20141229
Têm sido tempos especiais, estes. Como habitualmente, ponho a minha casa em ordem, as minhas coisas nos sítios certos, reorganizo-me, num descanso operante que me faz muito bem. Durmo até ligeiramente mais tarde, passeio muito, converso muito, namoro muito e restauro as minhas forças. Não sou nada de ficar sem fazer nada mas sou muito de fazer com calma, saboreando os dias e as noites, usufruindo do tempo que, em alturas laborais, me foge por entre os dedos.
Estes dias têm servido também para reencontrarmos todos o equilíbrio familiar. Os miúdos estão a estudar para os exames mas já nos vemos todos os dias, já conversamos todos os dias, já comemos juntos todos os dias. Como em tempo normal estamos sempre mergulhados em alguma coisa, neste tempo, pelo menos, reocupamos o nosso lugar no sofá sob as mantas que nos aquecem o corpo, saboreando a mútua companhia que nos aquece a alma. Ainda por cima, os dias têm estado lindos e frios, como tanto gostamos, e ainda no outro dia fomos até ao Douro vinhateiro, num passeio que nos deliciou e encheu as medidas.
20141219
Ontem, quando nos despedimos, disse.lhe: vê se fazes Natal. Sei bem o que estava a dizer, porque sei bem que uma grande parte do Natal é, justamente, feita por nós.
Quando era miúdo adorava este tempo. Na altura vivia bem no centro da cidade e testemunhava, in loco, a azáfama que a todos invadia. Na altura não havia shoppings mas as ruas da baixa estavam sempre cheias de música, iluminação e pessoas. Santa Catarina, 31 de Janeiro, a Avenida, o Bolhão, tinham este cheiro característico, esta alegria tão grande e tão contagiante. A ausência dos centros comerciais fazia com que toos se concentrassem nos mesmo sítios para fazer compras e estas coisas são contagiantes, quantas mais pessoas, mais alegria, quanta mais alegria, mais pessoas. Lembro-me de um ano em que, pouco antes do Natal, tinha medo de sair à rua porque poderia ser atropelado e já não teria Natal. Este medo irracional apenas me voltou a acontecer por duas outras vezes, era já adulto: nas vésperas do meu casamento e nas vésperas de ser pai pela primeira vez. Era assim que eu vivia o Natal, intensamente, alegremente, contagiosamente.
Sei hoje que não era o Natal que eu vivia, mas o folclore que anda à volta dele. Hoje é tudo muito mais calmo, mais sereno, mas mais verdadeiro. Claro que lá em casa nos deixamos contagiar pelos presentes, pela música, pelos filmes. Mas agora o Natal, lá em casa, tem muito mais a ver com pessoas. Hoje chegam os miúdos da Irlanda, e se calhar bem, os lisboetas também chegarão daqui uns dias, e lá em casa, como nos bons tempos, seremos cerca de vinte, apertadinhos mas muito felizes, à volta daquela mesa. Antecipamos todos a azáfama da cozinha, faz bolo, tira bolo, este queimou, o pudim não ficou como queria, põe mesa e tira mesa, não cabemos todos, como havemos de fazer, e a música a tocar e todos a falar ao mesmo tempo, e traz o vinho e o delicioso molho que faço nesta noite e depois não me deixa dormir, eia! já chegaram as batatinhas (está tão bom, vó), e as sobremesas a seguir e lá temos nós que ir à Missa do Galo - hoje não me apetecia nada (nunca apetece nada mas depois sabe tão bem!) - e a missa do dia de Natal com todos roucos e ensonados e o farrapo velho do almoço do dia de Natal (esperamos por ele com tanta alegria como pelo Menino) e bora todos para o sofá para ver os primeiros cinco minutos do filme antes de cairmos para o lado como tordos.
Acredito que chegamos a um ponto em que se nos tirassem os presentes não mudaria nada doq eu tanto gostamos do Natal. Bom mesmo é estarmos todos lá em casa, a confusão, a alegria, a Missa do Galo, o almoço do dia seguinte, que dura horas, aquela tarde em que estamos todos juntos a conversar durante imenso tempo. Isso sim, é o nosso Natal. Ainda para mais este ano teremos Mesa de São Pedro, no almoço de 24, e sentiremos a entrega de uma forma ainda mais especial.
Sei bem que uma grande parte do Natal é justamente feita por nós, Não por nossa causa, mas por causa do nosso Deus que, por amor, quis confiar-se-nos ao ponto de se colocar, inteiramente, à nossa mercê. Perante um Deus assim, a nossa única resposta deve ser tentar imitá-lo e colocar-nos a nós próprios, a mercê dos outros. A começar pelos nossos, que são, muitas vezes, quem nos gera mais medos e desconfianças. Acredito que só assim faremos Natal.
