20150720



Não conheço melhor pauta para uma vida feliz que o genuíno sentimento de gratidão.

Volta e meia - particularmente quando começa a cheirar a férias e me permito dar largas ao cansaço acumulado - torno-me ainda mais rezingão. É aquela altura que me chateia profundamente, entre o está quase e o ainda não, em que a meta está já ao alcance do olhar mas ainda temos que batalhar para a alcançar. Dependendo da intimidade, quando me perguntam como estou, nessas alturas posso responder qualquer outra coisa que não o inócuo "tudo bem". Nada de mais. É como se estivesse a esfoliar a alma, a prepará-la para receber nova sementeira, novos projetos, novas formas de fazer e precisasse de deitar algo fora.

Mas basta-me parar um pouco, distanciar-me um pouco, ver as coisas um pouco mais ao de longe, sem estar nelas permanentemente mergulhado, para as reapreciar, para voltar a ver nos que me rodeiam o tanto que os torna tanto. Basta-me pegar num dos tempos em que, nesta altura, tenho mais tempo e pegar na guitarra que está no fundo da capela e com ela ao colo fazer o filme do que foi sendo o ano que agora termina - acho sempre curioso como para nós, educadores, o tempo tem um tempo diferente do tempo dos outros - e por entre orações e canções encontro-me sempre a dar Graças pelos que me rodeiam. Basta-me, como faço sempre nesta altura, organizar as minhas fotos e os meus documentos e o meu relambório das atividades e recordar momentos e pessoas e risos e batalhas ganhas e perdidas e conversas e caminhadas e conversas em caminhadas e caminhadas por entre conversas e constatar como fui crescendo, como fui sendo ajudado a crescer, por vezes forçado a crescer, para alcançar o patamar mínimo de vida dos que comigo batalharam e caminharam e conversaram e cresceram.

Ainda ontem pensava como, para o bem e para o mal, continuo a ser um puto do bairro deslumbrado com a vida que lhe vai sendo permitida viver. Para o mal porque por vezes ainda fico atado a ideias pré concebidas que permanecem lá, instintivamente, e constituem quase sempre o meu primeiro olhar sobre as coisas. Para o bem, porque, passado o estupor - que dá asas à minha rezinguice - potencia este sentimento permanente de imensa gratidão pelo caminho já percorrido e, sobretudo, pelo desejo do novo caminho a percorrer. Que apenas é possibilidade porque alicerçada naqueles que, todos os dias, me rodeiam.

Como dizia, não conheço melhor pauta para uma vida feliz.

20150718



Ontem, numa das muitas reuniões de avaliação que são comuns nesta altura do ano, foi-nos partilhado um agradecimento ao Fredo: "... foi um elemento imprescindível. A relação e a empatia que criou com os jovens e o exemplo de liderança servidora que demonstrou merecem o nosso sincero agradecimento." Para além do seu sorriso de menino sem jeito enquanto escutava isto, saltou-nos ao ouvido a "liderança servidora" porque define exactamente a forma como ele lida com os miúdos.

Como o conheço há muitos anos, como sei o que não via ele em miúdo e posso compará-lo e aprender todos os dias com o imenso que ele é, o Fredo é um alerta permanente para mim. Prova-me, todos os dias, à saciedade, como não posso ser precipitado nos juízos e como tenho que fazer mais vezes das palavras atos. Sei que, a determinada altura, ele sofreu uma acentuada transformação. Sei também - porque é ele próprio quem o afirma - que o RAIZ lhe deu o terreno e as sementes necessárias para que ele as pudesse fazer germinar. Sei ainda que apenas uma diminuta parte dos miúdos que gravitam em torno do RAIZ têm essa possibilidade, esse anseio, essa força interior que permite transformar o sonho em vida vivida. Mas, se mais resultados não houvesse - e há-os bastantes! - bastar-nos-ia isso para justificar todo o trabalho, todo o empenho, todo o esforço quotidiano que se aplica naquela casa.

No âmbito da atividade que despoletou aqueles agradecimentos, pude testemunhar as constantes manifestações de carinho que miúdos e graúdos lhe dedicavam. E a preocupação constante que ele tinha para com eles. Nunca o vi a colocar-se em bicos de pés. nunca o vi a reivindicar qualquer tipo de autoridade, nunca o vi a pedir qualquer privilégio. Vi-o sempre atento a cada um, a fazer sentir a cada um que tinha toda a sua atenção, a falar a cada um com todo o respeito e dedicação, mesmo quando o estava a repreender.

