordenaria ao Faraó para libertar o Seu povo. Sabemos todos como Deus respondeu: "Eu sou Aquele que sou". Não tenho dificuldade em imaginar que hoje Deus teria dito para o Moisés se deixar de histórias, que o nome é uma necessidade dos homens, que precisam do nome e da sua individualidade para se sentirem especiais e únicos, mas que Ele, sendo único, não precisa do nome para nada. Que os nomes que Lhe damos não passam de uma tentativa de nos apoderarmos d'Ele, de O fazermos apenas nosso, quando Ele é de todos e para todos. Que, enfim, nunca aprendemos com as nossas próprias asneiras.

E ao ver aqueles miúdos, ao partilhar o silêncio com eles, sabendo que alguns deles - tantos de nós! - não sabiam o que era o som do silêncio a não ser quando lá chegaram, sabendo que alguns deles  - tantos de nós! - nunca tiveram catequese ou nunca lhes ligaram puto, sabendo que alguns deles - tantos de nós! - apenas tinham ido sem saber muito bem ao que iam e depois se deparavam consigo próprios, pensava no que rezariam, como rezariam, se rezariam ou se apenas se deixavam estar, pensando na vida, nos testes, nas famílias, nos amigos, encontrando-se justamente - e a Deus! - enquanto pensavam nos amigos, nas famílias, nos testes, na vida!

Esse será, talvez, o grande segredo de Taizé. Não dá nome a Deus. Não O espartilha, não O limita, não O condiciona às necessidades dos homens. Taizé facilita, abre portas, cria condições, desperta os sentidos. Taizé diz-me, sempre: vem cá, senta-te, canta, deixa que te envolva, silencia-te. Porque no silêncio encontrar-te-ás, sempre, e Àquele que É. Qualquer que seja o Seu nome. Qualquer que seja o teu nome. É-o para ti. Para que O possas ser para os outros.

E sou sempre muito feliz em Taizé!

20150227



Já o tinha intuído algumas vezes, nunca o tinha verbalizado, muito menos com a clareza com a clareza com que o fizemos enquanto caminhávamos naquela manhã gelada dentro e fora de nós: ao longo do que vai sendo a nossa vida, conhecemos, em determinadas - raras! - alturas, alguém que nos leva a pensar "noutras circunstâncias..."

Recordei-me imediatamente do "How to make an american quilt", particularmente daquela cena que me marcou para a vida em que ele, depois de uma deliciosa conversa, recusa ir com ela porque tem a sua mulher à espera. E, ainda no filme, recordei como ela confessava que, de entre todos os homens que conhecera e com quem se aventurara, o único com quem quereria ficar era justamente aquele, pelo amor que ele tinha à sua mulher, pela fidelidade que ele mantinha com ela, justamente aquele, que fora o único que se negara a tê-la sem compromisso, como tantos outros a tiveram sem compromisso. E como ela desejava, mesmo depois de todo aquele tempo, mesmo depois de todas as posteriores aventuras, mesmo depois de ter negado outros compromissos, ser ela a sua mulher, aquela que o esperava, feliz, em casa, enquanto ele regressava, igualmente feliz, para os seus braços.

Volta e meia regresso a este filme, e a esta cena em particular.

O equilíbrio que tem que existir entre duas pessoas que se amam é, sempre, qualquer que seja a circunstância de ambas, muito ténue. Amar, amar mesmo - quer seja numa amizade profunda ou numa relação a dois - exige sempre entrega total e absoluta, sujeição total e absoluta, vontade própria total e absoluta de abdicar de si porque encontra a felicidade fora de si. É fatela, eu sei, está fora de uso, sei-o também, já não se usa, patati, patata, mas se assim não for pode ser tudo menos amor. A entrega total exige liberdade total e vontade total. Mútuas e de cada um. Se assim não acontecer, não passa da satisfação de uma necessidade de posse, e isso é perna demasiado curta para tanta necessidade de caminho.

Mas isto faz com que quem ama viva permanentemente num limbo, sobre o arame, sem certezas totais e absolutas - a não ser a da minha própria entrega, sentindo a alegria de ser amado! - mas na confiança total e absoluta que, se algum dia, o deixar de ser, serei-o no entanto o suficiente para ser o primeiro a sabe-lo. Nada é certeza. Tudo é confiança. E entrega. E confiança. E entrega.

