20190131






É o Paradoxo, assim mesmo, com letra grande, como a inquietação que produz. Nada me faz pensar tanto na vida como a morte. A mim e à generalidade dos mortais, penso eu de que. A questão não será portanto, pensar na morte e na vida, mas o que fazemos com o que temos: a inevitabilidade.

20190130




Juntamo-nos uma noite destas, por altura do Natal, apenas para... jantarmos. Em tempos, o arroz de frango ao sábado à noite era um ritual. Qualquer que fosse a casa, qualquer que fosse o tempo lá fora, qualquer que fosse o programa de fim de semana, nada nem ninguém escapava ao arroz de frango. Depois vieram os filhos e as educações diferentes do filhos e as dificuldades dos filhos nas partilhas dos brinquedos e as manias dos pais com os filhos e começou a haver sábados sem arroz de frango e arroz de frango sem sábados, cada um em sua casa. No entanto, quando nos juntamos, sempre que nos juntamos, é como se não tivesse existido interregno, é como se tivesse assim desde sempre, para sempre. 

Estarmos juntos como se não tivesse existido tempo nem distância parece-me ser um excelente barómetro para o amor. Sabemos todos que a vida se vai instalando sobre os nossos desejos, os nossos anseios e até as nossas escolhas preferidas e que às tantas descobrimo-nos a correr atrás do prejuízo. Na verdade, acredito que, apesar das confusões momentâneas, aquilo que nos é verdadeiramente importante acaba por se impor, seja sob a forma de alegria, seja sob a forma de mágoa. Conheço gente muito boa que tem a mágoa profunda, silenciada e escondida por omnipresente companheira de quotidiano. Porque, de uma forma ou de outra, o que é verdadeiramente importante nunca perde a sua importância.
 
Quando nos juntamos, sempre que nos juntamos, é como se tivéssemos estado sempre juntos. Não há mágoa, não há azedume, nem sequer há tapetes para onde possamos varrer o inconveniente. Sabemos que, justamente porque gostamos imenso uns dos outros, em determinadas alturas da vida há coisas mais importantes que uns e outros, e que, ente nós, a nossa própria família sempre teve a primazia, como deve ser. Isso em nada nos retira, apenas acrescenta. Até porque sabemos que, uns e outros, estamos sempre prontos e disponíveis para o que for necessário. Sem tempo. Sem distância. Como acontece entre quem se ama.


20190129






Há dias assim. Ontem, pela reação dos meus filhos, ganhei um novo estatuto: sou oficialmente velhote. Pela primeira vez terei que tomar medicamentos a um ritmo diário para tentar controlar uma enfermidade.  Não será nada de especial - espero eu - mas o entreolhar dos meus filhos à mesa do jantar foi profundamente reveladora. Se eles forem como eu pensam que os pais não envelhecem. Eu próprio, daqui a pouco, estarei próximo da idade que ainda penso sempre que o meu pai tem, à volta dos sessenta.

Creio que fui um pai muito energético. Sempre o primeiro nas brincadeiras, sempre o primeiro a rebolar pelo chão sem limites, sempre o primeiro a chegar à pista de dança, sempre o primeiro a não temer as figuras tristas da galhofa. E isso ficou-lhes na memória e no corpo. Por isso, mais recentemente, quando me nego nas brincadeiras mais físicas ou me afundo no sofá , recebo invariavelmente os seus olhares de soslaio e as suas bicas da reação. Por isso a sensação que tive ontem foi de que finalmente lhes caiu a ficha.

Há algo de um bocadinho assustador no envelhecimento do corpo. Porque envelhecer é ficar fisicamente limitado, para mim a mais difícil limitação. Mesmo na minha atividade profissional - o que eu adoro fazer no que faço - são comuns as longas viagens de camioneta, as caminhadas de vinte quilómetros, as dormidas no chão, o cantar e dançar para por o pessoal a cantar e a dançar, e tudo isso me começa a ser um bocadinho mais difícil. Claro que terei que me ajustar, que me reconfigurar, mas isso não deixa de ser um bocadinho - só um bocadinho - revelador do que aí vem. E isso é um bocadinho - só um bocadinho - assustador. Ainda.

