20110331
Até há bem pouco tempo, o meu maior sonho era poder recomeçar. Sempre! Infinitamente! Passava a minha vida à procura, não do que não tinha, mas do que não era: um homem impecável, sábio, muito responsável, muito querido por todos, muito conceituado, que deixasse uma marca de amizade, de bondade, por quem passasse.
Ultimamente não tenho sentido essa necessidade. Não porque entenda que tenha atingido a perfeição, nada disso, mas provavelmente porque vou convivendo melhor com a minha realidade. E, se calhar, até me sinto mais perto do que posso ser. Simplesmente adoro a minha mulher e os meus filhos, que são tudo para mim. Adoro (literalmente) o meu Deus com quem me relaciono a cada momento e por quem professo uma religião com a qual, à medida que me vou percebendo que também ela é pecadora, me identifico cada vez mais. Todos os dias sinto um enorme prazer me me levantar para vir trabalhar porque tenho a tremenda sorte de lidar todos os dias com miúdos e graúdos que são muito mais do que eu alguma vez poderei ser e, por isso, aprendo todos os dias. Quase todos os dias estudo, quase todos os dias me deito com a sensação de dever cumprido, apesar de passar quase todos os dias a fazer o pino numa correria para não deixar ninguém ficar mal.
Se me falta alguma coisa? Claro que sim. Quase todos os dias falta-me um pouco mais de paz, de silêncio, de recolhimento. Falta-me sempre algum dinheiro que me permitisse - e aos meus - encarar a vida mais desafogadamente. Falta-me sempre um pouco mais de concentração e de capacidade de trabalho que me permitisse chegar ao fim de cada dia e sentir que fiz tudo o que tinha a fazer. Mas nada do que me falta me faz realmente falta. São coisas que eu gostaria de ter mas que levam a desejar chegar um pouco mais longe a cada dia.
Curioso! Não há muitas vezes em que sinta assim. Realmente assim.
Estou a ficar velhote.
Deus seu louvado!
Se há algo que me deixa perfeitamente fora de mim é quando cometo alguma camelice daquelas que apenas eu é que não vejo. E quando, ainda por cima, essa camelice - que é real - é mal interpretada por outros, que vêem nela alguma intencionalidade negativa, aí eu fico desolado. Não culpo ninguém a não ser eu próprio, por ter dado o flanco.
É por estas e por outras que uma reputação leva toda uma vida a ser construída. Por muito bem que nos tentemos portar, por muito esforço que façamos em permanecer para cá do risco, acontece sempre alguma coisa que, em segundos, provoca um rombo na forma como os outros nos olham.
Claro que na génese disto tudo está a excessiva importância que atribuímos à forma como somos vistos. Claro que se estivermos absolutamente certos do que fazemos o impacto será menor.
Claro que as intenções são boas e somos sempre incompreendidos.
Claro que isso tudo e mais alguma coisa.
Mas é igualmente claro para mim - e infinitamente mais importante - que eu não sou uma ilha e que tenho que ter mais cuidado, e que os outros são importantes para mim e que se eu pensasse mais um pouco na sua perspectiva muitas camelices seriam evitadas.
E que, no fundo, isso é que importa.
O resto não passa de meras justificações.
20110329
Desde que me conheço que tenho um respeito enorme pelo Mestre Tempo. Respeito, não medo, porque acredito que o tempo corre sempre a nosso favor.
Apesar de ter chegado há menos de um mês, Taizé faz já parte daquelas memórias longínquas que quase parece mentira terem acontecido. Depois de Taizé já fiz mil e uma coisas, participei em muitas actividades, tive grandes e pequenas derrotas, grandes e pequenas vitórias. É um pouco como se eu fosse o Japão e o meu quotidiano fosse enterrando experiência atrás de experiência, vivência atrás de vivência, não me permitindo sequer saborear convenientemente aquilo que vou vivendo, sujeito que estou aos malabarismos do tempo.
Paradoxal, esta situação, quando Taizé deveria servir exactamente para parar e viver o meu tempo de uma forma distinta. Mas Taizé, como dizia um amigo, é um oásis onde paramos para abastecer por um curto período de tempo e depois seguimos viagem, para onde a vida acontece. Como em qualquer oásis, temos a sensação que o tempo pára: há água viva, há sombra, há pessoas que, tal como nós, estão de passagem, há tempo para repousar e ganhar forças, há encontro, verdadeiro encontro.
Taizé não é um lugar, é um tempo.
Fora do nosso tempo.
Mas é neste tempo que temos que viver.
Apesar de tudo.
20110304
Não fiz as malas, ainda. Nem era preciso. Umas calças de ganga, roupa interior, um calçado extra, umas camisolas quentes e toca a andar.
Essa é apenas uma das coisas boas de Taizé: apresento-me tal como sou, inteirinho da silva, com os meus medos, as minhas dúvidas, as minhas pequenas conquistas e glórias, as minhas enormes e estrondosas derrotas. Apresento-me assim, como Egas Moniz, com a corda ao pescoço, despojado de tudo o que tenho para poder dar lugar ao pouco que sou. Ou ao que Deus quer que eu seja.
Taizé é o meu ponto de encontro (há pouco tempo alguém lhe chamou o spa da alma) com os outros e com Deus a partir de mim, ou comigo e com os outros a partir de Deus, pois tudo acontece ao mesmo tempo, num enorme turbilhão de interioridade que, paradoxalmente, é sereno como um enorme lago sem brisa. Tudo em Taizé é paradoxal: duas mil pessoas e não há confusão, dois mil jovens e silêncio profundo, duas mil pessoas para comer e dois mil voluntários para ajudar, escasso ritual e duas mil pessoas a rezar... tudo é paradoxal,tudo é feito para que o mais simples possa chegar ao mais fundo, à imagem de Jesus.