20141215
Não gosto nada da saudade. Seja do que for. Seja de quem for. Numa situação ideal a saudade não existiria: estaria sempre com quem quero estar, na situação em que quero estar, numa renovação constante... e irreal. A saudade faz-me ver o que não está lá, faz-me reler uma e outra vez a mesma coisa, faz-me reviver a mesma situação na ilusória tentativa de voltar, como se não tivesse acontecido nada entre este hiato de tempo. Ainda que regressasse com as mesmas pessoas ao mesmo lugar, era impossível que voltasse a ser a mesma coisa e o mais provável é que fosse tão diferente que seria de certa forma penoso. Provavelmente o melhor que teríamos a fazer seria desligarmo-nos do que aconteceu e viver o que fosse acontecendo.
E no entanto...
Volta e meia bate uma saudade imensa! E contra essa saudade, que vem do fundo mais fundo, não há racionalidade que aguente. Bem me digo que não vale a pena, que o futuro é o caminho, que as escolhas vão sendo progressivamente feitas, no sítio e no lugar onde têm que ser feitas, e que são justamente as escolhas que nos definem e nos diferenciam uns dos outros, mas tem alturas em que a racionalidade não me adianta absolutamente nada, em que é absolutamente impotente.
Ainda ao menos se a lua não aparecesse!
20141211
Assim que acabou a eucaristia, arrumei as minhas coisas e sentei-me. Ou melhor, recolhi-me em ti. Teria gostado de sentir que me saíra um peso dos ombros mas não é verdade. Doem-me os ombros, assim como me dói o corpo todo. Têm sido umas semanas loucas, estas duas, e eu já não tenho vinte anos, e estava a precisar de me sentar para estar contigo, para conversar contigo, eu que tenho estado por aqui tanto tempo mas não tenho tido esse tempo para me sentar e conversarmos. Eu sei que me esperas sempre, sei que nunca chego tarde, sei que tu, muito melhor que eu, sabes como corro e em busca do que corro, tantas vezes feito barata tonta, sem nunca sair do lugar. Sei que não teria que te dizer nada, nem pensar nada, nem explicar nada, que me bastaria estar, ali, sentado, para ti. Mas acho sempre que precisava de o dizer. Que a questão não é, nunca foi, se tu me esperas, mas se eu me dou conta que tu me esperas. Não é se tu tens mais que fazer, com um mundo inteiro para cuidar, mas se eu te coloco na minha lista de prioridades. Se eu te coloco na minha agenda "quinta-feira, 11 de dezembro, 11:15, sentar." Não o faço, sabe-lo bem, Nunca o fiz. Assim como nunca coloquei "hoje, falar com o meu filho" ou "hoje, falar com a Belita" ou "hoje, encontrar-me no terraço com a lua ." Não o faço. A agenda é para aquilo que é passageiro, que não faz parte do que sou mas do que quero fazer, do que não me posso esquecer, do que é esquecido se não for apontado, e recordado, uma e outra vez. Mas tu não és assim. Tu estás. Sempre. Estás. Quando eu corro, quando me esforço, quando me empenho, quando tenho eu apelar à bondade daqueles que comigo trabalham e levam com as minhas falhas, quando levo eu com as falhas dos outros, quando descanso, quando me recolho, quando caminho, quando faço e penso e sinto tudo o que faço e penso e sinto, tu estás.
Assim que acabei de arrumar as minhas coisas recolhi-me em ti. Esperei que a cabeça serenasse, que a minha vida desse lugar à vida que tenho em ti, à vida que fazes em mim, e não disse nada. Não haveria nada que te pudesse dizer que tu não o soubesses já. Por isso recolhi-me em ti. Apenas isso. Recolhi-me em ti. E soube-me mesmo bem!
20141210
"Quando a Igreja se fecha em si mesma, talvez esteja bem organizada, com um organigrama perfeito, tudo a postos, tudo limpo, mas falta alegria, falta festa, falta paz, e assim torna-se uma Igreja sem esperança, ansiosa, triste, uma Igreja que tem mais de solteirona do que de mãe, e esta Igreja não serve, é uma Igreja de museu», afirmou o papa, citado pela Rádio Vaticano."