20190128


Faz-me sempre alguma confusão quando, em alguns foruns, dizem mal das redes sociais. Se o WhatsApp deixasse de funcionar, a minha vida, a nossa vida familiar, seria bem mais difícil.

Chegamos a uma altura da vida em que alguns dos nosso filhos andam espalhados, como bom semeador faz acontecer com a semente. Se estão neste ou noutro país, se estão mais a norte ou a mais a sul, até se ainda estão lá em casa ou não, chega a não ser assim tão importante porque a maioria das vezes o diálogo mútuo, para acontecer com todos ao mesmo tempo, tem mesmo que ser via rede social. Mesmo com os que veremos no final desse dia, ou nessa semana, porque acordamos e saímos a horas desfasadas, os bons dias são dados no espaço da família no WhatsApp. As coisas que vão acontecendo, as notícias que vamos lendo, o que nos causa espanto, riso ou inquietação é aí colocado, às vezes até de forma mais espontânea, e que muitas vezes tem a arte de me comover. Basta que um exame não corra como esperado, ou que se conquiste algo de significativo, e é verdadeiramente comovente ver como eles se apoiam, se entreajudam e se regozijam. Juntos! Claro que não nos é permitido ver, ler e acompanhar tudo, que eles têm o seu grupo à parte, mas o que é de todos é mesmo de todos, acompanhado por todos, sentido por todos, vivido por todos.

Esta é uma nova forma de ser família. Provavelmente - na verdade não tenho disso a certeza absoluta - preferiríamos uma maneira mais tradicional, no mínimo mantendo os nossos pequenos almoços e almoços de domingo, mas sabemos que a vida é outra e as tradições se renovam de acordo com as circunstâncias. Por isso, de há uns tempos para cá temos outra tradição: os bons dias são, invariavelmente, dados no WhatsApp. E aí respondidos. E é muito bom quando vemos as suas respostas: estão bem. Podemos prosseguir o nosso dia :-)

20190125




«Procurar reconciliação e paz implica uma luta dentro de si. Não é um caminho fácil. Nada de duradouro se constrói facilmente.» Ir. Roger

Tem sido uma constante nos últimos anos: por força das inscrições, conversas, combinações, preparativos vários, começo a antecipar Taizé na minha alma. É um regresso a uma das minhas casas da fé, que a vida já me permitiu ter várias. Há a casa casa, a Capela de São José, onde tudo começou e onde tenho as minhas raízes; há a casa lá de casa, a Igreja de São Pedro, onde lancei - lançamos - as sementes que são, hoje, as raízes do nós; há a casa de todos os dias, a Capela do Colégio, onde todos os dias me recolho, ainda que por breves instantes; e há a casa do eu mesmo, a Igreja de Taizé, onde iniciei o percurso, nunca acabado, de reconciliação comigo próprio. Todas são a minha casa, em todas encontro, invariavelmente, refúgio, todas elas sabem a reencontro, todas elas me impulsionam. Todas elas são memórias e orações e cânticos e lágrimas, sorrisos e partilhas intensas. E imensas. Em todas elas fui sendo eu à medida que fui descobrindo como ser eu, e as suas paredes e chãos testemunham os imensos eus que se foram sucedendo alternadamente, como eu sou. Em todas elas pedi perdão por quem sou, ainda mais por quem não consigo ser, umas vezes cansado, outras zangado, quase sempre tremendamente desgastado e nada mais tendo para colocar junto ao altar senão os despojos das imensas batalhas travadas comigo mesmo. É aí, junto de cada altar, que me procuro primeiro, sempre, que me refugio primeiro, sempre, que me encontro primeiro, sempre, que regresso primeiro, sempre, como o filho mais novo que, envergonhado, regressa aos braços abertos do Pai.