Por isso, por vezes, quando as coisas não correm bem, amar dói tanto. Porque, às tantas, a entrega mantém-se. Mas a confiança já se foi. Então temos duas, apenas duas, possibilidades: ou apostamos tudo na reconstrução ou apostamos tudo no reinício. Em qualquer dos casos, lambemos feridas. Que doem como o caraças! E nunca mais passam!

20150226


Creio que terá sido há cerca de dois anos. Numa formação perguntaram qual era a nossa passagem bíblica, aquela que nos guiava, aquela à qual nos agarrávamos quando em aflição, aquela que nos inspirava nos momentos difíceis... Pensei logo em Job, o livro que eu sentia como meu desde que descobri a Bíblia e ao qual me socorri inúmeras vezes para encontrar algum alento e forças para não desisti. No entanto, sabia que a minha circunstância agora era outra, que a minha maturidade vai sendo outra também - tem dias! - e que, sobretudo, o sofrimento porque passara era isso mesmo: passado. Desde então fui ficando atento, sempre no Novo Testamento, sempre em Jesus, daquela passagem que me ligasse de forma especial à vida.

Encontrei-a. Em Taizé. Numa das manhãs em que estava sozinho, na Igreja, a preparar-me para a oração, vi-a. Num improvabilíssimo Isaías 58, 9-12:

"Se retirares da tua vida toda a opressão, o gesto ameaçador e o falar ofensivo,
se repartires o teu pão com o esfomeado e matares a fome ao pobre,
então na escuridão em que vives brilhará a luz,
a tua obscuridade transformar-se-á em meio-dia.
O Senhor será sempre o teu guia,
até em pleno deserto saciará a tua fome e dará vigor ao teu corpo.
Serás como um jardim regado! Como uma fonte abundante, cujas águas nunca secam.
Reconstruirás as velhas ruínas, levantá-las-ás sobre as antigas fundações.
Vão chamar-te "Reparador de brechas e restaurador de ruas destruídas"

Fiquei felicíssimo, como nunca pensei ficar por causa de uma passagem bíblica. Estava aqui, escarrapachado, todo um projeto de vida com o qual me identifico, com o qual me posso trabalhar, todos os dias, a qualquer momento.

Não vai ser fácil!

20150225


Já tinha saudades! Do barulho das ondas, do cheiro salgado da manhã, do vento frio a bater, do permanente louvar a Deus pelo início de mais um dia, pela beleza que me rodeia, por ter um lugar que sinto como meu. Sou um homem de manhãs. Talvez porque seja o princípio, talvez porque nessa altura do dia tudo seja ainda planos e projecções, e perspectivas e boas intenções. Talvez porque. nessa altura do dia, não tenha ainda nada para avaliar, não tenha ainda feito o balanço do dia e por isso não tenha falhado em nada, ainda.Talvez porque deixo isso para a noite, para todas as noites, quando me coloco na balança e constato, invariavelmente, o tanto que ainda me falta!

Há estados de alma que levo tempo a processar. Muito tempo! Particularmente quando sou mexido por dentro, quando sou tocado no mais fundo do que sou, quando tenho a sorte de me sentir abençoado (abensonhado - como me ensinaram a dizer!) por quem me faz sentir amado. Por isso, também por isso, este Taizé que ainda lateja cá por dentro vai levar muito tempo a ser degustado por mim. Lentamente, enquanto caminho, vou revisitando conversas, saboreando gestos e olhares, sorrisos e lágrimas; recordo paisagens belíssimas, personagens principais no enquadramento da cumplicidade do encontro; resgato silêncios cheios de palavras e palavras recheadas de silêncios comprometidos e comprometedores, porque finalmente ousam saltar cá para fora e tornar-se vida dita, e vivida, porque partilhada!

E volto a sentir, pela enésima vez, a certeza que é na partilha profunda do que somos e temos, do que não somos e nos falta, é na partilha profunda da admissão das nossas falhas e incapacidades e medos e sofrimentos, que nos encontramos uns nos outros em Deus. E volta a ocorrer-me, pela enésima vez, que foi justamente por isso que o nosso Deus se quis partilhar connosco na pequenez, na sujeição total, na entrega total, confiante e absoluta, fazendo-se, por amor, indefeso nas nossas mãos, para que possamos, por amor, querer ser indefesos nas mãos uns dos outros. E recordo, pela enésima vez desde que saímos, os nossos gestos e olhares e sorrisos e lágrimas, e a nossa alegria calada e profunda por nos sentirmos, confiadamente, amorosamente, nas mãos uns dos outros. E redescubro, pela enésima vez, que o nosso Deus fez-se humano para nos ensinar a sermos humanos: na pequenez, na simplicidade, no (apenas) aparente nada!