A perspectiva de Taizé deixa-me assim, de peito cheio, feliz da vida, encantado, como me sentia em miúdo uns dias antes do Natal: "nunca mais chega!!!". Resta-me agora atirar qualquer coisa para a mala, desapertar o nó do coração (que fica pequenino, pequenino, sempre que me despeço da Isabel e dos meus filhos), agarrar na viola, e ala que se faz tarde.
Deus seja louvado!
20110302
No livro, fala várias vezes do rosário que fez e usava no pulso, das orações. Como conseguiu nunca perder a fé?
Não podia perdê-la. Mas na selva confrontei-me com essa fé e pensei: eu creio ou não? A fé é real e honesta ou um instrumento psicológico? Essas questões foram muito profundas. Tive a sorte de ter comigo a Bíblia. Fora do cativeiro já a tinha tentado ler mas adormecia sempre, era um óptimo soporífero. Lia três páginas e pronto, porque aquilo é muito aborrecido... mas o cativeiro é muito mais aborrecido por isso lia a Bíblia porque não tinha mais nada que fazer. E gostei muito do Deus que lá encontrei.
Nunca questionou "se Deus realmente existe como é possível isto acontecer?"
Claro! Mas essa não é a pergunta que temos de fazer, a pergunta é: como posso eu sair daqui e enfrentar isto que me aconteceu? A relação com Deus muda. Achamos que Ele faz connosco o que quer, como se fôssemos marionetas. Mas não. Deus criou o mundo com liberdade para todos, para fazermos o que quisermos. A liberdade, é esse o tema central. E pensei "isto que eu estou a viver é também fruto da minha liberdade e das minhas decisões".
http://www.ionline.pt/conteudo/107899-ingrid-betancourt-escrever-permitiu-aceitar-me-e-perdoar-me
Fez-me pensar, esta entrevista a Ingrid Betancourt. Nunca sabemos o que a vida nos reserva, aquilo que nos espera, e por vezes - muitas vezes! - apenas encontramos uma verdadeira razão para o que fazemos muito tempo depois de o termos feito.
A minha vida é o exemplo perfeito disso.
Durante anos li, reli, voltei a ler. Estudei de tudo mesmo sem o fazer sistematicamente. Apaixonei-me pela leitura, pela fé, pelas pessoas. Passei fins-de-semana inteiros em retiros, em formações, em estudos. Quando me perguntavam o que faria daquilo tudo (quando vinha de uma retiro da catequese, a minha avó dizia-me sempre com aquele olhar maroto: "devem-te pagar muito bem.") eu não sabia responder mas, porque me sentia bem, isso bastava-me. Hoje, sem que nada previamente o indicasse, tenho um trabalho de sonho que me permite conjugar todas as minhas paixões: fé, livros e pessoas.
Excelentes pessoas.
Para que serviu aquilo tudo antes de aqui chegar? Justamente para aqui chegar.
A mim basta-me.
20110301
Durante a formação que nos tem preparado para Moçambique, a determinada altura, perguntavam qual a nossa motivação que nos levou a participar nesse projecto. Tínhamos acabado de falar dos nossos medos - e esses para mim são claros: saudade, saudade, saudade - mas nas motivações empanquei. Ainda hoje não consigo dizer com clareza o que me leva a participar nestas coisas.
Eu adoro estar em casa, no meu canto, sem fazer nada, ou alapado no sofá a vegetar. Adoro o meu sossego, uma boa música, um bom livro, uma boa conversa. Adoro quando estamos todos em casa a ver um filme ou a cantar ou então quando saímos todos juntos na galhofa. Adoro um fim-de-semana ou um jantar a dois com a minha mais-que-tudo e a nossa capacidade de envolvência mútua que transforma uma tasca num 5 estrelas. Todo eu sou, verdadeiramente, voltado para a vida familiar.
Excepto...
Vibro mesmo com estas coisas da malta nova. A sério. Basta que alguém me conte que está a pensar em fazer uma caminhada, um retiro, um qualquer passeio onde se canta, se reza e haja alegria, que eu mordo-me todo. Começo logo a pensar no que faria, no que cantaria, nas pessoas que vão e que eu gostaria de conhecer melhor, na partilha, naquela paz da oração e do recolhimento... e quando dou por mim já mergulhei de cabeça.
A minha mais-que-tudo não acha piada nenhuma a isto tudo. Alguns dos meus filhos também não, por acaso. Entendem que passo demasiado tempo fora de casa, com os outros, e que lhes roubo esse tempo. Por vezes tento explicar-lhes que as duas coisas não são incompatíveis, que o tempo que passamos juntos é de qualidade, que estão sempre comigo, e que seu for um pai feliz somos todos mais felizes.
Quando estou mais só e penso a sério nestas coisas - o que acontece sempre que se aproximam as partidas, como agora - sinto claramente que estou a dar resposta à minha vocação, que é a minha forma de rentabilizar os meus dons, de me colocar, nos outros, ao serviço do Deus que amo. Sei, contudo, que esta justificação quase nunca é suficiente para aqueles que me querem junto deles. Que precisam que eu esteja junto deles.
Percebe-se melhor porque eu não sou adepto do casamento dos padres. Quem sofria era a família.
E o resto é história.
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