Hoje a Laura foi para os cuidados paliativos. Recebi a notícia, do Paulo Sérgio, há poucos minutos. Hoje, mãe de dois filhos, esposa do Noé, mas para mim sempre aquela miúda meio complicada que se escondia detrás de uma arrogância que um olhar mais atento sabia ser insegurança de patinho feio. Quando começaram a sair juntos eram daqueles por cuja relação não dávamos um tostão. Hoje, o Noé corre para junto dela em cada minuto que tem de seu para que cada minuto possa ser de ambos. Conheci-os miúdos, dei-lhes catequese infantil, de adolescência, acompanhei-os no Navegar, no RH+, no namoro, à distância no casamento.

Nenhuma casa implica apenas boas memórias. Muito menos a casa do Pai. Ou não seria casa mas ponto de passagem, fugaz e superficial. A Laura será mais uma daquelas memórias que ultimamente deram novo sentido àquela parte da eucaristia em que somos chamados a recordar os que já partiram. Já me começa a ser escasso o tempo concedido para os recordar a todos! 

20190123



"Solitude is for me a fount of healing which makes my life worth living. Talking is often torment for me, and I need many days of silence to recover from the futility of words." – Carl Jung


Conversava com alguns miúdos como gostamos de o fazer. Eu, que quando tinha a idade deles jamais me atrevi a conversar com um adulto, calculo que lhes seja pelo menos tão saboroso como para mim fazê-lo. É um dos verdadeiros privilégios da minha vida: poder conversar com quem quer partilhar de forma despretensiosa, eliminando as barreiras que cada um de nós se impôs. Na altura falávamos de Taizé e do silêncio e eu partilhei a minha experiência de silêncio no retiro dos jesuítas e de como isso me soube bem.

Hoje, tinha esta foto e esta frase de Jung - alguém cujo pensamento vou descobrindo à medida das necessidades - e desde logo fiquei cativado. Na realidade, é um pouco assim que me gosto de imaginar no futuro. A calma, o silêncio, a borda da água, os papéis na mão - o cachimbo também faz muito parte desse meu imaginário que me acompanha desde sempre - porventura a sabedoria profunda que a foto me inspira. Desde miúdo que quero muito que o meu futuro, a minha velhice seja algo como isto. Mas não só. Falta aqui algo que, mais tarde, se juntou ao imaginário:  os filhos e os netos, a pequena horta, o pequeno pomar, os ovos e as pequenas cestas de vime onde eles põem as novidades (como no campo se diz) para levarem para casa no final daquela maravilhosa tarde de domingo. Agora sim, acabada a algazarra que enche a vida, teremos a semana para o silêncio, o sossego, as caminhadas, os livros, a música... para nós.

Sonhar é-me tão fundamental como respirar. Desde sempre. E é-me tão natural que com a mesma naturalidade se tornou quase uma extensão da vida vivida. Mais, muito mais que antecipar, sonhar é sentir já o futuro, viver já o futuro, e quase inalar os aromas, escutar os sons, quase sentir na pele o fresco da manhã naquela borda da água.

20190115



Se perder não dói, não se perde, deixa-se ir. Não há perda sem dor. Qualquer que ela seja. qualquer que seja o seu tamanho, o lugar que ocupa, a importância que lhe damos. Pode doer um pouco menos, por relativamente pouco tempo, ou pode arrastar-se dias, semanas, meses, anos a fio, sem que aquela sensação de aperto nos permita voltar a encher os pulmões de vida.
Fazem-me alguma confusão aqueles que permanentemente encolhem ombros. Que não se ligam. Que não batalham. Que apenas habitam a superfície e não conhecem outro horizonte senão aquele se lhes apresenta ao olhar. Até têm metas e objetivos e elaboram rotas para os alcançar, mas ficam-se por aí, sem ousar, sem arriscar, sem descobrir o âmago, a intensidade, a alegria esfuziante do ganho, a dor desesperante da perda. Porque viver intensamente é também sentir intensamente. É arriscar muito, é ganhar muito, é perder muito, é assenhorar-se do futuro, ainda que ilusoriamente e por breves momentos, porque logo a seguir é-se dono de coisa nenhuma. É amar, muito, e loucamente.
"São-lhe perdoados os muitos pecados porque muito amou. Àquele a quem pouco ama, pouco se perdoa." Amor e perdão estão intimamente ligados. Amor e risco estão intimamente ligados. Risco do excesso, risco do descontrolo, risco do incorreto, risco do inexplicável, risco da ausência de resposta cabal, racional, certinha, quando assumimos a coragem de a procurar em frente ao espelho. Por isso, ao amor do Pai está sempre associada a Sua misericórdia, Ao seu imenso Amor, o Pai associou a Sua maior misericórdia. Porque sabe que aquele que arrisca amar tem muito a ser perdoado. E precisa, sempre, de voltar aos braços abertos que vêm ao seu encontro.
Eu sei.

