20180423


Assim que se passou para as perguntas de quem assistia à mesa redonda comecei a contar os minutos. Por escasso tempo. Foi a primeira pergunta. Não foi recorde, no entanto. Junte-se uma conferência da Igreja - sobre qualquer tema - e pessoas nos entas, e a pergunta é tão previsível como a morte: como se há de combater o demónio que se esconde no facebook e o mal que as redes sociais fazem aos nossos jovens e às nossas famílias. Torço-me sempre na cadeira. Sei que não adiantaria nada tentar responder. Sei que os argumentos que o mal não está nos facebooks ou quejandos mas na distância que se instalara antes, quando os miúdos eram novos caem em saco roto. Sei que explicar que temos que ir ao encontro da malta nova onde ela está - e se está nas redes sociais porque não irmos até lá - e não batermos no peito como virgens ofendidas é redundante. Sei que recordar que Jesus, que aos pescadores falava de peixe e aos agricultores de sementes, ia ter com as pessoas onde quer que elas estivessem, é tido como sendo naquele tempo. Sei que apelar ao juízo para deixarem de tentar parar a água com as mãos é tempo perdido. E sei isto tudo porque isto tudo já aconteceu na forma tentada e efetivada e perdida. É coisa antiga na Igreja: é muito mais cómodo encontrar o bode expiatório (Lev 16, 5-22) que assumirmos nós as nossas responsabilidades, seja em termos de educação, seja em termos de evangelização.
Já tenho dois dos meus fora de casa. E as redes sociais facilitam-me a vida. Vou sabendo deles, por onde andam, o que fazem, vamos conversando e acompanhando-nos mutuamente. Prolongamos uma relação que sempre foi a nossa: proximidade quando era preciso, distância quando era de vontade. Acredito que aquilo que as redes sociais permitem é justamente isso: acentuar as relações e os comportamentos. Quando se trata de miúdos exigem maior cuidado e atenção. Depois, vai sendo menos. Vai-se acompanhando, como na vida. O problema é quando não se acompanha na vida. Mas a questão, nesses casos, não está nas redes sociais. 

20180417


Hoje, como sempre acontece à terça, tivemos reunião no RAIZ. Às tantas, a conversa vai ao encontro das nossas preocupações constantes com o futuro dos nossos miúdos. Enquanto permanecem por cá, enquanto os temos debaixo de olho, as coisas ainda vão correndo. O pior é depois. Falamos de uma série deles que, ao longo dos últimos meses, ou foram ter à prisão ou estão em casa com prisão domiciliária ou então foram libertados em julgamento. São marionetas. Dos pais, dos irmãos mais velhos, dos traficantes, das força policiais. São carne para canhão. Aqui no bairro, se eles não funcionarem em condições, rapidamente são substituídos por outros com maior vontade, maior estupidez, menor consciência e escrúpulos.
Oiço e não acredito. Conheço bastantes deles e o que conheço, o que recordo, são momentos que nada têm a ver com o seu passado próximo e com o seu presente. Miúdos traquinas, com pouca vontade de estudar, vivaços, muito alegres, muito dóceis. Miúdos que noutras circunstâncias poderiam ter dado gene a sério. Miúdos que fizeram as escolhas erradas e por isso são responsáveis pela sua situação. Não exclusivamente, é certo, porque foram enredados numa rede feita de promessas fáceis, trapaças e enganos. Mas são responsáveis pelas suas escolhas. Condicionados, sim, mas tiveram hipóteses de enveredar por outro futuro. E não quiseram, não soubera escolher bem.
Dá vontade de os meter numa redoma, de os afastar do Bairro e das suas famílias que os exploram, de os colocar num outro lugar, mais são, mais livre, onde possam verdadeiramente munir-se de ferramentas para que possam escolher quando chegar a sua altura de escolher. Não podemos. É a sua vida, não a nossa. Podemos acompanhar, aconselhar, proteger, estimular, apresentar exemplos e alternativas, mas não nos podemos substituir a eles próprios.
É este o nosso quotidiano, por estes lados. semear. E assistir, com dor, à colheita alheia.

20180416


É já proverbial, para os meus, a minha recusa em ser sepultado num cemitério. Os meus sabem-no sem dúvidas há muitos anos. Sabem que quero ser cremado, onde gostaria que fossem espalhadas as minhas cinzas - nos meus lugares de pertença física e espiritual: Porto e Taizé - e estou certo que este é um daqueles casos em que a minha vontade será satisfeita.
E no entanto...
Tenho vindo a redescobrir os cemitérios. Pode parecer macabro, mas não é. O meu futuro, em algum momento, implicará a minha morte, por isso é natural que eu pense nisso. Ultimamente, com alguma tranquilidade, até. Depois do choque das recentes mortes que tanto me mexeram cá por dentro, é uma espécie de assumpção, de aceitamento por absorção. Uma espécie de fase nova, em que vou percebendo (finalmente!) que o corpo tem limites e que qualquer dia será o dia. Ainda na semana passada, numa das já habituais conversas à volta da fé com os meus filhos, um deles perguntou-me se eu creditava mesmo que iria estar olhos nos olhos com Deus. E eu respondi-lhe que sim, que acredito mesmo que irei estar olhos nos olhos com o meu Deus e que Ele me receberá com um enorme sorriso. Porque não pensar nisto, então?
Ultimamente tenho percebido os cemitérios com um outro olhar. Como um lugar de encontros. Nem sequer e reencontros, mas de encontros. De saudades. De novas formas de saudade. De memórias. De alegrias e choros, com os condizentes sorrisos e lágrimas. É um reviver, de uma outra forma, mas igualmente viva, de uma nova realidade.
E isso tem-me questionado. 