Sei que o Fredo me tem também como inspiração e modelo. Como eu o tenho. Já o dissemos mutuamente, olhos nos olhos, com a sinceridade, a amizade e a confiança de quem se caminha há muitos anos e sabe por isso que apenas a verdade é natural. E permitida. E isso é o mais fantástico de tudo. Chegamos ambos a um ponto em que apenas podemos aprender um do outro. E isso é um enorme privilégio. E responsabilidade. E medo, confesso. Mas é esse privilégio, essa responsabilidade e esse medo permanente de defraudar expectativas que nos permite continuar a crescer. Na companhia um do outro.

Deus seja louvado!

20150713


Vejo balões e vejo-me miúdo, solitariamente traquina, a fazer do tempo sonho e dos sonhos tempo, mergulhado nos imensos livros que me faziam companhia e a partir dos quais viajava, intensa e frequentemente. Lembro-me do meu amigo Dom Quixote, com quem muitas vezes me acho parecido, correndo atrás do que rapidamente se esfuma, cego e surdo à realidade que os outros, infrutiferamente, teimam em me colocar à mercê dos olhos e dos ouvidos. Alegremente mergulhado nessa espécie de sonho e ilusão, quero ignorar o mundo que se passa lá fora, fora de mim e do que se passa dentro de mim, como se nada mais existisse, como se nada mais contasse, como se nada mais importasse, porque naquela altura nada mais importa, mesmo. Não fosse a inevitabilidade da imposição da realidade que demonstra que os moinhos de vento não passam de moinhos de vento, e acreditaria que poderia viver assim para sempre. Não fosse o ter que aterrar, por vezes violentamente, e ter que me confrontar com as consequências dos meus voos, e desejaria viver assim para sempre.
Duas coisas que quero fazer. Ainda. Que hei de fazer. Espero. Balonar. Sozinho, se possível. Navegar. Sozinho, se possível.  

20150711


Falávamos ontem de alguém que, por mais que tente, não consegue atingir os seus objetivos. Está já naquele ponto, que muitos de nós já conhecemos, de prévia certeza que tudo vai correr mal, que tudo vai redundar em mais um falhanço a toda a linha. E contribui assim, ativamente, para que efetivamente falhe.

Na minha vida tive recuei muitas vezes. Já fugi, já me escondi, já me refugiei, já procure forças e lugares e pessoas diferentes para recomeçar a partir de coisa nenhum,a onde não me conhecessem, com quem não me conhecesse, numa tentativa de me dar a mim próprio uma oportunidade de fazer diferente. Da última vez que o fiz, no meu último reset, fui ganhar cerca de um terço do que ganhava até aí e não me importei minimamente com isso. O que me importava era mesmo recuperar-me, aos meus olhos e aos dos outros, e para isso o sucesso profissional, visto pelo comum dos prismas, visto pelos outros, era-me perfeitamente escusado. Muito mais que do sucesso, eu tinha saudades era de mim mesmo,

É preciso estar lá, saborear a derrota, sentir na pele o desespero, para saber como é. E é sempre diferente! Foi isso mesmo que eu disse à minha filha, ontem, enquanto conversávamos. Por muitas e boas teorias que tenhamos, por muitos livros e cursos e formações e ideias e convicções que tenhamos, não há nada como estar lá, completamente perdido, para saber como é. E é sempre diferente! Mesmo connosco, que somos (mais ou menos) a mesma pessoa, alteram-se as circunstâncias é é diferente, quanto mais com alguém que não conhecemos assim tão bem, com alguém de quem gostamos bastante, que estamos ainda a descobrir, aos poucos, à medida que nos vai permitindo, mas que estamos longe ainda de conseguir ler com o mínimo de profundidade que a situação exige.

Há pouco tempo vi-me seriamente atrapalhado. Alguém em quem reconheço uma sabedoria profunda, para quem olho sempre que tenho fome e sede, e em quem encontro sempre motivo para tentar imitar, veio ter comigo para conversar, com um pedido de ajuda implícito, como se eu pudesse souber a resposta para o que quer que seja. Dispus-me a escutar, atentamente, tentando descortinar o que poderia eu dizer que fosse suficientemente sábio e profundo para ajudar. Acabei por permanecer calado, como quase sempre me acontece, rendido aos meus limites e à minha consciência que qualquer coisa que dissesse apenas aumentaria a confusão.