20190113


Conversávamos de como ainda somos construção. Supostamente, a esta idade, tudo deveria estar já consumado. Acabadas as preocupações, acalmadas as tarefas, sossegadas as inquietações, tudo deveria estar a convergir para a sabedoria e correspondente serenidade. Mas não. Quase todos os dias sou surpreendido por novidades, dentro e fora de mim, que me obrigam a corrigir rotas, redefinir atitudes, alterar procedimentos. Raras são as semanas em que algo não é desconstruído, seja pela realidade interior, seja por imposição externa. Penso sempre no modo de fazer do Pateta, esse filósofo da vida contemporânea que me acompanhou desde sempre. O Mickey, ao vê-lo de cinzel na mão perante um bloco de granito, perguntou-lhe o que ia fazer e ele respondeu "um elefante". "Mas sabes esculpir um elefante?" "É fácil, basta retirar do bloco tudo o que não é parecido com um elefante!".

Recentemente, uma das minhas inquietações mais profundas consistia em saber como me iria apresentar diante do meu Deus. O que Lhe diria? Como teria coragem de prestar contas de mãos cheias de nada? Talvez seja isso que esteja a acontecer. Talvez esteja a ser esculpido segundo o método do Pateta para que vá ficando mais próximo de quem sou. Talvez vá sendo retirada, camada após camada, cada ideia fala, cada convicção errada, até que reste apenas eu. Talvez nessa altura - que, espero, ainda demore, até pelo imenso que há ainda a desvelar - eu possa saber, exatamente, de corpo e alma inteiros, como me hei de apresentar diante do meu Deus. Até lá, é levar com o cinzel em cima. De alma grata e sorriso nos lábios.

20190110



Sou da palavra. É curioso, porque normalmente apresentam-me como alguém da música, mas a palavra tem, em mim e comigo, um peso substancialmente superior. Acredito, verdadeiramente, no poder da palavra. Uma boa conversa, se possível com a mutualidade do olhar, uma boa escuta, por vezes até uma discussão aguerrida em busca de um consenso, constituem algumas das memórias mais gratificantes da minha vida. Mesmo quando caminho sozinho dificilmente o faço em completo silêncio. Há um diálogo entre mim e eu próprio, entre mim e o meu Deus, entre mim e os meus outros, ainda que apenas dentro de mim, que muitas vezes me serena e me ajuda a encontrar as respostas para o meu quotidiano.  

No entanto, não tenho a palavra como definitiva. Porque a palavra por vezes não basta. E até é dispensável. Apesar de ser da palavra, prefiro por vezes o silêncio, o calar, o deixar que a vida e o tempo falem. Numa discussão demasiado exaltada o silêncio é preferível. Numa discussão unilateral, em que não somos ouvidos, o silêncio é preferível. Quando no que ainda há a dizer apenas sobressai a dor, o silêncio é preferível. Perante a inevitabilidade, o silêncio é sempre preferível. Porque a palavra, nessas circunstâncias, é muitas vezes eco de ressentimentos.

E para isso mais vale ficar calado.

Bambora

  Não é estranho que nos digam que «ser homem é muitas vezes uma experiência de frustração». Mas não é essa toda a verdade. Apesar de todos ...