E sorrio! De tal forma que alguém que passa por mim nesta manhã gelada me olha de soslaio! Mas sorrio! Porque sinto que tudo isto é, apenas, o princípio.

Deus seja louvado!

20150210


Têm-me dito - e feito sentir - que já não penso noutra coisa, que o meu coração está já bem longe, bem separado do resto do corpo, numa pequena aldeia francesa. Sorrio - desde há muito que me apercebi da inutilidade de tentar desfazer ideias feitas - suspiro, e sigo adiante. É ainda muita coisa que tenho que preparar, que tenho que cuidar, que tenho que trabalhar, antes sequer de incorporar que daqui a poucos dias estarei em Taizé.
Ontem, no RAIZ, uma irmã comentava a correria que tem sido a minha vida, sempre daqui para ali, com vários fins de semana ocupados, com vários jantares familiares em falta, e questionava-se (me) se a família não se ressentia da minha ausência. Não é uma questão nova, esta. Já nos era colocada quando a minha mais-que-tudo ia para as colónias ou para Portalegre ou eu ia para retiros. Quando pudemos, arrastamos os filhos, pequenitos, atrás de nós. Dormiam no chão como nós, participavam nas colónias como nós e estávamos todos juntos em todas as atividades me que podíamos estar juntos. Agora, claro que eles sentem a minha falta, assim como eu sinto a falta deles quando vão a um retiro, ou para Taizé, ou para o Fé e Luz, ou para a Missão País, ou para as mil e uma atividades em que estão metidos porque quem sai aos seus não é de Genebra. Claro que sentimos a falta uns dos outros quando não estamos todos em casa, mas isso não é mau. É sinal que gostamos de estar juntos, de jantar juntos e de vivermos juntos.  Mas, sobretudo, é sinal que quando nos metemos nestas coisas não estamos a fugir de nada nem de ninguém. Que fazemos isto tudo com um forte sentido de entrega aos outros, tirando daí o maior prazer... apesar da falta que nos fazemos.    

20150205


Fiz-lhe o convite. Novamente. Não vi. Não precisei. Antecipara com extraordinária facilidade os seus olhos a brilhar. Há coisas que não precisamos ver. Há pessoas de quem não precisamos ver. Porque não precisamos de comprovar nada, tal é o nível de compromisso, de simbiose, de partilhada de vida vivida. E sentida. E caminhada. Enquanto se caminha. Há pessoas de quem sabemos antecipadamente, com gosto, com gozo, com a alegria que sentíamos em miúdos quando sabíamos que iríamos fazer felizes. Que iríamos ser felizes porque fazemos felizes. Quando a vida era simples, simples, tão simples que os porquês não tinham lugar nas brincadeiras, nem os comos, e muito menos os talvezes. Era o reino dos porque nãos em que fechava os olhos e saltava, inconsciente, sem medir nada nem ninguém, sem medos, sem consequências outras que não fossem as ditadas pelas horas imensas de imensa brincadeira. Desses tempos, que não foram apenas "esses tempos" mas também "outros tempos" que não foram tão bons, escolhi guardar apenas "esses tempos" e utilizá-los por vezes, com sorte, como ponto de partida para estes tempos, que são aqui e agora. A inocência e a ilusão da aventura mil vezes tentada e outras tantas cumprida, o momentâneo desespero que depois se transforma, miraculosamente, em doce e saudosa memória, o respirar da passada no frio da manhã antecipando o descanso do anoitecer, o acreditar piedosamente que depois desta não me voltarei a meter noutra e depois deixar que a saudade tome conta das decisões e ansiar pela partida. E poderia continuar, ad infinitum, porque é justamente com esse poder que me sinto quando recordo e reescrevo e revivo e antecipo o brilho do olhar e tenho a certeza que o que vai acontecer é já caminho, é já antecipação, já acontece com o convite feito. Dentro de nós.

Bambora

  Não é estranho que nos digam que «ser homem é muitas vezes uma experiência de frustração». Mas não é essa toda a verdade. Apesar de todos ...