Li isto e pensei imediatamente em nós. Em como sempre foi um desejo profundíssimo teu ter uma casa perfeita, sempre arrumadinha, sempre limpinha, com todas as coisas no sítio, como aquelas que víamos nas revistas. Imediatamente me vieram à cabeça as tuas infindáveis e infrutíferas lutas para que os brinquedos não ficassem espalhados pela sala, que os jornais e revistas estivessem devidamente dobradinhos e no seu lugar, que os imensos filmes dos filhos estivessem convenientemente arrumados e escondidos de quem nos visitaria. Lembrei-me logo dos teus fins de semana passados na vã tentativa de por em ordem uma casa cheia de miúdos, de brinquedos e brincadeiras, de vida. Essa foi uma daquelas coisas onde tiveste que ceder. A custo, a muito custo, foste percebendo que muito mais importante que uma casa arrumadinha é uma casa cheia de vida.
Ainda hoje a nossa casa é um fiel espelho de nós próprios. É o nosso lugar. Nenhum de nós lá passa muito tempo, atarefados que andamos todos entre trabalho e projetos e paróquia e estudos e desporto e música e tudo o que aparecer à frente porque nós sempre fomos assim e transmitimos essa forma de estar na vida aos nossos filhos. Não são já muitas as vezes em que estamos todos juntos a ver um filme, ou a tomar um chazinho quente, invariavelmente preparado por ti. Quase sempre pelo menos um de nós está de passagem, vem de algum lado e repousa um pouco antes de partir para outro lado. Por isso temos sempre casacos em cima do sofá ou pendurados nas cadeiras, temos sempre algum calçado fora do sítio, papéis e livros espalhados, e sacos, muitos sacos, sejam mochilas ou malas ou carteiras ou simplesmente sacos, que estão sempre pela sala de jantar.
É assim, a nossa casa. Graças a Deus! Não é tanto um sítio para estarmos mas para retemperarmos forças. Ali, todos sabemos sempre com o que podemos contar, com quem podemos contar. Sabemos que há sempre uma altíssima probabilidade de conversar e rir e discutir e cantar e até dançar, sabemos que nos dias frios temos sempre o nosso sofá gasto, cheio de mantas por cima, cheio de covas por baixo, mas que vai resistindo heroicamente, orgulhosamente assumindo a responsabilidade de levar com pelo menos sete pessoas em cima quase todos os dias. Ali, todos sabemos que temos sempre alguém com quem conversar, com quem desabafar, com quem aferir até que ponto a asneira foi grossa, sabendo que provavelmente nos irá dar na cabeça, nos irá contrariar, que não nos dirá o ámen que tanto gostaríamos de ouvir, sabendo também que se o quiséssemos, verdadeiramente, ouvir, certamente conversaríamos noutro lugar, com alguém que nos amasse um pouquinho menos.
Percebo muito bem o Papa Francisco. A nossa casa é tudo menos bem organizada, com um organigrama perfeito, sempre limpa, sempre perfeita. Mas tem muitas vezes alegria e festa e, nos raros momentos em os astros se conjugam para que o maralhal esteja fora de casa, até consegue ter alguma paz.
Deus seja louvado!
20141209
Educar o olhar é fundamental.
Estava na hora. Tínhamos tudo combinado, tudo preparado, tudo devidamente sensibilizado. E no entanto, andei pelos corredores, pela sala dos professores, e senti uma certa tristeza. Havia ainda quem passasse completamente ao lado. Quem escolhesse ficara trabalhar, quem escolhesse não deixar atrasar a matéria para se poder dar a oportunidade de parar e rezar durante 3 minutos. Nada de especial, pensei. Mas afinal não. É especial. Particularmente quando me apercebi que, com a sua atitude, afectava a sua turma, que se veria assim impossibilitada de participar no momento de oração que deveria ser de todos. E fiquei mais triste ainda. Como será possível invertermos as coisas? Como será possível, sem imposições, sem braços de ferro, levar as pessoas a tomarem consciência da importância de estarmos juntos, de rezarmos juntos, de ao menos pararmos juntos para nos darmos tempo, para nos darmos conta da existência uns dos outros? Aprecio muito a liberdade que Deus nos dá para sermos nós próprios a tomarmos as nossas decisões, mas às vezes é difícil!
Ao fundo do corredor ouvi a voz off da oração. Desci as escadas e deixei-me ficar por lá, no patamar. Afinal não estava só. Afinal tinha havido alguém que escolheu parar. Afinal tinha havido alguém que se tinha dado ao trabalho de percorrer alguns metros, descer as escadas, para ganhar esses 3 minutos. Afinal há esperança! Fiquei por lá, feliz, a escutar o que faltava da oração, em profunda sintonia com os que estavam a poucos metros de mim, na sala dos professores, que se tinham deixado ficar a trabalhar. Talvez um dia percebam que estão a deixar de lado a melhor parte. E rezei em boa companhia, e louvei a Deus. Por ter havido quem escolhesse estar com Ele.
