20170727


Vou para retiro. Daqui a pouco. É um desejo de há muitos anos, agora confirmado. Há momentos disse a um amigo que estou assustado. Estou assustado. O tipo de encontro que perspetivo tanto pode dar cascas como casqueiros. Tanto posso vir muito bem como ainda pior. Por isso estou assustado. Não tenho nada a certeza que despir-me perante Deus seja bom quer para mim quer para os que me rodeiam. Não tenho nada a certeza se estou preparado para o fazer, para deixar que Ele me despoje das muitas camadas com que laboriosamente me fui cobrindo e tapando e escondendo. Não tenho nada a certeza se eu gostarei do que está por debaixo das camadas. E ainda menos se os outros gostarão. Ou se estaremos preparados para essas realidades. Mas das duas uma: ou confio suficientemente no amor para o fazer ou então o retiro não será retiro. Mais: ou confio suficientemente no amor de Deus para me despir ou então toda a minha vida mais recente não terá sido vida. Mas esta é justamente a maior dúvida que se me instala cá por dentro: o meu desejo profundo de autenticidade é em função de quê? De quem? Da normalidade? Das expectativas? De quem? Minhas? Dos outros? O que é ser normal? Quero ser normal? Alguma vez serei normal?

Vai ser um longo fim de semana -)

20170719


Quando era novo tive, por várias vezes, dores de crescimento. Em boa verdade não fazia ideia do que seriam dores de crescimento, mas sabia que era um bom motivo para a minha avó me esfregar arruda nas pernas (também não faço ideia do que seja) e que isso produzia um efeito de alívio imediato. A esta distância creio que haverá uma boa probabilidade de ter sido apenas mimo, mas uma boa dose de mimo ocasional não faz mal a ninguém.
Nessa e noutras alturas pensava que as dores de crescimento acabariam por acabar. Nessa como em muitas outras alturas estava profundamente enganado. Hoje de manhã, nesse consultório de estados de alma quotidiano que é o meu duche, pensava nas justificações que poderia dar a alguém que me confrontasse com os meus últimos tempos. Essas imaginárias ou antecipadas tentativas de justificação ocupam muito tempo do meu tempo. Procuro sempre um discurso que me permita ler a minha realidade atribuindo-lhe um sentido que à partida não encontro. Isto nos momentos em que me porto bem, por que nos outros faço o contrário: invento uma realidade que se coadune com o meu discurso previamente elaborado. Uma espécie de tentativa ridícula e estúpida - dois adjetivos que tenho como fiéis companheiros de jornada - de salvar a face.
Algures aí no meio, entre discursos próprios e externos e realidades interiores e exteriores, creio que estarei eu. O meu problema é que não consegui ainda estabilizar-me num qualquer desses lados e passo a vida a oscilar, aos saltinhos, de inconstância em inconstância entre o que sinto e sei que sou o o que sinto e sei que devo ser... e desejo ser. A minha esperança mais profunda é que, a determinada altura, nem que seja breves minutos antes de morrer, eu consiga perceber onde pertenço. Ainda que me adiante de pouco, porque se me acontecer apenas nessa altura, estarei a breves minutos de pertencer a uma outra realidade. Enfim... talvez aí possa, enfim, ter descanso!

20170712


Há, no devir, uma sabedoria que me escapa todos os dias.

Desde muito miúdo que, embalado por uma cena de uma banda desenhada de índios e cowboys, quis muito ser chefe índio, com cachimbo e tudo. Na sua aldeia era a ele que todos recorriam em busca da sabedoria. Ele, de cachimbo na boca, pensava longamente nas perguntas e respondia com o mesmo ritmo: vagarosamente, como se até o tempo se curvasse à sua sabedoria.
Ainda hoje me recordo destas férias verdadeiramente grandes. Na cama de rede que pus no meu quintal, embalado pela demanda da sabedoria, li As Mil e Uma Noites de ponta a ponta - que só muito mais tarde percebi - e comecei a ouvir rádios fm e antena 2 - em minha casa apenas se ouvia os parodiantes de lisboa. Foi aí que comecei a tentar acompanhar os ritmos do tempo em que vivia. E foi aí que, mentalmente, comecei a sair do bairro.

Hoje de manhã, debaixo do duche, pensava neste e noutros percursos meus. Recordava aquela meia dúzia (na realidade foram sete) de decisões que se revelaram absolutamente decisivas. Recordava particularmente aquelas que me levaram aos buracos em que me fui metendo. Tentei refazer os meus percursos posteriores, se a minha decisão tivesse sido a correta. E cheguei à conclusão a que muitas vezes chego quando estou verdadeiramente bem: se as minhas asneiras me permitiram chegar como estou onde estou hoje, aqui e agora, então benditas asneiras. Claro que noutras alturas amaldiçoo essas mesmas asneiras, particularmente quando causaram dor, sofrimento e desilusão.