20180410


Estou a (tentar) ler a Exortação Apostólica Gaudete et Exsultate, que o Papa Francisco escreveu recentemente e ontem foi publicada. Espanto-me sempre com a simplicidade daquela cabeça. Quem, como eu, tende para as coisas profundas e densas - sim, eu escolho muitas vezes um livro pelo número de páginas - tipo Bento XVI, facilmente encontra nos textos do Papa Francisco alguma tendência para a superficialidade, para a excessiva simplificação do que se espera ser complicado, a exigir dicionário teológico, quanto mais não seja para nos alimentar o ego da sabedoria!
Uma das minhas provocações mais comuns e favoritas é "expliquem-me como se eu tivesse cinco anos". Todos os meus filhos já tiveram cinco anos - bem, quase todos, porque a idade mínima da Rita foi nove - e eu recordo-me bem como era difícil responder à sua enorme e constante sede de respostas. Tentar explicar algo a um miúdo de forma a que ele entenda - e se cale - exige um esforço de síntese que nos conduz ao essencial de cada questão, ao seu sumo, àquilo que realmente importa.
Era justamente aí que Jesus se mexia, a nível teológico.
Para além do maior sinal da Sua vida - a ligação umbilical aos que se crêem ser menos, restituindo-lhes a dignidade que procedia do Amor do Pai - marca a simplicidade da Sua mensagem. Sem muitas palavras, sem muitas divagações, focando no essencial, contando pequenas histórias ligadas ao quotidiano das pessoas, se necessário for. Mesmo na sinagoga, lia as leituras, proferia meia dúzia de palavras, e deixava que cada um dos que O escutavam seguisse o seu caminho interior. Acredito que a dúvida que Jesus acabara de instalar em cada uma daquelas cabeças fazia caminho. Nem sempre o caminho certo, inevitavelmente, mas cada um dos que estavam presentas na Sinagoga tinha a oportunidade de escolher, de decidir, de se fazer parte do caminho que Jesus propunha. Era chamado à responsabilidade de escolher. Que é o que nos acontece quando não nos é dada a papinha toda, quando nos dão a fome em vez de nos saciarem.
E dou por mim a gostar desta simplicidade de Francisco. Que torna cada documento seu legível e entedível e até fazível por qualquer pessoa, qualquer cristão, qualquer homem ou mulher que tenha vontade de aprofundar a fé. À semelhança do evangelho. Tenho é que me habituar!

20180402


Li, era ainda muito miúdo, que a dor, se não existisse, teria que ser inventada. Na altura não entendi. Não sei se entendo agora.

Há qualquer coisa na Via Sacra que me questiona até à medula. Cada estação, cada passo de Jesus, cada reflexão, cada oração, são como se fossem minhas, como se fosse a minha vida, as minhas cruzes, as minhas dores, as que rezamos. A determinada altura, não sei se são minhas as dores de Jesus, ou de Jesus as minhas dores. Talvez sejam ambas. Talvez sejam de ambos. Com certeza serão de ambos, e andará por aí a humanização de Jesus, e a divinização do zé.

Dizia eu num destes dias que não consigo estar desatento nas homilias. E são muitas e boas, aquelas que me são dadas a escutar. Numa delas, despretensiosa, o sacerdote a determinada altura dizia que, se não somos deuses, somos Deus. Todos somos Deus! Esta frase remeteu-me imediatamente para conversas de mais de trinta anos, num gabinete de contabilidade, onde eu e um amigo, ambos em fase de descoberta, encontrávamos gozo em estudar, discutir e aprofundar a fé. Dissemos muitas barbaridades. Mas estou em crer que aprendemos ainda mais. Depois de muitos anos sem nos pormos a vista em cima revimo-nos há duas semanas. Como acontece com quem nos é importante, abraçamo-nos e retomamos conversas como se tivéssemos estado sempre juntos. Quando nos deixamos, já nem nos demos ao trabalho de nos prometermos o reencontro breve. Sabemos ambos que isso dificilmente acontecerá. E sabemos que não será necessário. Que se apenas nos revirmos daqui a quinze anos, será como se fosse já amanhã.

Há algum tempo soubera, por intermédio de amigos mútuos, que a sua vida tinha dado uma dura reviravolta. Em sentido descendente. "Já não é como o conheces!" À medida que nos íamos afastando depois desse reencontro, recordei essas palavras. Não vira nada de radicalmente diferente, nele. Quando lhe perguntara como estava ele revelou-me, com a mesma franqueza de sempre, que estava a recomeçar a caminhar. Também eu, respondi-lhe. Nos momento bons, estamos sempre a recomeçar. Nos melhores momentos, estamos sempre a caminhar.

Talvez seja por tudo isto que a Via Sacra me diz tanto. Se até um Deus caiu, se até Ele, que não fez mal a ninguém, teve que carregar a cruz, como poderíamos nós não o fazer? E, se não o fizéssemos, como poderíamos nós viver a nossa própria ressurreição?

Bambora

  Não é estranho que nos digam que «ser homem é muitas vezes uma experiência de frustração». Mas não é essa toda a verdade. Apesar de todos ...