20130228
Mais uma vez, como acontece sempre que regresso de uma experiência forte de partilha - e, particularmente nos últimos anos, tenho tido algumas, Graças a Deus! - obrigo-me a um processo de desmame. Quando acordo tento calar as músicas que me acompanharam os sonhos e que teimam em fazer-me companhia no pequeno almoço,, tento não falar (mais uma vez!) do assunto para não ferir ainda mais uma ausência imposta, tento convencer-me, a cada momento, que o que vivi serve apenas para alimentar o que vivo todos os dias.
Para todos os efeitos, esta é sempre uma tentativa de gestão da perda. Que, para "ajudar", é invariavelmente acompanhada por algum sentimento de culpa. Como se não fosse justo ser feliz fora daqueles a quem tanto amo e que me são tão importantes. Como se tivesse a obrigatoriedade de, estando longe da sua vista, penar pelos cantos, chorar baba e ranho, de tal forma sinto a sua falta. Como se, de alguma forma, a felicidade apenas fizesse sentido nos momentos em que os tenho junto de mim, e não apenas dentro de mim. Como se, de alguma forma, me fosse vedado ser feliz, verdadeiramente feliz, junto de outros que comigo também caminham, também partilham, de tal maneira que também acabam por habitar cá por dentro. Como se, de alguma forma, os estivesse a trair por conseguir ser feliz sem os ter à minha beira.
Isto é algo com que tenho que aprender a lidar, para melhor poder viver. Não gosto de espartilhos, não gosto de convenções, não gosto de fazer de conta, não gosto de nada que possa limitar uma autenticidade que aprendi a conquistar (sem nunca saber quem conquistou quem) e que, à medida que o tempo avança, me é cada vez mais preciosa. Tenho, por isso, que tentar entender este sentimento de posse - no sentido em que me sinto de alguém - para o poder trabalhar dentro de mim. Acredito que, assim como os meus filhos me vão ensinando a deixá-los voar (ainda que sempre sob o meu olhar atento), talvez um dia eu me permita voar (ainda que deseje, no mais íntimo de mim mesmo, que nunca desliguem o seu olhar do meu voo).
É que, em boa verdade, estou um bocado farto de desmames.
20130227
Quando soube que Ratzinger seria o novo Papa não gostei nada da ideia. Vinha rotulado como ultra-conservador, Grande Inquisidor, temível perseguidor de todos os que ousavam pensar e viver a Igreja out-of-the-box. E era alemão, o que, para mim, nunca é grande cartão de visita.
A realidade, no entanto, foi bem diferente. Extremamente profundo nos seus escritos, cedo revelou ter ele próprio um pensamento e uma forma de estar out-of-the-box. E eu gostei muito disso. Gostei do facto de ser um homem do recolhimento e não das multidões, do pensamento profundo e não da espuma, mais do fazer que do aparentar. Gostei do seu esforço em reunir o rebanho voltando a chamar os ultra-conservadores (se Taizé nos ensina alguma coisa é que, desde que haja respeito mútuo, há espaço para todos. Eles não respeitaram, é um problema deles. Bento XVI fez o que tinha a fazer). Gostei do seu discurso exigente, claro, sem meias tintas, propondo o que tinha a propor sem se preocupar em demasia se era mal interpretado, ou se as pessoas gostavam ou não. Gostei muito desta sua versão contra a corrente, mas com pés na terra, devidamente alicerçada numa profunda cultura humana e teológica, que contribuiu enormemente para que deixássemos de ser vistos, nos areópagos internacionais, como uns pobres coitados que não sabem fazer uso da razão. Gostei muito da sua acção nestas coisas horríveis dos escândalos sexuais, das pedofilias, das ligações bancárias, não contribuindo mais para que se tapasse o sol com a peneira. Gostei da forma como preparou a sua saída, reequilibrando o sempre difícil equilíbrio de poderes na Cúria. Gostei da forma como escolheu sair, racionalmente, de cabeça levantada. Se, na altura, considerei muito importante que João Paulo II se deixasse envelhecer aos olhos de todos nós, restituindo a dignidade à velhice num mundo que idolatra a aparência do novo, considero muito importante que o Papa, hoje, se mostre disponível para o despojamento, para a dessacralização da figura papal, contribuindo para que o papado suba mais um degrau na percepção que nós próprios temos da Igreja-instituição.