Hoje estive fugazmente com uma amiga que já não via há muito tempo. A primeira coisa que me disse foi que os meus olhos estavam diferentes: mais repousados, confiantes e alegres. Sorri. E pensei imediatamente que há, no devir, uma sabedoria que apenas o tempo me permite ver. Quando está bom tempo.

20170711


Quando estou bem, acredito que as pessoas que nos habitam são definidoras da forma como vivo a minha vida. Que tipo de memórias tenho? Com que pessoas? Em que momentos? Que tipo de sentimentos essas memórias reacendem em mim? Qual a saudade que me impregnam? Quando estou mal não consigo sequer aperceber-me desta presença que é quase tão real como a realidade. No entanto, é a estas presenças que instintivamente recorro para sair dos buracos escuros em que por vezes me meto.
Há uma marca ainda mais duradoira, única, pessoal e intransmissível que uma impressão digital que os que me habitam deixam em mim. Estranhamente, algumas dessas marcas nem foram por mim devidamente reconhecidas na altura em que aconteceram. Creio que me terão parecido momentos insignificantes, despercebidos, submersos entre outros aos quais, na altura, me pareceram bem mais importantes. No entanto, em determinada altura essas aparentes insignificâncias ganham um relevo quase desmesurado e tornam-se em tábuas de salvação, em caminhos de luz. Não raras vezes volto a escutar conversas e lugares e olhares e partilhas que me dão um sentido que eu buscava há tanto tempo e demorava a encontrar.
Confesso que adoro esta presença cá por dentro. Adoro sentir-me habitado por memórias e encantamentos ligados a pessoas concretas em momentos concretos da minha vida. A minha questão é quando viro esta coisa ao contrário: quem habitarei eu? E, sobretudo, como habitarei eu?

20170710


O meu fim de semana andou à volta do Espírito Santo. Curioso, não é? Como é que alguém que nem sei bem quem é, ou como é, pode pautar assim um fim de semana.
No sábado fui padrinho de crisma de uma miúda fabulosa. Pediu-me para ser seu padrinho e eu, surpreso, orgulhoso e embevecido, aceitei. É sempre uma responsabilidade que me pesa sobre os ombros. Uma responsabilidade extra à que naturalmente tenho e que por vezes pesa toneladas. Eu sei como sou, conheço a minha dificuldade em manter-me constante nos valores e a minha luta quotidiana em me manter uma pessoa minimamente decente. Quando alguém me escolhe e ainda por cima apresenta como motivação para essa escolha o meu testemunho de vida, a sensação que tenho é sempre de profunda estranheza. E por vezes, de mentira. Acabo sempre por me colocar em causa, por pesar até que ponto a minha vida interior, com todas as dúvidas, com todos os medos, com todas as infidelidades a mim mesmo, se reflete no concreto do meu dia a dia. E pergunto-me até que ponto visto uma roupa que não me pertence e induzo os que me rodeiam em erro.
Ontem, ao pequeno almoço, o Espírito Santo e a Igreja voltaram à baila. É um assunto mais ou menos comum lá em casa, às refeições, onde volta e meia todos discutimos o que nos é importante. E a Igreja e a forma como ela vive e a forma como nós a vivemos, é importante. Às tantas a minha sogra, que naquela altura estava presente, apresentou as suas teorias vindas das catequeses antigas e que a mim e aos meus filhos dizem muito pouco. Já a conversa tinha passado e ela regressou para me confrontar com algo que eu tinha dito acerca do Espírito Santo. E eu tentei esclarecê-la afirmando a minha fé no Espírito, que acredito nos move a todos. Mas sem escolher alguém de uma forma particular: não acredito que incida no Papa de uma forma mais especial que a mim, por exemplo. Provavelmente, a forma como o Papa O acolhe é que será bem diferente da minha. A medida é ditada por nós, pelo nosso acolhimento, pela nossa recetividade, não pelo Espírito, que ama a todos da mesma maneira individual, intensa e total.
Mais tarde, comparei os meus estados de espírito dos dois dias. Num, cheio de culpas e de dúvidas; no seguinte, tentado apresentar as minhas razões de fé. E percebi que sou ambos, entre muitas outras coisas,  dependendo das alturas, das solicitações, das circunstâncias. Depois comparei-os com as leituras, precisamente de ontem.
E desejei sentir-me sempre pequeno.

Bambora

  Não é estranho que nos digam que «ser homem é muitas vezes uma experiência de frustração». Mas não é essa toda a verdade. Apesar de todos ...