20141203
Se acreditasse em coincidências diria que são coincidências. Não acredito. Acredito sim que Deus nos fala por muitas formas, através de muitas pessoas, e de muitos acontecimentos. Pequenos e insignificantes, como é típico da sua forma de agir.
No espaço de duas semanas conversei com duas pessoas absolutamente distintas do meu passado. Do que me trouxe até aqui, para o bem e para o mal, onde eu estou, hoje, aqui e agora. Um percurso acidentado, não tão acidentado, é certo, como o de alguns miúdos dos bairros com quem trabalho todos os dias, mas muito menos linear que o da maioria das pessoas, miúdas e graúdas, com quem trabalho na outra metade dos meus dias. O que me faz estar permanentemente num limbo: nem sou bem uns, nem sou bem outros. Sou uma coisa assim, mais ou menos, que ora tem um pé num lado, ora tem um pé noutro lado. Um pé dentro e um pé fora.
Descobri há pouco tempo que esse limbo tem sido uma permanente na minha vida. E que, quando não o foi, era porque a máscara que eu usava tinha mais a ver com o que eu queria ser, a qualquer custo, que com o que eu era. Um pouco como se calçasse uns sapatos que não me pertenciam, que de certa forma me elevavam aos olhos alheios, mas que todos os dias, no silêncio do meu recolhimento, sabia que não me pertenciam.
Toda a minha vida de solteiro vivi num bairro, embora numa grande parte desse tempo, não vivesse numa das casas do bairro. O bairro não era, assim, físico mas interior, todos aqueles que me eram importantes eram do bairro. E eu, sendo orgulhosamente um deles, nunca me dei por satisfeito por ser um deles. Toda a minha vida senti uma enorme pulsão de ser mais, de saber mais, uma insatisfação permanente que me fez andar sempre à procura não sei bem de quê, que me foi impulsionando a conhecer um outro tipo de pessoas, que me foram catapultando para além dos meus limites. Um pé dentro, um pé fora.
Descobri a minha fé e uma outra comunidade, completamente diferente daquela onde vivera toda a minha vida. Novas formas de ser, novas partilhas, imensas descobertas, aos quinze anos, quando tinha já muito bairro e nenhuma catequese. Não estava formatado, por isso, nem deixava que me formatassem com facilidade. Foi uma descoberta de Jesus que teve muito de encanto e muito de questionamento, muito de confronto entre o que sentia, o que vivia e o que testemunhava. Foi, por isso, uma adesão muito pessoal e profunda, muito solitária, embora muito mergulhado na experiência de uma comunidade pequena e fechada como era aquela onde me foi apresentada a dimensão da fé. Muito contestatário, armado em puto do bairro com todas as asneiras que isso implica, acabei por ter que mudar de ares. Um pé dentro, um pé fora.
Novos ares permitiram-me conhecer a minha-mais-que-tudo e ganhar uma outra dimensão pessoal. Já adulto assentei, finamente, as bases da minha vida: fé e família. Ainda hoje, excetuando talvez o FCP (que é visceral), tudo o que penso e faço de significativo anda à volta disto. Não há filme, não há notícia, não há acontecimento, não há silêncio que não seja preenchido com uma destas dimensões. É única coisa na qual sou inteiro, na qual tenho ambos os pés no mesmo sítio.
Fui passando por vária profissões, sempre com um pé dentro e um pé fora. Nunca fui apenas mais um e nunca fui nada de especial, no longo percurso que me trouxe até aqui. Se acreditasse em coincidências diria que são coincidências. Não acredito. Acredito sim que Deus me fala por muitas formas, através de muitas pessoas, e de muitos acontecimentos. Pequenos e insignificantes, como é típico da sua forma de agir. Tudo o que fui fazendo, tudo o que fui sendo, tudo o que fui descobrindo, encontra, hoje, a sua plena aplicação. Num sítio e noutro, completamente diferentes entre si. Num sítio e noutro, tão parecidos no que é essencial. Foi aqui que aprendi e finalmente aceitei que estar com um pé dentro e um pé fora não é necessariamente sinal de menoridade. Que não tem necessariamente que me faltar sempre um danoninho para eu poder ser o que quer que seja. Que tenho os meus próprios tamanquinhos e me posso sentir realizado neles. Que, se for chamado a unir duas margens de um rio tenho que ter, necessariamente, os pés em lugares diferentes. Foi aqui que aprendi e finalmente aceitei porque motivo sempre tive um pé dentro e um pé fora.
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