No entanto, nada do que acabei de escrever faz o mínimo sentido aos olhos da fé. Não tenho que gostar mais ou menos do Papa. Não tenho que dizer que o JPII é que era, ou o BXVI era assim ou assado. Tal como a história destes dois homens revelou (tão diferentes como pessoas, tão diferentes como papas!), se esta fosse apenas uma coisa dos homens, a Igreja não seria Igreja, não seria âncora, não seria caminho, não seria já mais que mais um grupo de pessoas, mais ou menos numeroso, mais ou menos bem intencionado, mas sem qualquer ligação a Jesus Cristo. O que a história destes dois últimos papados revelou é que o Espírito Santo zela sempre por nós, particularmente quando nos julgamos mais abandonados (ou mais poderosos), ou quando nos zangamos o suficiente para cedermos à tentação de tomarmos a Igreja exclusivamente nas nossas próprias mãos. Humanas e, naturalmente, falíveis.
Também eu espero ansiosamente pelo próximo papa. Também eu opino sobre quem deveria ser o próximo papa. Também eu vou ter expectativas defraudadas, vou não perceber muitas coisas, vou-me surpreender com outras, vou dar Graças a Deus por muitas mais.
Porque esta é a minha Igreja.
À qual me orgulho de pertencer.
20130225
Apesar de, como todos nós, os utilizar com alguma frequência, não sou adepto de chavões. São mais uma forma de etiquetarmos as coisas, de as rotularmos e, justamente como as etiquetas e os rótulos, os chavões poderão ser, quando muito, pontos de partida, mas nunca caminho a ser percorrido. E muito menos pontos de chegada.
Um dos sentimentos mais escutados da boca daqueles que todos os anos voltam a Taizé é o de medo: no primeiro ano foi sempre tão bom, tão especial, tão único, que o regresso apenas pode originar frustração das expectativas. Quando lá estão, no entanto, invariavelmente se apercebem que não faz sentido compararmos situações e experiências que não são, de todo, comparáveis. Porque as nossas próprias circunstâncias são outras, porque a nossa disponibilidade é outra, porque até aqueles que nos acompanham são outros... porque, no fim de contas, apenas Taizé se mantém, lá, à nossa espera, quase imutável, ao fim de todos estes anos.
Taizé é, também por isso, importante para mim. É como se fosse um Porto Seguro, o meu Porto Seguro, onde, volta e meia, atraco o meu barco, recolho as velas sujas e gastas, e me detenho a remendá-las, com toda a calma do mundo, com todo o tempo do mundo (e como o tempo é diferente, em Taizé!) confiante que o Pai tratará de amainar a tempestade que, lá fora, continua.
Sei sempre, no entanto, que haverá um tempo para partir, que o meu barco não foi feito para ficar atracado porque encontra a sua razão de ser no mar alto. As conversas que tivemos, as nossas caminhadas, as nossas partilhas e silêncios, os encontros dos nossos olhares (que se tornaram cúmplices), as vezes que conseguimos desligar a cabeça do coração e permitimos que este corresse, finalmente livre, ao encontro do outro, são por isso mantimentos que guardo cuidadosamente, deliciosamente, religiosamente! Sei que a eles irei recorrer sempre que o luar me faltar e a solidão da noite escura bater à minha porta, ou o vento gelado do norte romper uma das minhas velas e eu já não conseguir remar.
Sim, porque a minha barca desafia todas as leis da física: quanto mais pessoas carrega, mais leve se torna a viagem.
20130222
Para mim, a Casa do Pai também tem muitas moradas. Encontro-O muitas vezes, em muitas situações, e aprendi já a não desdenhar cada local, cada pessoa, cada situação, como descobertas de caminhos para que esse encontro profundo aconteça. Há, no entanto, lugares especiais, que nos tornam igualmente especiais.
Tive a sorte de regressar àquela que é, para mim, uma das Moradas Permanentes do Pai: Taizé. Foi muito interessante apreciar como evoluí a todos os níveis, desde a minha primeira vez. Recordo-me que nesse ano caí absolutamente de queixos, num encontro comigo próprio que vinha sendo adiado há demasiados anos. Deparei-me comigo, com o meu silêncio, com a minha solidão (que me era auto-imposta) quase insuportável, mas, sobretudo, deparei-me pela primeira vez com um Pai que nunca me perguntou porque levara tanto tempo a chegar até Ele. E que nunca me recriminou por isso. Um encontro tão decisivo na minha vida que nunca senti necessidade de reatar laços. Agora, volto a Taizé não com o desespero do Filho Pródigo "Pai, já não sou digno de ser chamado Teu filho." mas com a confiança do bom ladrão "Hoje mesmo estarás comigo no Paraíso".