Tenho muito respeito por quem anda à procura. Por quem está descontente com o seu rumo, porque está atrapalhado, por quem tem dificuldade em se definir e em se encontrar, ou, tendo-se encontrado, está momentaneamente perdido. E sofre com isso. Tento resistir sempre a dar palpites, que quando, ainda assim, me saem da boca para fora, soam-me sempre a filosofia barata e bacoca. A maior utilidade da minha parte talvez seja fazer sentir que é importante dar tempo ao tempo. Deixar que as coisas aconteçam na medida em que as vamos conquistando. Que por vezes o recuo é apenas aparente e que, mesmo quando é derrota, é importante sentirmo-nos derrotados e chorarmos porque as coisas não correram bem. Mas que amanhã é um outro dia e que é importante que vivamos as alegrias com a mesma pujança e intensidade com que sofremos quando perdemos. E apenas há uma maneira sábia de fazer sentir isto tudo. Permanecendo. Em silêncio, quando necessário, intervindo quando em queda. E testemunhando. O ressurgimento da vida em cada um.

20150703



Enquanto nos debatíamos com uma sandocha de leitão, perguntou-me se eu eu não achava que o que acabáramos de ouvir desmistificava Jesus.

Passáramos a tarde com Juan Ambrosio, numa daquelas formações a que todos os homens de boa vontade deveriam participar sob pena de viverem a vida menos vivida. E menos percebida. De desconstrução em desconstrução, foi dando nomes às coisas, conduzindo-nos e ao nosso raciocínio como apenas um mestre sabe fazer. Não admira, portanto, que já a caminho de casa, as suas palavras fizessem ainda caminho dentro de cada um de nós. Calculo que nos habitarão ainda por algum tempo!

Como me acontece muitos vezes, à medida que fomos conversando sobre a desmistificação de Jesus, fui fazendo a minha própria descoberta, fazendo o meu próprio percurso, fui empalavrando Jesus, para utilizar a expressão do Juan. Recordei-me de algo que ainda há pouco tempo escrevi aqui, da desmistificação dos autores bíblicos, que afinal eram pessoas simples. Como também nós somos chamados a ser simples. Da mesma forma, a quem serviria termos um Jesus distante, completamente divino, completamente nas alturas, longínquo, intocável, distante? Afinal não era esse o deus dos nossos antepassados? Afinal, não foi para isso que Jesus veio? Para se fazer um de nós? Para, fazendo-se um de nós, nos fazer um de Si, para nos catapultar e nos sentar, juntamente com Ele, à direita do Pai? "Podes ter a certeza que hoje mesmo estarás comigo no paraíso." Lc 23, 43

O que perdemos em divindade de Jesus, ganhamos em humanidade com Jesus. E essa é uma responsabilidade que nem sempre desejamos. É-nos muito mais cómodo um deus que opera de cima para baixo, que nos deixa sem alternativa, sem possibilidade de escolha. Dessa forma, as coisas acontecem na nossa vida por imposição divina, nós somos pobres marionetas nas suas mãos e, como pobres marionetas, desresponsabilizamo-nos. "Foi vontade de Deus".

Falávamos ontem da Samaritana, assim como falamos anteontem do Bom Samaritano, assim como falamos já muitas vezes de Zaqueu e do Filho Pródigo e de Madalena e do Bom Ladrão e do Centurião e de tantos outros que, com a sua humanidade - não com a sua divindade - com a sua pequenez, com as suas falhas e a sua humildade são caminho para todos nós. Assim como falamos também de Gandhi ou Luther King ou Mandela ou a Tia Micas, que toda a vida viveu para os outros. É sua humanidade que nos faz desejar ser mais humanos, que nos faz sentir - ainda que brevemente, enquanto não deixamos que a vida nos atropele - que também nós somos chamados a ser mais humanos, que também nós podemos e devemos ser mais humanos, mais cuidadores, mais atentos, mais construtores de um mundo melhor. Há, nos diálogos que Jesus estabelece com as pessoas, uma proximidade com o nosso quotidiano, com a nossa forma de podermos ser pessoas que nos obriga - ainda que contra a nossa vontade - a questionarmo-nos porque não fazemos nós o mesmo, porque não paramos nós junto ao poço e não pedimos de beber, porque não dizemos nós também às samaritanas e aos zaqueus que connosco partilham os dias que também eles são visceralmente amados pelo Pai, que o que verdadeiramente importa é este amor no qual somos fundados e que a vida e os outros e nós próprios teimamos em fazer esquecer? Mais difícil ainda: conhecendo nós Jesus e o Amor do Pai, porque teimamos nós em nos roubarmos a nós próprios esse Amor escondendo-o na nossa vergonha, escudando-nos na nossa pequenez? Queremos não ver que há, nesta forma de ser e de fazer de Jesus uma possibilidade de sermos nós próprios a ser e a fazer que nos rouba as desculpas e as justificações, tal é a sua simplicidade, tal é a sua humanidade, tal é a sua proximidade com cada um de nós.

A quem serviria um Jesus inteiramente divino?  

Bambora

  Não é estranho que nos digam que «ser homem é muitas vezes uma experiência de frustração». Mas não é essa toda a verdade. Apesar de todos ...