Taizé é também importante para me nivelar, para me recolocar no lugar a que pertenço. Eu não acredito em coincidências, que tento ler como toques de Deus, como oportunidades que Ele me dá para aprender com o que me vai acontecendo. Foi por isso muito bom ver como eu próprio fui sendo desmontado naquilo em que, demasiadas vezes, esqueço ser muitíssimo pouco consistente. Ter o privilégio de testemunhar alguém possuidor de uma construção teológica com uma solidez que me é perfeitamente inatingível, como o Pedro; ter a tremenda sorte de poder partilhar inseguranças, duvidas e receios com quem sabe verdadeiramente escutar e processar o que escuta como a Isabel e a Elisabete; criaram o clima propício para que eu pudesse tomar o meu tão fundamental quanto premente banho de humildade.
O meu encontro comigo, o meu confronto com o espelho, que naquele primeiro ano tivera sido despoletado pelo Pai, foi agora tornado possível por aqueles que, mesmo sem terem disso consciência, carregavam os toques de Deus que me permitiram voltar a poisar os calcanhares no chão.
E poder, assim, retomar a minha caminhada.
Afinal, ninguém chega longe a caminhar em bicos de pés.
20130205
Ultimamente, para desgosto meu, tenho sentido necessidade de pedir desculpa por não conseguir gerir o meu tempo convenientemente. Apesar do muito trabalho que sempre tenho, normalmente consigo fazer tudo. Lembro-me de uma máxima que tinha num anterior emprego: os impossíveis faço já, os milagres demoram mais algum tempo. Desde sempre que gosto de ter que correr, de ter os meus dias ocupadíssimos, de ficar surpreendido com o final do dia, que se aproxima a passos largos.
No entanto, apesar de viver a correr, sempre fui tendo tempo para os meus. Os meus filhos, a minha mais-que-tudo, os meus amigos. Sempre fui conseguindo interromper o que estava a fazer, por muito urgente que fosse, porque valores mais altos se levantavam. Era uma forma de não permitir que a minha profissão se sobrepusesse ao que tenho de importante: as pessoas da (na) minha vida.
Acredito piamente que, particularmente no rol de papéis que desempenho, todos os dias, a nível profissional, ter tempo para as pessoas é absolutamente fundamental. Que poderei sempre ser um bom técnico mas que se for apenas técnico serei sempre um desperdício. Não quero acreditar que seja esse o meu papel principal, o meu core business, a área onde possa fazer a diferença. Até porque se eu deixar de ter tempo para quem me rodeia acabarei certamente por mirrar, como uma planta que não é regada.
20130204
Trabalhar neste novo projecto tem sido, a todos os títulos, um verdadeiro desafio. Lembro-me muitas vezes do que um amigo me contava que lhe tinham dito na sua experiência de missão no Brasil: "Pobreza cansa". Não tem sido fácil para nenhum de nós passar os dias a saltar entre dois mundos completamente distintos. Passamos parte do nosso quotidiano num mundo de primeira, com ar condicionado, com condições de trabalho absolutamente exemplares, quer em termos físicos quer psicológicos: excelentes pessoas, excelentes companheiros, excelentes alunos que todos os dias nos colocam desafios que nos elevam ao melhor do que temos e somos para dar. Depois, a meio do dia, mudamos completamente de cenário: condições físicas que "até não são más", salas geladas e com correntes de ar, pessoas para quem o mínimo a exigir já é demais para o que estão habituados a dar. São dois mundos completamente distintos que, apesar de distarem entre si algumas centenas de metros, não convivem naturalmente, não se interligam naturalmente, e mesmo quando o fazem é notória a estranheza mútua.
Dou muitas vezes comigo a pensar que não quero absolutamente desligar-me do primeiro mundo. Nem sequer é porque estranhe o segundo - revisito-me sempre quando lá estou - mas temo muito esquecer-me daquilo é é exigível, daquilo que é possível, e acomodar-me aos mínimos, tal como eles, e baixar as minhas expectativas, baixar as minhas exigências e pensar, como muita boa gente que conheço, que "até nem é mau". É espantoso - e chocante - como aquilo que consideramos absolutamente imprescindível para nós - o conforto, a qualidade das instalações, o aquecimento, o nível do ensino - se torna absolutamente secundário quando se trata dos outros. Perder o contacto com o que deve ser servirá apenas para me acomodar. E isso não seria bom para ninguém.
É, amigo, pobreza cansa mesmo!
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